AS PROFISSIONAIS (UMA HOMENAGEM A BELCHIOR)

O avião iria pousar no Aeroporto Santos Dumont, no centro do Rio, em vinte minutos. Para se distrair olhava no celular. Em destaque as fotos da última manifestação contra o governo do partido de extrema esquerda que fazia parte. Era presença frequente nestas ocasiões, mas não pudera ir naquela pois estava em uma reunião importante, onde fora escolhida como coordenadora de pesquisa de uma grande multinacional:

"Perdão se perdi o pique,

Mas se a vida é um piquenique

Bastam os heróis de boutique

Dos chiques profissionais"

Deu um pequeno sorriso triste. Os Profissionais... Quantas e quantas vezes ele lhe cantou essa música desconhecida do Belchior? Jogando na sua cara a hipocrisia da relação entre as suas ações e convicções. Justamente ele, um homem casado que de quem era a amante? Fazia isso sem raiva, sem tentar provar nada, com genuína alegria. Como se o descompasso entre o que ela acreditava e fazia fosse a coisa mais natural do mundo. Aquilo a emputecia ainda mais. Quantas besteiras fez tentando enfiar aquele sorrisinho pela goela dele abaixo? Quase como uma maldição agora o ouvia cantá-la em sua cabeça praticamente a cada conquista profissional desde que terminaram. Que como ele previu, foram muitas. E que, como sempre, ela nunca acreditou que aconteceriam: "Você é incrível! Assim que aprender a ser mais maleável e sofrer várias desilusões, será uma hipócrita com um futuro glorioso." Acessou a página da agremiação no Facebook e se desligou: "Com este ato eu renego solenemente aos meus sonhos":

"Eu não estou interessado em nenhuma teoria

Em nenhuma fantasia, nem no algo mais.

A minha alucinação é suportar o dia-a-dia

E o meu delírio é a experiência com coisas reais"

Olhou pela janela do avião. Era um dia nublado, então não se conseguia ver muita coisa: "Satisfeito, meu amor?". Quando se conheceram ele não conhecia essa música, Alucinação. O que era impressionante, já que idolatrava o Belchior. Depois que ela lhe deu o CD virou quase um hino. Cantava o tempo todo, como se quisesse através dela se convencer de alguma coisa. Se arrependimento matasse! Mas era a adequada para o momento. Chega de ilusões.

Estava voltando de São Paulo. Ainda não conseguia acreditar no que fizera. De novo ele havia conseguido fazer com que ela traísse todos os seus pretensos escrúpulos. Contratou uma detetive particular de uma conceituada agência para investigar a vida dele, mas principalmente a dela. Com a maior parte da conta paga pela empresa.

Havia se encontrado com a investigadora em um café dentro do Centro Cultural São Paulo, no Paraíso. Chegou umas duas horas antes. Sentou-se ali, na mesma mesa de antes. A mente vagueando nos shows, vernissages e peças aos quais esperavam ali para assistir. Ou ficavam depois para comentar. Nas separações e recomeços. Nas discussões entre dentes sobre fúteis questões de vida e morte. Nos problemas sem solução que se solucionaram sozinhos. Quando a detetive chegou encontrou-a chorando e olhando para o vazio:

-Tudo bem?

-Desculpe. Muitas lembranças. Sente-se, sente-se. Trouxe o relatório?

-Sim, está aqui. Como você pediu. Estritamente profissional.

-Certo... Não sei como começar. Nunca fiz isso antes.

-Pergunte o que você quiser. Você pagou a mais e por fora justamente por isso.

Olhou bem para ela. Tinha uns trinta e seis anos, mulata, graciosa de corpo sem ser exuberante. Não se encaixava em nenhum esteriótipo de sua profissão:

-Ele é feliz?

-Algum dia ele foi?

A resposta a assustou. Mas tentou manter a pose:

-Como assim?

-Olha, ele continua casado. Os filhos dele são lindos. Mantém o emprego. Vai na igreja e no grupo de auto-ajuda. Tem sempre um sorriso no rosto e uma palavra amiga se você precisar. Isso eu sei dizer.

-Você o conheceu?

-Sim.

-Como? Digo, ele desconfiou de alguma coisa?

