A cidade de uma pessoa só

Para mim, as flores sempre foram frias, mortas e sem cor. O azul do céu sempre me pareceu triste, como se suas lágrimas, caindo junto com a chuva, fossem o acúmulo de bilhões de anos, vendo todas as coisas vivas nascerem e crescerem, se apegando a elas, para então chegar a morte e as levá-las para longe. E as pessoas, quando as olhos nos olhos, vejo somente um grande turbilhão de emoções não resolvidas, amplificadas e destrutivas, guardadas no recanto mais escuro, escondido

e sombrio de cada um, escondidas até dos seus próprios donos. A vida para mim sempre foi escura, cinzenta, mórbida, fétida e solitária. Sério? O que aqueles jovens com um sorriso no rosto, uma expressão de alegria forçada e uma roupa suja e rasgada querem dizendo que o mundo é um lugar colorido, que o amor é a solução para tudo? São idiotas? Acham que irão conseguir viver felizes escondendo os próprios anseios e mentindo para se mesmos? Me poupem. Não sou assim. Eu vejo a verdade, e a verdade é horrível, é cruel, é podre. No fim, a alegria e o amor são meras falácias. Onde está o amor nas ruínas de Aleppo? Ou nos campos do Sudão? Nos desertos da Somália? Não

brinquem comigo! Amor, paixão, paz, liberdade, amizade e compaixão, todos esses aspectos da moral humana servem para que afinal?

Chutei uma pedra na calçada e a segui com meus olhos cansados, só para ver o seu destino. O vento matinal acompanhado da aurora seguem-me em mais uma manhã, mais um amanhecer. Mesmo ainda sendo 5h00, os carros já estão à toda nas pistas. As faixas de pedestre e o brilho dos faróis, as cores dos semáforos e o canto dos pássaros - eclipsados pelos meus fones de ouvido - no bosque ao meu lado, tal qual as flores da primavera completam a paisagem. A correria cotidiana já

começou há tempos e todos estão olhando seus relógios como se algum milagre fosse acontecer em breve. O que todas essas pessoas não sabem, é que milagres não existem.

— Mas que inferno! — Eu disse em voz alta, com a cabeça jogada, expressando com todas as minhas forças o quão eu estou cansado de tudo. — Preciso mesmo ir para a escola todo o dia?

Continuei andando. Procuro manter um mapa na cabeça, e sempre que vou em algum lugar a primeira coisa que faço é calcular uma rota de fuga, um objeto útil para defesa imediata contra ação hostil, possível agentes maléficos e possíveis aliados. É paranoia, eu sei, porém, eu prezo muito pela minha vida, embora não pareça, eu sou importante demais para morrer num beco escuro, sozinho e sem ninguém para contar a minha história, bom, se for para morrer, que eu ao menos morra enquanto tento continuar vivo. E nisso, chego em uma conclusão sobre o que é viver: “viver é sobreviver, como puder e por quanto tempo for capaz.”

São 5h00 da manhã. A escola começa às 6h40; são cerca de 4,7km entre minha casa e o colégio e, com o meu cansaço constante e lentidão para caminhar, levo cerca de vinte minutos para cobrir cada quilômetro, logo, são ao todo 1h34min, somado com o tempo que levo para me levantar, tomar banho, colocar a farda e escovar os dentes, chego à 1h47min entre minha casa e o colégio. Eu poderia pegar o ônibus? Poderia, claro. Porque eu não pego? Simples, eu quero evitar ao máximo

ter que ver todos aqueles jovens sorrindo e exibindo seus dentes brancos e bem cuidados. Por isso eu caminho todo o dia, sempre pelo mesmo caminho, afinal, eu pego a Avenida Jorge de Matos,

passo pelo Parque das Luzes e sigo pelo Centro, e eu conheço cada canto nesse trajeto, então, caso algo inesperado aconteça, eu tenho como me esconder ou fugir facilmente.

Passei pela calçada com a cabeça abaixada e tentando não olhar nos olhos de ninguém. Esperei o sinal abrir. Ao meu lado estão as pessoas que passam aqui todos os dias: uma garota do meu colégio, de cabelo comprimo, farda e pele branca; um homem negro e alto, de paletó com um bolsa de couro nobre na mão direita, que sempre olha o relógio e uma senhora asiática que vende flores. São 33 segundos para o sinal abrir, como sempre. Contei pacientemente em minha mente, de

olhos fechados, até 33, então os abri e observei o sinal ficar verde no tempo exato. Então me pus a atravessar a rua.

