AO SABOR DAS MARÉS

Já passava das seis da tarde quando Regina estacionou o carro na praia da Barra da Tijuca. Naquele dia o calor não estava tão intenso e havia uma leve brisa junto ao mar. Nem sempre ela corria na beira d’água porque, às vezes, a areia estava fofa e íngreme, e era quase impossível se exercitar ali a não ser para quem já estava habituado, o que não era seu caso. Fazia apenas três semanas que tinha se mudado para o Rio de Janeiro. Regina correu por trinta minutos, depois se sentou à beira d’água, e ficou olhando as ondas enquanto se lembrava do longo caminho que a levou até o litoral.

Antes de chegar em terras cariocas, primeiro ela foi morar em Porto Alegre. Essa mudança deveu-se a um envolvimento amoroso. Regina havia conhecido Henrique numa festa em um clube de sua cidade, no interior do Rio Grande do Sul. Houve interesse e atração de parte a parte. Após dançarem por um bom tempo, os dois ficaram a conversar. O rapaz sedutor se encantou pela moça formosa. Foi preciso um só encontro após o baile para logo começarem a namorar. Parecia que seriam felizes para sempre. No entanto, com o tempo, Henrique foi se mostrando cada vez mais possessivo. Regina acabou a faculdade de jornalismo antes que o rapaz terminasse seu curso de medicina. Quando ela falou que ia mandar o currículo para jornais e revistas, Henrique foi radicalmente contra.

_Barbaridade! De jeito nenhum! – falou ele. Não há necessidade de tu trabalhares fora. Eu vou ser o provedor do casal. Não quero que fiques dividida entre tuas tarefas de casa e o trabalho, sem ter tempo para mim. Mulher minha não trabalha fora e ponto final! Estamos conversados.

Henrique ficou amuado e chegou a ameaçar acabar com o namoro caso ela insistisse em procurar emprego. Embora Regina achasse que aquela atitude era absurda, ela estava tão irremediavelmente apaixonada que não conseguia sequer conceber sua vida sem o namorado. Os dois passaram brigados por mais de uma semana, mas ao final deste tempo, ela capitulou. Ao marcarem um novo encontro, Henrique usou de toda a sua lábia para convencê-la a fazer as pazes. Para mostrar que falava sério quando dizia que a amava, Henrique deu-lhe um presente. Ao abri-lo Regina viu um par de alianças. Ela não cabia em si de felicidade. O próximo passo do rapaz foi falar com o pai dela. Ainda era cedo para marcar uma data para o casório, entretanto, já demonstrava que tinha boas intenções.

Regina começou a fazer o enxoval sem pressa, mas não tinha muito com o que se ocupar. Apesar de formada, não ingressou em nenhum curso. Além disso, ela acabou se afastando das amigas devido ao ciúme do rapaz. Com uma noiva tão faceira, Henrique não queria correr riscos. Ele implicava com tudo, mesmo que fosse com uma mera saída só de gurias para ir ao cinema do bairro. Ele sempre achava que alguém ia mexer com ela ou que lhe diria alguma gracinha. Era tanto tormento que ela começou a dar uma desculpa atrás da outra para não ir se juntar às amigas até que, com o tempo, elas pararam de procurá-la, e assim Regina ficou ainda mais só. A insegurança dele foi crescendo mesmo assim. Chegou ao ponto dela só poder sair na companhia da mãe ou dele, do contrário, ele não admitia. Bem que D. Rosa tentou alertar a filha para esse amor doentio, mas Regina não tinha olhos nem ouvidos para ninguém a não ser para o noivo. Ele a fazia feliz, tanto no plano amoroso quanto no físico. Henrique era um gaúcho guapo, tinha sido seu primeiro e único homem, e sabia despertar em seu corpo sensações que jamais pensou que existissem. Enfim, Henrique era seu grande amor, e isso era mais importante do que tudo.

Um ano e meio se passou e o pai de Regina começou a pressioná-la. Afinal, para quando era o casamento? Ela não sabia mais o que dizer, mas achava que seria em breve embora não soubesse precisar quando. No final do ano, Henrique chegou um dia todo empolgado, dizendo que havia conseguido um emprego num hospital em Porto Alegre. Ele ia começar em janeiro. A princípio iria dividir um apartamento com um colega que também havia sido contratado e depois, com calma, ele iria procurar um cantinho só para o casal, e então, poderia desposá-la e se mudariam para lá. Regina ficou numa alegria só. Todo o sacrifício estava chegando ao fim.

