Saigon

Há anos tento escrever sobre Louise e Saigon. Já tentei várias vezes, não consegui. Tento novamente. Louise teve vida curta, mas viveu intensamente. Saigon era, inicialmente, uma pequena quitinete que eu aluguei durante certo tempo no bairro do Meyer. Depois, passou a ser qualquer lugar onde eu morasse e Louise eventualmente se abrigava. O nome foi dado por ela, inspirado na canção interpretada por Emílio Santiago. Uma pequena placa de madeira gravada por pirógrafo com esse nome sempre esteve pendurada no lado interno de minha porta. Permanece até hoje.
Meu primeiro contato com a moça não foi dos mais amigáveis. Foi no corredor da universidade, enquanto eu colava um pequeno cartaz com aviso do Centro Acadêmico.
- Eu não suporto gente como você. O tempo todo tentando dizer como devemos nos comportar e pensar. Acham que sabem tudo. Uns imbecis.
- Bom dia pra você também. Foi tudo o que respondi.
No segundo encontro, num dos pequenos jardins entre os blocos de concreto, ela sentou-se ao meu lado e pareceu que as agressões verbais continuariam.
- Fiquei sabendo que seu nome é Júlio e que além de tudo que eu já disse, é suburbano e o pior é paulista. Muita coisa ruim ao mesmo tempo, começando rir.
Eu com cara de idiota e espantado diante de tanta agressão gratuita.
- Brincadeira, disse ela. Quer dizer, mais ou menos. Na verdade, quero me desculpar. Soube que você é diferente. Não fica sempre andando em bandos e gosta de ficar sozinho, lendo, como agora.
- E quanto ao fato de eu ser suburbano e paulista?
- Ninguém é perfeito, disse rindo. Vamos fazer as pazes? Ficar de bem?
- Talvez, que tal me pagar um café? Ainda estou meio assustado.
Esse encontro mudaria minha vida, para o bem e o mal. Aquela mulher, com jeito de menina entraria na minha vida para nunca mais sair. Mesmo após sua morte.
Sempre fui um indeciso. Comecei cursando Biologia, fiz transferência para Farmácia e terminei fazendo Administração. Tudo foi acontecendo como turbilhões na minha vida. O maior problema sempre foi o excesso de interesse por muita coisa ao mesmo tempo. Flertei com Medicina, História e Filosofia. Cheguei assistir aulas em vários departamentos. Gostei de tudo, mas nem tanto.
Louise entraria na minha vida e a tumultuou mais ainda. Não sei como descobriu meu endereço no Meyer. Acho que foi com a Laurinha, uma ex-namorada que esteve por lá. Numa noite daquelas sufocantes do Rio o interfone tocou. Demorei para entender quem era. Subiu e me abraçando começou a chorar. Descobrira estar grávida do namorado e fez um aborto. Estava no início da gravidez, mas ela ficou muito mal. Pela primeira vez dormiu lá em casa abraçada comigo.
- E sua família? Perguntei.
- Mora em Brasília e paga minhas despesas. Moro com uma amiga em Ipanema.
- Mora bem.
- O apartamento era de meu avô, falecido. Posso passar um tempo aqui? Minha amiga está viajando e eu não queria ficar sozinha.
- Fique o tempo que quiser.
Estavámos no início dos anos oitenta e haveria a votação no congresso da emenda constitucional das chamadas “diretas já”. Fomos à manifestação na Cinelândia. Nossa primeira derrota juntos. Ficamos muito tristes. A vida nos revelaria muita tristeza, mas também muita alegria.
- Como você se sustenta? Perguntou ela.
- Recebo algum dinheiro de parentes e dou algumas aulas em cursinhos pré vestibulares. Não é muito, mas dá pra levar.
Louise ficou comigo por um mês. Frequentava as aulas da faculdade de Farmácia. Voltou a Ipanema.
A vida continuou e no ano seguinte eu já cursava outra faculdade. Um belo dia cheguei em casa e lá estava ela me esperando sentada no chão do corredor.
- Vou providenciar uma cópia da chave pra você.
- Será que é uma boa ideia? E se você estiver acompanhado quando eu chegar?
- Digo que é uma prima.
Entramos e jantamos uma pizza. Depois rolou um clima, pela primeira vez. Fizemos sexo. Ela se comportava de forma agressiva. Meio angustiada, mas valeu a pena. Nada a reclamar. Depois de uma semana sumiu de novo. O País elegeu, ainda que indiretamente, Tancredo Neves que morreu antes da posse. Assumiu Sarney, o vice. Foi uma saída para acalmar os militares. Na realidade foi ilegal, pois o vice presidente só poderia assumir se tivesse havido a posse do presidente. País estranho esse. Novo retorno de Louise.
- Comprei um L.P. do Emílio. Conhece Saigon? Pois então, aqui passa a ser nossa Saigon. Disparou falar também da Saigon descrita no livro O Americano Tranquilo de Graham Greene. Eu quero ser a sua Phuong.
- Está bem, por mim ótimo. Quer dizer que temos um caso?
- Sei lá. Phuong era uma espécie de gueixa vietnamita. É mais ou menos isso.
Não entendi onde ela queria chegar. Acho que nem ela. No dia seguinte trouxe a tal plaquinha de madeira onde se lia Saigon e pendurou na parte interna da porta.
Se não estou enganado, Phuong significa pássaro. Pois é, minha Phuong bateu asas novamente. Desta vez parecia para sempre. Propositalmente não foi original, escrevendo no espelho com batom, como diz a música: Adeus (não resisti ao lugar comum). Sempre te amarei. Beijos.
Fiquei sabendo por umas amigas em comum que ela viajara para o Canadá com Douglas, o antigo namorado e pai do filho que não nasceu. Vida que segue. Mudei-me para São Paulo porque meu tio Maurício sofrera um enfarto e precisava de ajuda na representação comercial que possuia. Comecei fazer faculdade de Administração e ganhar dinheiro. Comprei um pequeno apartamento na região da Av. Paulista e mandei um e-mail para Louise informando onde eu estava morando. Como sabia o e-mail? Antes de mudar do Rio recebi uma carta, na qual ela se desculpava por não se despedir pessoalmente. Disse que não teria coragem e  me informou seu endereço eletrônico.
Alguns poucos amigos sabendo do meu confuso relacionamento diziam que tratava-se de “cornice crônica”. A família dizia que eu deveria me envolver em novos relacionamentos. Mas sérios, os que eu tinha não eram sérios.
Passaram-se alguns anos e numa noite, minha Phuong reapareceu.
- Nossa, Saigon continua existindo. E chorou ao ver a pequena placa ainda presa à porta. Sozinho?
- Esperando a sua volta. Nenhum de meus relacionamentos deu certo.
- Posso ficar?
- Claro, ainda pergunta? Saigon será sempre sua.
- Preciso te contar uma coisa: estou doente. Fiz exames no Canadá e foi constatado câncer hepático muito raro e agressivo.
- Eu cuido de você.
- Não duvido, mas vou ser operada no Rio nas próximas semanas. Até lá fico com o homem que amo e sei que também me ama.
Foi internada e fez os procedimentos para a cirurgia, a qual não chegou acontecer. Morreu aos trinta anos. Antes, cheguei visitá-la no hospital. Na despedida disse-lhe:
- Saigon te espera.
- Acho que dessa vez não vai dar.
Saigon continua existir e a lembrança de minha Phuong permanece para sempre viva, voando através de minhas lembranças.

 
Gerson Carvalho
Enviado por Gerson Carvalho em 19/01/2017
Reeditado em 11/03/2017
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