Melancia

Quando levantei fui até o batente da porta sem nem água jogar no rosto.

Despertei-me com o sol.

Vi-o nascendo e a dor reaparecendo pela falta que você me fez noite passada.

Tomado por aquela radiação, fecho os olhos e me deixo cair para trás, pendendo o tronco sobre os cotovelos para ampliar o campo de atuação dos raios.

Como que outro, eu sou o mesmo de olhos inchados e tomo café e fumo com bolacha Cream Cracker. Desço as escadas e abro o portão de rolar de ferro da garagem.

Sem carro.

Vazia.

Só com o quadro, os pincéis e as tintas.

Ponho-me a pintar que é o que me sobrou de tudo que eu aprendi. A matemática não me serve mais que para medir numa régua de 30 cm a simetria necessária de um rosto ou de uma casa.

Fico ali em pé escolhendo as cores, molhando os pincéis, pintando o quadro, as mãos, o avental, o chão e a alma. Tá tudo ali.

Eu sou Saturno e foi o Sol quem eu perdi.

Você vinha nessa mesmíssima hora me lembrar que eu era bom. Que tinha talento.

Meu rosto inclinado, pensando no que fazer, e sua palma em minhas costas dizia: faça. Apenas faça. Era quando você me deixava e eu dali terminava o que os críticos chamariam de obra.

Indubitavelmente, nos meus intervalos, flagrava-a comendo melancia gelada no batente da calçada.

O vestido florido abaixado entre as pernas, o cabelo fino e longo preso num rabo de cavalo e os pés descalços.

Mesmo quando não estavas ali, sinto tua presença pelas sementes de melancia espalhadas pelo chão.

Traço caminhos com elas para não me perder. Para não te perder. Os dias se passaram, os meses se passaram e aquele cheiro de água adocicada e vermelha que eu não consigo esquecer.

O sol está quase me deixando. Como tudo, ele me abandona todo dia. No colorido do ocaso que se forma na porta da garagem sinto uma sombra. Não me viro ainda. Faltam três pinceladas de amarelo de Nápoles e a assinatura para acabar o quadro. O cheiro de chumbo é forte e o de melancia também. Já me viro sorrindo. E, no me virar aturdido, derrubo o quadro. Acocoro-me e viro me revirando sem entender o que está acontecendo. Não sei se pego o quadro ou olho para o portão. Faço os dois.

É você Aurora que entra, abaixa-se a minha altura e retomamos a forma bípede juntos; eu com o quadro de lagoa na mão e você com a palma da mão espalmada em minhas costas me mostrando que ainda sou bom.

Todo o cheiro de tinta sai. Agora, só melancia.