Pela Primeira Vez

Eu escrevia cartas.

Ah, mas não cartas comuns! Elas eram o meu trabalho. Eu as escrevia todo dia, de segunda a sexta, às vezes trinta ou cinquenta, em oito horas de trabalho diário.

As pessoas eram silenciosas naquele mundo. Ninguém conseguia expressar o que sentia. Contratavam-me para redigir votos de casamento para o seu amado, criar lindos textos de feliz aniversário para seus filhos, pedir perdão à namorada. Era tudo eu.

Depois de uma breve entrevista, onde eu pegava alguns detalhes sobre aquele ser o qual eu iria endereçar uma carta, eu escrevia. O texto, que sempre era elogiado no final, não tinha sentimento algum. Era somente ilusão, palavras.

Fiz isso por tantos anos que me vi descrente dos parágrafos; tempo demais para começar a não sentir mais nada em minha vida.

Quando ia e vinha as datas comemorativas das pessoas próximas, a quem eu deveria amar e escrever, não conseguia pôr um rabisco sequer no papel. Meus sentimentos estavam inertes; quanto menos eu sentia, melhor escrevia para as outras pessoas.

O tempo foi passando e fui me aperfeiçoando. Nas laudas, usava a técnica de relembrar as alegrias daqueles que liam. Lê felicidades que um dia haviam vivido, fazia-os acreditar que poderiam presenciar aquilo de novo. Funcionou. Todos queriam os meus serviços. Tornei-me a melhor escritora de cartas!

Uma delas foi uma mulher, robusta, de pele clara e ar de superioridade. Precisava de uma carta de perdão ao marido, depois de tê-lo traído. Era um pedido comum que eu recebia; suplicas em desespero das pessoas temerosas!

Assim como os outros que sempre me procuravam para escrever seus perdões, aquela mulher parecia não se importar de fato com o que tinha feito. Apenas desejava ser perdoada e como não se importava o suficiente para conseguir fazer por si própria, procurava o serviço de pessoas como eu; aqueles que haviam deixado de sentir para conseguir fingir sentir.

Durante a breve entrevista, fiz as perguntas de praxe. Em todas, a mulher respondeu após alguns breves instantes pensando, enquanto olhava para cima, parecendo esperar por uma iluminação divina. Quando a indaguei sobre os momentos felizes com o marido, os instantes se transformaram em minutos. Sua perna cruzada balançava, não parecendo ter ideia da resposta.

- Momentos felizes com Ele.... - Repetiu, esperando sua iluminação.

Não houve resposta.

- E os pequenos gestos Dele? Quais recorda? - Insisti.

A única reposta foi "não me lembro de nada, não reparo muito Nele."

Teria de fazer a carta sem utilizar da minha técnica. Seria uma tarefa árdua, escolhi dedicar-me a ela durante todo aquele fim de semana.

No final dos dois dias, não havia nenhuma tinta sequer no papel. Cada vez que tentava, minha mente desistia, focando sua atenção em outra coisa; na mulher. Ela parecia ser mais indiferente ainda que os demais, não dando importância nenhuma àquele Homem que ela desejava que a perdoasse. Logo minha visão procurou a sua mão, mostrando seu dedo vazio. Ela não usava aliança.

Ah, e ela não reparava Nele. Até os casais mais desligados que eu havia conhecido, sabiam recitar algum pequeno gesto do seu parceiro. Fosse o cabelo desgrenhado pela manhã ou o toque singular do seu cheiro ao sair do banho. Todos sabiam citar alguma pequena coisa. Aquela mulher não.

Nem um momento alegre ela soube me contar!

Pouco me importava aquela mulher! Eu precisava conhecer aquele Homem. Tentaria eu mesma ir atrás desses pequenos nuances. Só assim conseguiria trabalhar naquela súplica.

Eu tinha seu nome, tinha seu endereço. Ele era um palestrante, não dos melhores.

A primeira vez que o vi, eu estava na plateia.

Apreciei sua fala cortada, seus olhos pretos encarando cada um dos presentes, seu sorriso tão sincero. Em alguns poucos segundos de deslumbre, me vi afogada naquele Homem.

