Olhos trincados

- Antes tudo era música, mas agora... estou dando um tempo.

- Eu percebo uma coisa. Quando você fala das coisas que supostamente, e digo supostamente, porque é a palavra usada por você mesmo, então... quando você fala dos seus supostos momentos de aflição, eu percebo que você sorri, ou ri, ou faz um gesto um pouco brincalhão.

- Ah... Dra., o que se pode fazer? Eu tento não chorar, ou pensar em coisas que supostamente são sentimentos firmes, duros. Talvez não seja nada demais, ou talvez seja.

- Como assim?

- Penso que dese criança somos ensinados a suprimir as expressões, ou a forma como exteriorizamos o que sentimos. Penso que isso é uma educação, passada de forma hereditária na nossa criação, e que não é um estado consciente do ser humano. Não vemos como estar cerceando um sentimento, mas acreditamos que estamos sendo fortes.

- Mas você acredita estar sendo forte enquanto suprime seus sentimentos?

- Acho que pra isso toda resposta é subjetiva. Assim como a verdade em alguma coisa. Viu?... talvez seja isso um problema. Eu exteriorizo pensamentos que para as pessoas parecem incertezas, e elas vêm isso como uma fraqueza, o que de fato não é. - ela, a médica, abaixa os olhos até as mãos do paciente - O que eu penso sobre o estado de verbalização, ou exteriorização da alma, gosto de usar esses discurso hegelianos, muito embora eu não usei por acreditar que dificulta o entendimento das pessoas nesses, mas aqui e agora, gostaria de usar, porque é uma referência, então... eu perco o foco, desculpa. Então... Eu penso que ao exteriorizar um pensamento (alma) as pessoas não necessariamente estão dizendo muito sobre elas, porque ela não possuem controle das suas consciências. Elas não conhecem a si próprias, e isso me inclui. Desta forma, elas normalmente utilizam um discurso do coletivo, e é assim que funciona até mesmo o nosso interior. Estamos tão acostumados a isso. Então, quando alguém verbaliza um sentimento, que segundo as outras pessoas é de prostração, elas estão sendo fracas. Se abrir é sinônimo de fraqueza nesse mundo. Já sei o que vai dizer "não, Augusto..." e vai complementar com algum discurso de uma teoria comportamental. - ela ri.

- Sabe o que eu penso nesse momento, Augusto?... - a Dra. Baixa os olhos até os dedos do paciente - Há uma confusão de sentimentos dentro de você, um turbilhão. Perceba, suas mãos não param. Já há sangue se manifestando nos cantos dos seus dedos. Também penso que você está certo, as pessoas vêm esse tipo de manifestação emocional como uma forma de fraqueza. Você dizer que ama alguém, que não está no seu núcleo familiar de segurança, por exemplo, é como se você estivesse amando mais essa pessoa do que sendo amado, entende-se como uma disparidade, o que de fato não é.

- Entendo.

- O que de fato ocorre é uma necessidade do sentimento. Vou explicar, você já se sentiu como se amasse ou se doasse mais à alguém do que a ela a você?

- Sim.

- Então, ocorre que na realidade, pode não haver uma disparidade de fato, mas sim uma proporcionalidade diferente dos cinquenta por cento que você espera. Às vezes o que é suficiente para você, não é o mesmo para a outra pessoa, o que não significa que haja amor, ou qualquer outro sentimento que seja legítimo. Todo sentimento é legítimo. O que ocorre é a desvalorização de um ou outro. Augusto, por todo o tempo que estamos aqui, as consultas, as análises, eu penso que você retém seus sentimentos. Não uma retenção de sentir, mas de exteriorizar. é como se você dissesse tudo, mas o ato da palavra queima por trás dos deus olhos, e não sai, ele se reprime. E o que você vê disso?

- Exatamente. Acho que é mais ou menos o meu caso com Joan. Não quero aplicá-lo aqui, mas é um pouco complicado não o fazer, ele foi o motivo de várias coisas dentro de mim. E... E... - claudicância na voz - eu não quero falar sobre ele.