O mês de janeiro começou e acabou. Tudo ia indo bem. Henrique parecia entusiasmado com o novo emprego. Os colegas mais experientes eram prestativos, mas ele tinha muito que estudar para corresponder às expectativas. Havia se inscrito em várias palestras ministradas pelo pessoal do hospital e por convidados. Ao chegar em casa exausto, ainda tinha que dar conta de ir ao supermercado, lavar e passar sua própria roupa, porém o esforço valia a pena porque ele estava aprendendo bastante. Ele realmente acreditava que este era o caminho certo para a sua realização profissional. Regina ficava alegre pelo noivo, porém ele mal tinha tempo de ouvi-la. Só ele falava, mas na verdade ela não tinha muito a dizer já que sua vidinha era a mesma de sempre, contudo, se ele estava satisfeito, ela não tinha porque reclamar já que ele estava investindo no futuro do casal.

Com o tempo as visitas de Henrique começaram a ficar cada vez mais espaçadas até que um dia ela reclamou para valer:

_Amor, tu quase não tens tempo para mim! Tu antes vinhas me ver com mais frequência. Até parece que tu não sentes mais minha falta!

_Bah, minha prenda, te acalmas. Por que isso agora? – disse ele em tom conciliador. Estou sempre às voltas com um curso ou outro, e não disponho de tempo para ficar me deslocando para lá e para cá. Tu tens que ser mais compreensiva e entender que estou assoberbado, mas tu sabes que te amo e sinto saudades tuas também.

Foi preciso muita paciência e juras de amor eterno para acalmá-la, mas isso ele sabia fazer como ninguém.

Passados seis meses a coisa só fez piorar. Na última vez que Regina viu Henrique, ela sentiu-o um tanto estranho. Parecia meio entediado e até mesmo na cama, não havia sido como antes. Não foi aquela paixão avassaladora. Ela estava por demais carente, saudosa e sedenta do corpo dele, mas o noivo parecia distante. Quando ela fez uma observação sobre o seu comportamento, ele respondeu:

_Mas barbaridade! Tu és mesmo uma ingrata. Nunca estás satisfeita. Tu só pensas em ti mesma. Egoísta, isso que tu és! Tu não vês o baita sacrifício que faço, enfrentando horas de estrada para te ver? Não, tu não reconheces. Não vês que estou esgotado? Tu és incapaz de me compreender, tchê!

Isso foi o suficiente para ele se levantar da cama, vestir a roupa e sair do quarto, batendo a porta. Ela deixou passar alguns minutos para que ele se acalmasse. No entanto, ao chegar à saleta do motel, Regina reparou que a mochila de Henrique não estava ali, nem ele também. Ele havia ido embora. Ao telefonar pedindo a conta, descobriu que ela já tinha sido paga. Saber que seu noivo a deixara no motel era demais. Regina pediu um táxi e foi para casa sentindo-se péssima.

No dia seguinte, Regina tinha hora marcada com o dentista, mas como sua mãe não estava bem, resolveu ir sozinha mesmo assim. Henrique não teria como adivinhar. Ao sair do consultório, encontrou Paula, uma amiga dos primeiros tempos da faculdade, mas que logo tinha se mudado para Porto Alegre. Começaram a conversar e Paula logo notou que Regina não estava bem. Foram almoçar juntas e colocar o papo em dia. Paula ficou horrorizada ao ver que sua antiga colega antes tão determinada e autoconfiante havia se transformado numa moça extremamente submissa e frágil. Ao ouvir sobre a briga do casal, Paula deu uma sugestão à Regina:

_Por que tu não fazes uma surpresa para o Henrique?

_Como assim? – indagou Regina.

_Tu não tens o endereço dele em Porto Alegre?

_Tenho! – respondeu Regina.

_Então, é isso! Apareça lá sem dizer nada e façam as pazes. Tenho certeza de que ele vai amar. – disse Paula otimista.

Enquanto Paula foi ao toalete, Regina ficou pensando a respeito do conselho, e finalmente resolveu aceitar. Ficaria hospedada na casa da amiga e faria uma visita ao noivo para acabar com aquela situação. Que mal poderia ter?

As duas combinaram tudo. Foi só o tempo de Regina passar em casa para pegar umas peças de roupa e ir ao encontro de Paula, que esperava lá embaixo no carro. No caminho para Porto Alegre elas foram conversando. Ao saber o endereço de Henrique, Paula se surpreendeu. Ficava no mesmo prédio onde uma tia morava. Era uma senhora já bem idosa, mas por quem nutria um enorme carinho. Era uma ótima coincidência. Elas poderiam fazer uma visitinha para a velhinha e ver se encontravam Henrique meio que por acaso.