Misterioso, parecia desviar das perguntas que o faziam, usava casaco mesmo no verão e, quando ninguém estava olhando, mostrava um semblante de cansaço.

Como aquela mulher não pôde conseguir citar um único trejeito daquele ser, quando Ele possuía todos aqueles enigmas tão berrantes!

Quis saber o que o atormentava, queria conhecer o que o deixava tão cansado.

Passei a observa-lo incessantemente. Ficava na porta da sua casa, vendo-o sair com uma mochila de rodinhas, enquanto cruzava as ruas espalhando o seu barulho.

Tão infeliz era aquele Homem! Ele gritava a sua infelicidade em cada gesto. Como aquela mulher não podia perceber?

Ela não precisava do seu perdão! Ela necessitava fazer daquele Homem alguém feliz!

Ele merecia sorriso, por que não? Ele era uma criatura deslumbrante! Eu conhecia isso mesmo sem trocar uma única sílaba com Ele.

O observar bastou para eu ter a certeza de que Ele era o ápice do que alguém poderia ser. Afinal, os seres não precisavam ser felizes, perfeitos, acabados.

Bastava serem como Ele; infelizes, imperfeitos, inacabados. Ele ainda estava em construção, e mesmo assim resplandecia uma beleza inalcançável aos outros.

Enquanto eu o admirava, a mulher me pressionava para redigir a maldita carta! Não conseguiria fingir pedir perdões para Ele! Àquele Homem, eu apenas queria me abrir! Foi o que fiz. Escrevi a carta das cartas, relatando seus pequenos nuances e o quanto eles eram invejáveis. Ele era imperfeito, ah, como era! Mas era perfeito em sua magnitude tão imperfeita! É fácil ser primoroso, difícil é tornar os seus defeitos coisas primorosas. Isso, aquele Homem fazia com imensa maestria. Foi tão natural pôr tudo aquilo no papel!

- Pedi uma carta de perdão por uma traição! - Reclamou a mulher, após ler o trecho. - Não é isso o que vejo!

- Apenas o entregue. Será o suficiente. – Garanti-lhe.

Não tinha certeza se era o bastante. Mas era o que eu sentia. Céus, o que eu sentia! Em anos, me vi sentir algo!

O escrito deu tão certo que a mulher voltou para um segundo. E, depois, para um terceiro. Segundo ela, Ele se apaixonou por aquelas palavras.

Quanto mais eu sentia por aquele Homem, enquanto o observava e escrevia as cartas que eram entregues no nome da mulher, menos eu conseguia grafar linhas para os outros clientes. Tudo se tornou uma mentira, uma ilusão! Eu não poderia escrever mais daquilo!

Só conseguia me soltar quando aquela mulher me pedia para escrever para Ele. Ali, eu deixava que todo aquele sentimento, que passei tempos sem tocar, transbordar-se.

Enquanto eu reconhecia que amava aquele Homem, tornei-me a pior escritora de cartas!

Só permaneci a escrever em nome daquela mulher, pois só conseguia dizer algo aquele Homem.

Cada nova semana que eu passava à espreita, observando-o, fosse nas suas palestras ou nos arredores da sua casa, eu o encontrava mais radiante. As cartas, que Ele acreditava serem da sua esposa, faziam-no feliz. No seu olhar, havia o brilho do descobrimento, como se tivesse acabado de olhar para uma chama.

Pensava em me relevar, contar-lhe que tudo aquilo não passava de mim, a jovem que tinha acabado com sua carreira após começar a sentir. Mas do que adiantaria? Daria um fim à ilusão Dele. O seu olhar cabisbaixo, que tentava manter escondido dos outros, voltaria.

Jamais desejaria ser o vetor da sua tristeza! Eu o amava, eu o sentia. Enquanto eu sentisse, poderia escrever-lhe as mais belas cartas, que o deixaria feliz.

Manter-lhe na ilusão era a melhor forma que tinha de provar que eu o amava! Não precisava mostrar a ele tal indício; eu fazia em sussurro, para mim mesma, sentindo como era maravilhoso sentir!