reticente

     Ela estava deitada. Não dava pra saber com o que sonhava, mas agarrava o travesseiro com força. Deitava de lado, com os cobertores nas pernas e a tranquilidade que só uma estrela de rock ao terminar uma turnê conhece. Por isso eu a invejava. Não conseguia mais dormir daquele jeito. Não havia mais luz sequer dentro de mim capaz de passar aquela calmaria a qualquer pessoa que me visse dormir. E ela não fazia careta, não demonstrava sentimento algum a não ser uma intensa interna paz, mas ainda apertava o travesseiro. Suas mãos, pequenas como o que restou de minha esperança, não o soltariam por nada neste mundo—e talvez nem em algum outro. Como isso é possível? Eu me perguntava quando a via sorrindo ou me ensinando suas inocências e seus amores. Besteira, ainda em pensamento eu concluía. Mas é uma linda besteira. Ela é honesta consigo mesma. Conseguia chorar de verdade quando se entristecia. E isso só aconteceu uma vez. Ou eu só vi uma vez.

     Era o primeiro dia de primavera. Ainda fazia frio e andávamos de mãos dadas. Atravessávamos um parque. Árvores cobriam nossas cabeças e flores o chão. Então nossos risos pararam. Nossa felicidade, nossas caretas, nossos corpos. Ela já não sorria mais, só olhava para baixo.
     “O que houve?” eu perguntei.
     “Estão mortas. . .”
     “Quem?”
     “Elas,” ela me apontou o chão. “Estão mortas e estamos pisando nelas. Isso não te chateia? Não te revolta?”
     “E por que me revoltaria?”
     “Porque elas não estão mais cheirosas. Porque elas nunca mais conhecerão olhares atônitos com suas belezas. Porque não serviram para um buquê. Não foram boas o suficiente para embelezarem um lugar mesmo depois de mortas. Nem para serem entregues como símbolo de amor. . . Mesmo depois de mortas,” então ela ergueu sua cabeça e me olhou. Pude sentir sua energia naquela hora. Pude sentir que nada nela era falso, que nenhum sentimento era mentira e que nada jamais seria. Ela era intensa a cada palavra, a cada sobrancelha levantada e lágrima derramada. E não era água que caía de seus olhos, mas sim pequenas esferas de fogo vindas diretas de sua alma. E não vinham em raiva, porque ela era incapaz de tal perigoso sentimento. Vinham por paixão, por amor a tudo o que nascia. Por afeto ao desconhecido e fé que nele nada de odioso tinha. Ela se abaixou e, com uma das mãos, me pediu para fazer o mesmo. Pegou uma flor e a manteve perto do próprio rosto, observando cada detalhe, cada tonalidade de cor. Eu a olhava com a atenção que ela olhava a flor até o momento que nossos olhares se encontraram. Só eu que mantinha o desespero da confusão. Então ela ergueu o braço me estendendo a flor, e depois que eu a peguei de seus cuidados ela jogou o próprio corpo em cima de mim. Seus joelhos tocaram o chão e seu queixo meu ombro.
     “Calma, amor. Tá tudo bem.”
     “Não,” ela me respondeu. “Não está. . . E também não ficará.”

     Ao término daquela frase eu senti que nossa vida juntos encontraria logo o mesmo destino que daquelas flores. Só que para minha felicidade, talvez, nosso tempo durou e durou bastante. Agora, ao seu lado tão vulnerável, eu me esforçava para não afogá-la em meu quieto choro. Eram finos, quase invisíveis, os riachos que se formaram abaixo de meus olhos. Eu sabia que meu rosto se molhara, mas diante do espelho nada encontrava. Não havia indícios de água, como se eu fosse um deserto. Queimando aqueles que se perdiam e projetando miragens até aos que me conheciam por anos. Sem um maldito oásis.
     “Bom dia,” eu ouvi quando saí do banheiro, terminado de esfregar uma toalha em meu rosto. Seus olhos castanhos brilhavam todas as manhãs como uma estrela gigante vermelha. E eu me sentia engolido por eles sempre que se arrastavam por minha pele. Me abriam e me devoravam. Me destruíam de dentro para fora, e isso era lindo. Eu gostava. Eu gostei quando nos conhecemos. Eu gostei em nossa primeira manhã juntos ainda com nossas pelas queimadas pelo pecado. “Aonde você vai?” ela me perguntou com uma suave curiosidade e eu não soube como responder. A encarei, olhei para o chão disfarçadamente, para suas calças jogadas, para suas roupas íntimas, para seus olhos novamente, para a janela e para as cortinas e para meus tênis em meus pés e finalmente para seus olhos mais uma vez. Uma última vez. Quis memorizá-los, tatuá-los para toda a eternidade em meu subconsciente. Achei ter feito as pazes com minha péssima memória nessa madrugada.
     “A lugar nenhum,” respondi ciente do futuro. De nós dois. Eu respondi com seus olhos me encarando e a luz do sol me dando belos motivos para não sair. Ela tinha sentado na cama e seus olhos não eram as únicas esferas que me encaravam, embora fossem as únicas que prendiam minha atenção a ela.
     “Então porque você não tá aqui comigo?”
     “Eu ia comprar pão. . .”
     “Não. Não precisa,” um vazio nos abordou preenchendo a distância entre nós. Ela deitou, de lado como antes, porém o travesseiro agora repousava debaixo de sua cabeça. “Vem,” ela me pediu após fechar os olhos. “Vamos morrer de fome.” O sol dominou quase todo o quarto e ela flamejava na cama. Tirei meu tênis e a calça e fiz o que me pediu. No meu lado da cama o sol não tocava. Encostei meu nariz em seu cabelo e uma mão à sua barriga. A apertei, a senti quente. Ela entrelaçou sua mão à minha e eu fechei os olhos apertando-a como se ela fosse a personificação de minha felicidade.
Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 24/05/2017
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