Olhei para a esquerda, e nada, olhei para a direita, e nada. Ótimo, parece que esse vai ser um dia comum e relaxante.

— Saia da pista, garoto! — Gritou a asiática na calçada. — Saia logo!

Parei. O sinal está verde, então porque eu deveria sair? Olhei outra vez para o semáforo do outro lado da rua. Está vermelho. Abri meus olhos ao máximo. Como isso aconteceu? Estava verde há dois segundos! Ouvi uma buzina frenética vinda de algum dos lados. Tentei me mexer, mas os meus músculos estão imóveis. Ouvi o som do freio do caminhão que está vindo em minha direção, pude olhar para ele, com a carga virando para o lado lentamente, vi o rosto de desespero do motorista e os gritos das pessoas na calçada. Eu vou morrer? Bom, parece que sim, e de uma

maneira bem comum. Só quero que essas pessoas parem de gritar! Porque estão fingindo que se importam se eu morrer? Cuidem de suas próprias vidas, seus estúpidos!

Os pneus rasparam no asfalto e levantaram fumaça; o caminhão chegou cada vez mais perto, então, no último instante, senti um peso sobre meu corpo e fui lançado para fora da rota de colisão.

Rolei pela pista e bati a cabeça na calçada para depois sentir algo pesado cair em cima do meu corpo. Levei minha mão ao meu cabelo e senti o sangue quente.

Adeus, dia tranquilo.

— Está maluco? — Perguntou a garota no meu ouvido. — Poderia ter morrido sabia? E ainda teria me levado junto! Idiota, tenha mais cuidado! Não viu o sinal vermelho? Por acaso não olhou

para os dois lados? Francamente!

Garota estúpida, por que foi arriscar sua vida? Arriscar a própria vida por outros é inútil. Ainda assim, eu olhei para ela, senti seu peso em cima do meu corpo, suas mãos em meu abdômen e seus cabelos caindo sobre meu rosto. Está doendo, mas isso é reconfortante.

— Não pedi para atravessar a rua e me salvar — respondi, com a voz fraca. — É estupidez, você poderia ter morrido. Não vale a pena se arriscar por outras pessoas, você não ganha nada com isso. É lógica. Não faça nada se não for ganhar algo em troca. E, além do mais, eu não conheço você e não faria o mesmo se estivesse em seu lugar. Então, por que fez isso por mim? — Ela me olhou, incrédula, o que me fez lembrar de outra coisa: “Porque os humanos são tão sensíveis?” — Eu não sei o seu nome, mas saia de cima de mim, está me machucando, por favor.

A garota apoiou todo o seu peso em cima de mim e ficou de pé, e a esse ponto, todas as pessoas na rua se reuniram em minha volta. Usei minhas mãos para tentar me levantar, porém, meus braços tremeram. É a perda de sangue. O caminhão descarrilou e parece não ter feito nenhuma vítima fatal além de uma gameleira que foi danificada pela parte da frente do veículo, que a atingiu em cheio.

— Você está bem? — A garota se ajoelhou ao meu lado. — Se machucou, não foi? Deixa eu ver... — Ela colocou a mão em minha cabeça, na ferida — é um corte feio e está saindo muito sangue.

Vou te levar ao hospital.

Olhei para ela. Estúpida, porque está perguntando se estou bem? Saia daqui e siga sua vida, isso é o certo a se fazer. Os olhos dela são um tanto tristes e profundos. Não gosto disso, não gosto do que não consigo entender.

— Estou bem. foi só um arranhão.

— Não consegue nem ficar de pé — tentei sentir a ferida com os meus dedos; tateei minha testa e encontrei-a, não é muito grande e nem muito grave, ou eu estaria inconsciente agora e não tentando convencer essa menina a ir embora. — Vamos, vou te levar ao hospital.

— Já disse, eu estou bem.

Respirei fundo e tentei ficar de pé, mas não consegui.