- Mas não estamos falando, estamos?

- Queria poder dizer que não, Dra., mas eu estaria me enganando, e eu não quero me enganar mais, não ajuda, não adianta. Sabe... - nó na garganta - eu sinto a falta dele. Tudo isso era previsível. Quando eu o vi pela primeira vez, meu coração batia por trás dos olhos, e eu pensei "fodeu pra caralho!", e é mais ou menos isso que está acontecendo, eu acho. Eu sinto tanta raiva de me permitir sentir essa coisa que eu sei o que significa, mas que eu não quero admitir. Quero estar bem... Eu só quero não pensar sobre isso, anular essa coisa escrota... coisa escrota! - baixa a cabeça - Que merda... sinto falta daquele sorriso, daquela boca, do olhar como se estivesse desarmado, como se todos os problemas estivessem fora, e ao mesmo tempo estivesse ali, e nós dois dizendo um grande foda-se pra tudo, não havia importância em estar na merda. eu nem sei se fui um merda, ou se são apenas reflexos condicionados, ou qualquer outra bosta dessas que a gente faz sem perceber, e que nem faz parte da gente. Sei lá...

- Quer um lenço? Pega... - a Dra. estendeu a caixa de lenços, e o paciente pegou um - Ta vendo como você está se permitindo sentir? O que pensa disso tudo?

- Eu sinto que passei por uma fase necessária, de maturação. Tenho outros entendimentos, ou a destruição de outros, ou os dois. Acho que me sinto com mais medo agora do que sempre tive na vida. - ele começa a rir - É engraçado, não?

- O que?

- Eu não sei exatamente. Mas é engraçado como no ano passado, eu só conseguia pensar em como eu precisava de dinheiro para comprar a minha casa, tirar o Joan da casa da tia, de perto das pessoas que ele me dizia deixarem ele na merda, e ele se sentir em casa, tudo do jeito dele, como ele queria que fosse. e eu brigava muito por ele deixar as coisas pelo caminho, na minha atual casa compartilhada, sempre tinha um sapato, ou uma meia, ou uma cueca largada no chão. Na nossa casa eu nem me importaria. - augusto tomado por um riso incessante por alguns segundos - Olha como eu me sinto um trouxa agora... Ele sempre pensou que eu gostaria de ter uma casa na zona sul do Rio. O fato é que eu detesto aquele lugar. eu me sinto tão mal morando ali. Eu tenho vergonha de dizer para as pessoas que eu moro na Urca. Quando elas me perguntam "onde você mora?", eu expresso um sorriso, porque eu já sei o que se sucede após eu dizer "Urca". O olha delas baixam, ou elas me supervalorizam, ou expressam algum sentimento de grande importância. Caguei pra Urca! Eu amo a Praça da Bandeira, por exemplo. O tempo que morei lá com meus amigos foram os melhores da minha vida. Foi quando eu estava com Joan, foi quando me senti livre finalmente de tudo. Eu só fazia o que eu queria, sempre! Mas... Continuando... Eu me sentiria a pessoa mais feliz do mundo, em qualquer lugar do planeta, se eu estivesse com Joan. Eu não me importaria um dia sequer, em pegar um trem lotado às seis da manhã, eu faria isso rindo, se eu pudesse me deitar e levantar todos os dias do lado desse cara. Mas não é o que ele quer. O que ele quer não me inclui. Estou fora, Dra., e eu não deveria me importar com isso. Eu não deveria continuar querer, não é justo!

- Tudo no tempo certo. Acontece que...

Ao sair do consultório, Augusto atravessou a estação de trem do Méier, andou com os olhos retos. Foi até a pequena rodoviária e tomou o ônibus para casa. No caminho o motorista envolveu-se em um acidente. aparentemente todos estavam bem, menos a frente do ônibus que ficou parcialmente amassada, e um pensamento que segurava como mantra na cabeça de Augusto, pedindo a Deus, que acalmasse sua mente e seu coração.

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 11/06/2018
Reeditado em 11/06/2018
Código do texto: T6361339
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