Lauro

Acordo cedo como manda o costume ancestral dos velhos, parece que um Conselho das pessoas mais velhas do planeta se reuniu e decidiu que todos os idosos são obrigados a acordar cedo, mas não é cedo cedo, é super-mega-hiper-cedo, malditos anciões! Queria ter feito parte desse grupinho imbecil, iria decretar que a aposentadoria fosse reduzida, mingaus de aveia seriam distribuídos diariamente por um "Zé ONG" qualquer e aquelas "academias-para-velhacos-feitas-especialmente-para-nos-lembrar-o-quanto-somos-múmias", seriam aniquiladas da face da terra, eu mesmo, apertaria a clave que daria a explosão de todas essas pseudo-aeróbicas.

Parece que estou ficando velho mesmo...

O dia como outro qualquer, tem tudo para ser intensamente produtivo, diria que apenas intelectualmente, meu corpo já não é mais o mesmo de outrora, o vício em cafeína e asinhas de frango é um constante problema. Sou um escritor, sim, não sou famoso, meus sonetos de maior destaque foram quando minha querida Luana ainda me acompanhava em minhas finitas aventuras. Ainda é ultra cedo, preparo minha querida cafeína, um ou outro pãozinho francês deixado pelo grande padeiro José e o dia, ou melhor, noite, começa.

Tenho o estereótipo de que todo bom escritor deve andar bem vestido, um uniforme pré-socrático, então uso uma roupa social formal com um suéter azul bebê ou azul claro; nunca sei a diferença entre esses tons, talvez até seja celeste ou "royale". "Azul royale", já escutei esse nome várias e várias vezes, como será que surgiu, como será a cor... Rapidamente perco o foco pensando em cores desconhecidas, o que me leva a azul turquesa e cor de cara-malhada, juro que já a ouvi em algum lugar; para não me atrasar, deixo a curiosidade de lado, para outra hora, e tomo o meu caminho, pego as chaves, saio de casa, tranco a porta e começo a caminhar. Não é uma caminhada longa e cansativa, o bosque Flores de Primavera é logo duas quadras após minha casa, então nesse período aproveito para olhar, observar, aprender e absorver as coisas ao meu redor.

Lembro de uma proposta didática em minha aula de literatura no ensino médio, em que a professora nos guiou em um lema "será-que-estou-vivendo?", o mesmo lema era comum na nossa fase. Adolescentes tendem a ser revolucionários, revoltosos e problemáticos, mas ela nos abordou de um modo diferente, ela mandou olharmos para o lado, para janela, para tudo de forma diferente, como se fosse a primeira vez que o estávamos vendo. Imediatamente fiquei fascinado ao ponto de refletir toda a semana seguinte. Devido à minha profissão, eu levei isso de forma literal em minha vida, olho tudo como se fosse a primeira vez e ainda fui além, reflito como se fosse a primeira reflexão, encontrando um meio termo entre o pensamento focal e os pensamentos que se tornam ramificações que acabam se tornando reflexões futuras. As árvores, as flores, o céu, a neblina da manhã, a leve brisa, tudo é notado; sinto que ao fazer isso, minha vida se torna mais vida, este é outro dilema que venho pensando nesses dias, talvez vire um texto ou um poema. Devido ao horário, percorro o trajeto sozinho, meus vizinhos estão dormindo graças ao feriadão. Isso faz com que eu fique mais próximo da natureza, sinto que não reflito mais, e sim, torno-me a própria reflexão. Pensamentos do além me corroem, vultos de emoções passadas ameaçam voltar a tona, tempos que devem ser esquecidos, que ainda me assombram... Mas tudo é deixado de lado quando adentro o bosque. O caminho de pedras sem padrão ainda está lá, rodeando pelas mesmas graminhas verdes, o banco, o mesmo banco que eu e ela colocamos ali, desgastado pelo tempo e pelas criancinhas que insistem em brincar de corra-do-fantasma-do-bosque. Não estou mais na idade de percorrer esse caminho, ao sentar em nosso banco, recupero o fôlego por alguns minutos, antes de passar a mão em nossa clássica marca "L+L" e tirar do bolso o caderninho com a mesma marca na primeira página, pego a caneta e tento buscar alguma inspiração, acabo me pegando pensando em seu rosto, em seus traços, tanto quanto na primeira vez que a vi ou na última palavra dita para ela, acabo secando uma lágrima.

Lembro como se fosse ontem, trabalhava na sorveteria do Senhor Donald, atendia todo tipo de freguês com o mesmo sorriso e simpatia, mas quando ela, toda bela e jocosa, me chamou de senhor e pediu uma casquinha de baunilha, eu perdi o fôlego; olha que dessa vez eu só tinha dezessete anos... Lembro do vestido rosa com bolhinhas amarelas, de seus cabelos loiros ajeitados por uma tiara, de seu cortês e feliz sorriso, de sua covinha, e de como eu me senti, de como eu sabia que aquela seria a mulher da minha vida, a única pra quem eu teria olhos. Enxugo outra lágrima, dessa vez mais salgada, porque a cada lembrança feliz, tem uma triste para equilibrar a inconstante balança das emoções. Lembro como se fosse hoje, 12 de junho de 1976, encontrei um bilhete encima da mesa na cozinha com os seguintes dizeres.

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Marquês de Verona
Enviado por Marquês de Verona em 03/05/2017
Código do texto: T5988360
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