As moças foram para a residência de Paula. Lá chegando, Regina tomou um banho, mudou de roupa, e depois foi com a amiga ver a tia de Paula. Quando se aproximarem do prédio, as mulheres pediram para o porteiro interfonar para a tal senhora, depois subiram no elevador com um entregador de pizza. Todos iam para o mesmo andar. Ao chegarem ao terceiro pavimento, elas viram quando o rapaz se dirigiu para um apartamento próximo ao da velhinha. Elas tocaram a campainha e ficaram esperando a senhora abrir, mas logo a anciã disse que esperassem um pouquinho, pois não estava encontrando as chaves. Ao perceber que o moço havia tocado justamente no apartamento de Henrique, Regina recuou e se escondeu atrás de um grande vaso com uma palmeira. Ela ouviu quando alguém abriu a porta e o entregador falou:

_ São R$ 47,00.

_Tu tens troco para cem? – perguntou um homem.

Era Henrique. A voz dele era inconfundível. O coração de Regina ficou aos pulos e ela fez sinal para Paula, que imediatamente entendeu quem era o sujeito que estava a poucos metros. De onde Paula se encontrava ela conseguia vê-lo. Estava descalço, sem camisa e com uma calça jeans com o cós desabotoado.

_Não tenho, não. O senhor devia ter avisado antes. – desculpou-se o jovem.

_Não tem problema. - respondeu o homem. E então ele se virou lá para dentro e disse:

_Amor, tu tens uma nota de cinquenta para me emprestar? O guri não tem troco para cem.

Paula ficou apavorada quando viu a expressão de espanto da amiga ao ouvir a palavra “amor”. Mas o pior ainda estava por vir. Uma voz feminina falou lá de dentro:

_Tenho sim, benzinho, vem aqui buscar.

Ao ouvir essas palavras, Regina saiu de trás da palmeira, passou pelo entregador e entrou no apartamento. Havia um pequeno corredor, em frente à sala, que deveria dar para o quarto. Regina respirou fundo, engoliu em seco e foi andando devagar, tentando não fazer barulho, mas chegando lá, ficou estarrecida com o que viu. Em cima da cama havia uma loura bonita com um corpo violão, usando lingerie vermelha. Estava sentada, mexendo na bolsa e a seu lado, beijando seus pés, estava Henrique todo derretido. Ao sentir a presença de alguém na porta do quarto, Henrique mal pôde acreditar em seus olhos. Era Regina! Ela estava branca como cera e olhava aturdida para ele. Henrique levantou-se de um pulo, mas tropeçou no scarpin da loura e caiu no chão. Regina foi mais rápida e saiu porta afora. Aproveitou que o elevador ainda estava no andar e desceu. Paula que havia finalmente entrado no apartamento da tia, não teve tempo de acompanhar a amiga. Tampouco pôde Henrique fazer algo já que ao cair, deu um jeito no pé, e quando finalmente chegou pulando até a porta, o entregador não o deixou passar, dizendo que só iria sair dali quando recebesse o dinheiro da pizza. Por um lado, Henrique ficou incomodado com a situação, mas por outro, deu graças a deus. Na verdade, há muito tempo que ele queria dar um ponto final naquela relação, mas não sabia como. Melhor assim. Ele não precisaria mais se preocupar com a noivinha do interior.

Quanto à Paula, chegou a chamar o elevador de serviço, mas ao chegar lá embaixo, não viu nem sinal da amiga. Ela havia sumido. A sorte é que Regina estava com o celular. Embora Paula tentasse falar com a amiga por diversas vezes, Regina não atendeu às ligações. Paula achou que, apesar de tudo, Regina não faria nem uma coisa descabida. Ela apenas precisava ficar sozinha e quando estivesse mais calma, faria contato. Ou pelo menos, era isso que esperava que a amiga fizesse.

Regina saiu do prédio quase que correndo, mas para sua surpresa, Henrique não a seguiu. Não ligou para ela, nem mandou um Whatsapp, um torpedo, nada. Pelo visto ele estava pouco se importando com o desfecho daquela situação. Só mesmo ela, a boboca, que achava que ele ainda se interessava pelo seu destino.