-Hahaha. Não. De nada. Foi o dinheiro mais agradável que já ganhei. Fui ao grupo que ele frequenta, me apresentei e pedi que ele me aconselhasse. Daí era só perguntar que ele respondia. Na verdade conversamos um monte de coisas relacionadas a mim. Ele é muito gente boa.

-Eu sei, eu sei. Gente boa demais. Apertou bem forte uma mão contra a outra. Demorou uns trinta segundos para conseguir fazer a pergunta:

-O que aconteceu com ele há três anos atrás? Sua voz saiu trêmula.

-Quando ele não foi no encontro que marcaram?

-Isso.

-Ele não conseguiu. Você me deu instruções específicas para saber o que houve nessa data. Mas não precisei nem perguntar. A estória que eu inventei envolvia se encontrar com um antigo amante. Ele me sugeriu que não fizesse isso. Estaria "colocando minha recuperação em risco". E daí, para ilustrar seu ponto, me contou o que aconteceu. Que nesse dia a cabeça dele entrou em tamanho parafuso que saiu de uma abstinência de pouco tempo. A coisa toda acabou em uma internação logo depois. Passado um ano e meio a esposa dele usou a filha para vasculhar o computador deles e descobriu as conversas entre vocês dois. Ele achou que as tinha apagado completamente. Ela teve um surto psicótico, quebrou um notebook na cabeça dele e fez a filha te contactar fingindo ser ele. Nas palavras dele: "Tudo tem perdão, menos isto...". A senhora está bem?

As lágrimas rolavam em abundância, quase não conseguia enxergar:

-Tudo tem perdão! Tudo tem perdão... Espera um pouco. Vai passar.

Que ódio! Que ódio! Tinha sentido tanta raiva, tanta... E de novo tinha lhe dado uma carga maior do que ele aguentava. Era um fraco, isso sim. Mas como isso era possível? Depois de tanta dor que ele lhe causara, ainda se sentia mal por saber que havia-o machucado:

-Desculpe. Não achei que ainda doesse tanto.

-Tudo bem. Eu entendo. Não sei se serve de consolo, mas ele também chora quando fala de você.

-Consola um pouco sim. Mas isso eu já imaginava. Começou a cantarolar:

-"Quando não tinha este olhar lacrimoso,

Que hoje eu trago e tenho..."

-Nossa, ele cantou a mesma música. É de um cantor que usava um bigodão, não é?

-É... por que ele a cantou?

-Ele falava alguma coisa sobre como nunca se é mais o mesmo depois de se apaixonar. Como é que terminava mesmo? É tão bonito...

-"Não sou feliz, mas não sou mudo,

Hoje eu canto muito mais"

-Isso mesmo. Nossa! Ele é muito bom de conversa.

-Ele é. Não só de conversa. Ele te faz sentir especial, não é? Querida, compreendida... Amada. É o dom dele. Você só não imagina que ele faça isso com as outras também. Mas a culpa foi minha. Fui eu que forcei a barra para ele escolher. Como ele tentou me avisar várias vezes, acordei o dragão. Ela passou a me perseguir, a querer me bater, a fazer barraco. Uma vez tentou me matar com uma faca na saída do meu prédio. Ele que evitou. Chegou a me ligar implorando para que o deixasse. Ela era uma sombra negra em tudo o que eu fazia. Tenho pavor de violência física e ela era muito mais forte que eu. Vivia assustada com a ideia de nos encontrarmos. Mas não fui capaz de abrir mão dele. E ele era incapaz de escolher. Acabamos quebrando o brinquedo. Um dia ele não aguentou tanto: "não vai embora, senão eu me mato" que voltou a usar drogas, depois de 12 anos de sobriedade. Nós duas havíamos conhecido ele abstinente, não conseguíamos imaginar o monstro que estava adormecido. Só que ela estava mais próxima e pode ficar com os cacos. Ele foi internado por seis meses e sua única comunicação com o mundo era através dela. Nesse tempo descobri que estava grávida. De militante pró-aborto radical passei a levar adiante uma gravidez de alto-risco, contra todas as recomendações. Perdi a criança, meu útero e quase a minha vida numa maca suja no pronto socorro do Hospital Geral de Bonsucesso. E a única coisa que eu conseguia pensar naquele momento era no tamanho da minha derrota. Que estava perdendo a última oportunidade de ter uma parte dele comigo. Liguei várias vezes para ela e implorei para poder vê-lo ou falar com ele. O que a vaca fez foi levá-lo para algum lugar do Nordeste assim que saiu da clínica. E o covarde demorou quase um ano para entrar em contato de novo.