— Não seja estúpido — ela me ofereceu a mão — vamos, largue esse orgulho, segure minha mão e se levante. Eu salvei sua vida, é o mínimo que pode fazer para retribuir.

Relutante, eu segurei sua mão e me levantei, porém, assim que fiquei em pé, minhas pernas voltaram a vacilar e eu quase caí sobre ela. Realmente não estou bem. A garota me segurou e não me deixou cair. Droga, estou parecendo uma princesinha, e já perdi três minutos nisso.

— Vamos, então, se é o que você quer.

Coloquei o meu braço por cima do ombro dela

— Qual é o seu nome? Te vejo todos os dias e ainda não conversei com você, isso é uma vergonha.

As pessoas se dispersaram. Ainda bem. Tem um hospital bem perto daqui, e isso é outro motivo para que eu faça esta rota todos os dias. É mais seguro. Só tem uma coisa que eu não entendi, ou duas, na verdade. Primeiro: porque eu não consegui fugir? Se eu dou tanto valor a minha vida, eu deveria ter sido rápido e saído da rota de colisão. Segundo: porque ela está me ajudando? Já deixei claro que não darei nada em troca.

— Você perguntou alguma coisa? Não estava prestando atenção.

Seguimos para a esquerda, o Hospital de Sá fica na

esquina, há duzentos e vinte e quatro metros daqui.

— Perguntei o seu nome.

— Miguel — respirei fundo e verifiquei a minha cabeça, parece que o sangue estancou, não irei desmaiar então, espero — Miguel de Alcântara.

— Sou Maria — ela sorriu — Maria Valois.

— Uma Valois? Tem ascendência francesa?

— Não faço ideia.

Mas que droga. Estou conversando, porque estou conversando? Vamos! Se recomponha, Miguel! Não é nada, não é nada, não é nada! É alguma coisa, claro que é, tem algo diferente nos olhos dela, porque, mesmo depois de eu ter a esculachado, ela ainda está me ajudando. Será pena ou pura educação? De qualquer forma, alguém como eu não merece ser ajudado.

— Sraª Valois — ela me olhou assustada — porque está me ajudando?

— Meu nome é Maria, não Sraª Valois — ela respirou fundo — estou te ajudando porque eu gosto de ajudar as pessoas. Eu sei que para você isso não faz sentido, Miguel, porque, pelo o que eu ouvi em pouco tempo de...

— Quatro minutos de conversa — respondi, estou contando o tempo, como sempre.

— Porque, em quatro minutos de conversa, você acredita que ajuda só é feita para se receber algo em troca, não é? Acontece que eu estou recebendo algo em troca. Estou recebendo gratidão.

— Você chama isso de gratidão? — ri um pouco — estou sendo educado porque você está se dando ao trabalho de me carregar até o hospital, só isso. Não é gratidão. É conversação básica.

— O mundo não se resume a lógica e racionalidade. Você calcula tudo, né?

— Calculo.

O hospital surgiu em minha frente repentinamente, com isso, parece que eu fui pego de surpresa pela primeira vez na minha vida. Estava olhando para ela, não para frente. O que está acontecendo comigo? Não deveria nem estar conversando! Entramos no hospital e o cheiro de um

ambiente higienizado chegou em minhas narinas. Duas enfermeiras correram para me atender; fui levado para uma sala, recebi anestesia, três pontos e uma grande faixa na cabeça. Disseram que não foi nada demais, embora eu tenho muita sorte de ainda estar vivo, se não fosse por ela, eu estaria num necrotério agora. Deveria agradecer?

Maria me levou para minha casa, e cerca de 1h12min foram perdidas entre o atendimento e o caminho de volta. Meus pais morreram há muito, muito tempo, nem mesmo lembro-me deles, e meu colega de apartamento está viajando, e por isso, a casa é toda minha. Abri a porta. A garota entrou e me levou até o sofá.

— Onde estão seus pais?

— Mortos — isso não me incomoda mais — acidente de carro quando eu tinha dois anos.

Porque estou contando isso?

— Sinto muito, eu não queria lhe fazer lembrar disso.

A casa é pequena, porém, arrumada e limpa. Faço questão de deixar tudo perfeitamente organizado por número, tamanho ou ordem alfabética, e se sujo algo na pia, limpo imediatamente.

— Não se preocupe com isso, é perda de tempo.