A moça perambulou pelas ruas do bairro como se estivesse anestesiada. Ela não conseguia entender onde tinha errado. Há quanto tempo Henrique a estaria enganando? Ela havia parado com tudo em sua vida em função do noivo e ele se divertindo com outra!

Lá pelas dez da noite, ela já estava cansada de tanto andar e pensar. Ao ouvir o celular tocar mais uma vez, viu que era Paula e atendeu.

_Alô?

_Barbaridade, Regina! Estou tentando falar contigo há horas. Onde tu estás, guria? – perguntou Paula agoniada.

_Não sei.

_Olhe em torno, mulher. Não tem nenhuma placa de rua perto? Ou alguma loja, lancheria?

_Deixe-me ver. - falou Regina. – É...tem um shopping. Quer dizer, acho que é um shopping. Iguatemi, esse é o nome. Conheces?

_Claro, tchê! Fique perto da parada, sempre tem movimento por causa do ônibus. Daqui a pouco estou aí para te buscar.

Não levou mais que quinze minutos e Paula veio resgatar a amiga. Levou-a para casa, fez com que comesse algo e colocou-a para dormir.

Regina rolou na cama por um bom tempo. Quem mandou recusar o calmante que a mãe de Paula oferecera? Mas ela não gostava dessas coisas.

No dia seguinte Regina acordou com umas olheiras enormes, e sem disposição, mas Paula a convenceu a dar uma volta para espairecer. O passeio fez bem. Após muita conversa Paula sugeriu que a amiga se mudasse para Porto Alegre. A cidadezinha de onde vinham era muito pequena e em breve todos estariam comentando sobre o assunto. Seria uma droga ver as fofoqueiras de plantão, falando sobre o noivado desfeito. Além disso, a irmã de Paula havia se mudado para o Rio de Janeiro e seu quarto estava vago. Aquele convite veio mesmo a calhar.

Regina falou com a mãe pelo telefone, contando por alto o que tinha acontecido. Apesar de triste pelo sofrimento da filha, D. Rosa se sentiu mais leve. Nunca tinha mesmo simpatizado com aquele homem que só fazia podar a filha, e que em vez de colocá-la para frente, tratava de escondê-la do mundo. Foi com emoção que ela tentou acalmar a filha, dizendo:

_Querida, tu podes deixar que conto tudo ao teu pai. Ele também já está de saco cheio desse cara, e vai achar que o pilantra já foi tarde. Não te preocupes. Quando vieres pegar tuas coisas, a mala já estará pronta. Conhecemos bem os pais de Paula e sabemos que tu estarás bem. Vamos fazer o que for possível para que tu te esqueças desse traste e aches a felicidade ao lado de quem te mereça de verdade.

Após dois anos vivendo em Porto Alegre, Regina achou que era hora de dar outra guinada em sua vida. Era bem verdade que jamais tinha encontrado Henrique. Havia conhecido outros caras, sim, mas ninguém que realmente valesse à pena. Ao receber uma proposta para trabalhar como repórter em uma revista no Rio de Janeiro junto com a irmã de Paula, aceitou sem pestanejar. Era hora de se deixar levar pelo destino. Quem sabe onde tudo isso ia dar?

Agora ela estava em uma praia do litoral carioca, em pleno verão, vendo onda após onda chegar aos seus pés enquanto a maré subia. Regina chegou um pouco para trás a fim de não se deixar molhar por inteiro. Ao olhar para baixo novamente, seus olhos perceberam um objeto bem na beirinha d’água. Ele faiscou só por alguns segundos e depois foi coberto pela espuma. Ela se levantou, deu alguns passos e se ajoelhou para ver do que se tratava. Era uma garrafa. Ao levantá-la, notou que dentro havia um papel! Seria um pedido de ajuda? Uma mensagem de alguém em perigo? Ou alguém que também teria sofrido por amor, mas que estaria disposto a recomeçar? Que segredo o mar reservava para aquele final de tarde? Regina pegou suas coisas e foi para casa. Ao chegar ao apartamento tratou logo de abrir a garrafa. A mensagem era a seguinte:

“Aqueles que acreditam no amor não se desesperam. Uns se vão, outros se chegam. Estarei esperando por ti.” Rafael / Escuna Ventania / Armação de Búzios.

Regina sorriu. Quem sabe estava ali o fio da meada da sua primeira matéria para a revista? Estava intrigada. Seria o texto apenas mais uma história a ser publicada ou era a promessa de um novo amor em sua vida? Amanhã começaria as investigações.

BETH RANGEL

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 18/06/2017
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