-Nossa! Aquela mulher tão amável. Eu disse que estava na cidade a serviço e que estava preocupada porque a empresa só cobria dois dias e o trabalho ia durar três. Ele imediatamente me convidou para ficar na casa deles. Passei um final de semana hospedada lá. Ela me olhava ressabiada, mas foi muito gentil. Quem a conhece não consegue imaginar.

-Aquela mesmo. Ela te deixou dormir na casa deles? Hum... Não aprendeu nada.

-Acho que ele deve ter aprendido. Tem reputação de fiel tanto no serviço quanto no grupo. Mas pode ter virado um banana.

-Ele sempre foi. Mas que banana maravilhoso...

Ela é despertada de suas lembranças pelo aviso de apertar os cintos. Do momento que o avião pousa até quando entra no táxi na saída do aeroporto, e este percorre a Zona Sul do Rio, mantém a mente perdida no seu casamento que não deu certo e nos vários relacionamentos que teve nos últimos anos. Tudo uma imensa bagunça. De novo, como ele previra e ela não acreditou: "Pode ir, sei que vai voltar. Só eu amo essa complicação que é você". O que ele dizia que era agraciado mesmo... Ahh, a maldição de Cassandra. Conseguia ver o que ia acontecer, só não conseguia fazer com que as pessoas acreditassem. Quase a confirmar o pensamento, vê no jornal que trouxe de São Paulo a coluna de um jornalista neoliberal em alta. Ele era o único da turma que lia a revista que o cara editava na época em que saiam. Todos o zoavam por isso.

Ficou olhando para o Corcovado enquanto o carro passava por Botafogo, a caminho da sede da empresa em Copacabana. Ao entrar no túnel ouve como se ele sussurrasse em seu ouvido:

"Dentro do carro, sobre o trevo,

A 100 por hora, óh meu amor

Só tens agora os carinhos do motor

E no escritório em que trabalho, e fico rico

O quanto mais eu multiplico,

Diminui o meu amor...

Como é perversa a juventude do meu coração

Que só entende o que é cruel,

O que é paixão."

Ao chegar em sua sala pede os relatórios sobre os três centros pré-selecionados para receber a pesquisa da multinacional. Era sua responsabilidade escolher. O contrato de uma vida para o favorecido. Os valores chegavam a ser absurdos. Com padrão internacional, então as quantias já eram descriminadas individualmente. Várias pessoas eram favorecidas, não só o "dono" do centro. E ela podia rever a parceria a cada seis meses e passar para outro. Lê o relatório da detetive. Uma sensação maravilhosa lhe percorre o corpo todo. Pega o telefone:

-Doutor Leandro?... Sim, já voltei...Sim, o centro de pesquisa de São Paulo parece ser o que melhor corresponde as nossas necessidades... Lógico que caso haja qualquer problema os outros dois ficam de stand by... Sim, vou preencher as autorizações. Um abraço.

Assinou a papelada. Uma cópia de tudo ia para o centro escolhido. O relatório da detetive lhe reportava que sua antiga Nêmesis era a técnica responsável do centro, era muito competente, estava a duas décadas ali, e este (e ela) precisava desesperadamente do dinheiro do estudo. Viu de novo o nome dela: Técnica responsável... Desgraçada! Vou te tornar realmente responsável! Mandou a papelada por Sedex e junto com os documentos um envelope aos cuidados dela. Dentro uma foto dela com ele e a família tirada pela detetive e um bilhete digitado:

"Cuide bem do nosso amigo. Eu ainda o amo.

P.S. Nem pense em se afastar do estudo, só confio em você"

Até que enfim! Como sonhou com este dia! Seria uma sombra a pairar sobre a vida dela, sem que ela pudesse fazer nada dessa vez. Todos seus colegas de trabalho dependentes que ela lhe satisfizesse seus caprichos. Sentia uma alegria indescritível. Finalmente iria se vingar daquela cadela!

E com isso podia finalmente perdoá-lo...

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 22/05/2017
Reeditado em 06/07/2017
Código do texto: T6005782
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