— Vou avisar os professores — ela pegou a mochila e foi até a porta, mas antes, pegou um caderno, rasgou um papel e anotou um número, que jogou na mesa — se precisar, ligue. Tente se cuidar e não fazer nada estúpido. Você é do terceiro ano, certo?

Deitei no sofá e pus a mão sobre a testa.

— Sou.

— Te vejo amanhã, então.

Maria saiu e fechou a porta. As janelas da casa estão fechadas e as luzes estão apagadas, deixando tudo escuro. Fechei os olhos e me coloquei a pensar. Eu tenho uma prova de Física no quarto horário, deveria estar na escola agora, por mais que eu odeie aquele lugar, preciso suportá-lo

para conseguir uma vida digna no futuro. Meus pais eram ricos, a minha mãe era médica e o meu pai era um empresário do ramo de construções, e por isso eu tenho muito dinheiro, o suficiente para

viver o resto da minha vida em relativo conforto. O problema é que, se eu escolher viver no ócio, irei acabar doente. Deveria levantar e acender as luzes. Vamos, Miguel! O interruptor está a poucos passos de você, é só levantar e caminhar até lá.

— Maria! — gritei, na esperança de que ela esteja perto o suficiente para ouvir.

Um instante depois, a porta foi aberta.

— O que?

Como ela foi tão rápida?

— Ligue a luz, por favor. Estou com preguiça de me levantar — ela ligou a luz com uma expressão nada feliz no rosto — como você chegou aqui tão rápido? Estava na minha porta? O que você estava fazendo, exatamente?

— Me certificando.

A luz fluorescente logo acima dos meus olhos acendeu-se, e eu levei a mão para cima deles.

— Certificando de que?

— De que ficaria bem — ela não saiu de novo, só veio até o sofá e se sentou — você parece ser imprudente e irresponsável. Não poderia deixá-lo sozinho, seria quase um assassinato. Deveria espancar você por me fazer ligar a luz quando você mesmo poderia fazer isso. Seu idiota.

— É, eu sou um idiota — respondi — disso eu já sei.

Coloquei as minhas mãos sob minha cabeça, os meus olhos se adaptaram a luz. Seguiu-se um silêncio constrangedor por cerca de sete minutos. Olhei para a cozinha. O que eu vou almoçar hoje? Preciso de alguma coisa ou terei que ir comprar na rua. Sou um cozinheiro relativamente bom, porém, nesse estado fazer qualquer coisa é um tanto difícil. Precisarei da ajuda dela.

— Quer saber porque te ajudei? — continuei encarando a cozinha —, é porque eu me importo com as pessoas, ainda mais aquelas que precisam de ajuda, que realmente precisam de ajuda. Você sempre me pareceu triste, solitário e deprimido, e quando ficou lá, olhando o caminhão vindo em sua direção sem nem mover os olhos, eu não me contive. Tive que ir salvá-lo. E eu não estou arrependida, pelo menos, tive a chance de falar com você, já que sempre tem uma muralha gigantesca entre você e qualquer outra pessoa.

— Ajudar outras pessoas é inútil e conversar com a maioria delas é inútil também. Só faço o que preciso fazer e da maneira mais simples e prática possível. Seres humanos são extremamente fracos, idiotas e emotivos. São levados por puro desejo, não pensam em quem vão atingir no caminho, só pensam em si mesmos. É por isso que não falo com ninguém.

— Parece uma descrição de você mesmo.

— Eu sei — respirei fundo, minha voz está sonolenta — sou pior do que a maioria.

Maria se levantou e veio para o meu lado do sofá enquanto eu a acompanho com meus olhos cansados, quase fechados, sem nenhum interesse ou entusiasmo; ela pegou minha cabeça com delicadeza e a levantou, sentou-se e a colocou sobre suas pernas, então pôs-se a mexer no meu cabelo, suas mãos são tão macias e carinhosas que eu não pude protestar.

— Você não precisa se obrigar a ser assim, Miguel — ela disse em meu ouvido — o mundo pode ser um lugar fantástico se quiser vê-lo assim. Não vê as pessoas sorrindo quando passa na rua? Ou os pássaros comendo as migalhas que as crianças jogam? Isso tudo é bonito.

Olhei nos olhos dela. E sorri.