A carta

Ajuntei toda a poeira que em mim deixara. Enchi várias sacolas e com dificuldade as carreguei. No total de dez, dez sacolas. Cinco de um lado e cinco do outro, forçando o braço e esfolando-o numa vermelhidão. Quanto de peso que havia na poeira? Andei apressado rumo a avenida México, na altura do número mil oitocentos e dezoito. Despejei ali toda aquela sujeira. Junto da poeira um relógio-despertador branco que quando me despertava, acendia uma luz azul, um pisca-pisca irritante. A irritação que me acordava todas as manhãs pra seguir pro trabalho, na drogaria.

Fiz uma faxina no guarda-roupa, organizei minhas camisetas por cores. Brancas, azuis, pretas, verdes, cinzas e vermelhas. Faltava uma branca de estampa azul-clara, justamente a que deixei em Uberlândia. Meu coração fechava e abria de tanta confusão dentro do que vivemos. Continuei minha arrumação, apressado, pois não queria terminar a faxina à noite. Ainda faltava retirar o pó da estante de livros, organizá-los. Aproveitei e li uma página do romance em percurso, de Fernanda Torres, intitulado "Fim". História totalmente cabida a mim, onde até à pagina de número quarenta e um tudo parecia ter sido escrito pra mim. Estou encaixado dentro da história, literalmente. Tirei a poeira da impressora, a mesma usada pra imprimir nossa foto do dia dos namorados.

A poesia que te dei junto do não sei o quê, não encontrei mais. Era linda, onde arranquei-te lágrimas doces e sorriso largo e bonito. Fizestes proezas em mim, Jabuticaba, fizestes! Depois das roupas organizadas parti para as gavetas. O relógio ainda continua lá, mas não pisca mais. Sempre olho pra ele com olhar de desânimo. Guarda-roupa organizado, gavetas, estante de livros. Senti a missão cumprida, até o momento em que resolvi organizar os DVDs. Karaokês e mais karaokês, flashes-back dos anos sessenta e setenta. Pensei que a faxina já estava terminada, quando me deparei com um DVD cor de rosa, da Marrom. Tentei ouvi-lo, mas também não ouvi minha consciência. Por certo eu iria querer ouvir "estranha loucura", "faz uma loucura por mim", "meu vício é você", até não aguentar mais.

Tomei da minha flanela, limpei minha relíquia que a tantos anos me acompanha. É, acompanha, infelizmente. Faltava ainda a última gaveta do guarda-roupas, a sexta e última do lado direito, de cima para baixo. Hesitei, olhei fixamente pra ela, parecia ter ali dentro um ninho de cobras ou escorpiões. Mesmo assim me desobedeci, criei coragem e abri a gaveta delicadamente. Minha suspeita estava comprovada. Não haviam cobras nem escorpiões, mas lá estava a folha de papel manuscrita com a poesia que tentara. Tentou e conseguiu, fluiu como bálsamo na minha alma os dizeres, naquele tempo. De uma caligrafia feia, torta, mas a essência do escrito havia me tornado homem. Reli triste aquele pedaço de papel já quase todo deteriorado, devido ao tempo. Não sei precisamente quantos anos já se passaram. Melhor, finjo que não sei.

O que adianta a limpeza dos pertences se por dentro não há borracha que apague?

Senti uma sensação de frustração, frustração com liberdade. Senti como se tivesse tirado das minhas costas o fardo mais pesado que carreguei. As lembranças rendem até hoje, lembranças das quais não desejo repetir. Acabou, foi selado, foi finito, por que não sou de repetir roupa suja. A carta, ainda continua, amarelada e margeada, como que uma margem feita por criança, bem infantil.

A limpeza dos pertences foi feita, mas a carta me recuso a jogar fora, guardarei como recordação, de um amor que muito me encantou, mas como nada na vida é eterno, eu tive que dar asas, abrir a gaiola. Hoje nossas palavras se resumem num pequeno boa noite ou de vez em quando uma briga, daquelas de canceriano e libriano, inevitáveis. Depois as desculpas, o perdão, os sorrisos, a amizade. Nada mais que isso! De todas as poesias feita pra você, "...", abortei todas, sem culpa nenhuma. Não gasto mais meu latim nem meus neurônios, desde os tempos mais floridos.

A carta, porém, pode até acabar sozinha com o tempo, mas minhas lembranças serão sempre vivas, imortais. Entreguei-me ao celibato desde então, não quero saber dessas coisas que me tiram o sono. Pelo menos por enquanto! Tantas bocas beijei, tantas camas desarrumei, mas em nenhuma delas pude lhe ver nem te ter. A carta por certo é que é culpada de tudo.

Transferir sentimentos de alma pra sentimento de flores é uma das tarefas mais difíceis que podemos fazer. Mas tudo bem, no momento certo eu recebo outra carta, outro relógio-despertador, outro DVD, outra camiseta. Posso até receber, mas de agora em diante eu que escolho as mãos que irão me presentear. O que lhe dei foi de coração, assim como também o que recebi. Foi tudo culpa do amor que não vingou porque fora semeado em terra estranha.

A carta praticamente já nem existe mais e a poesia descrita ali perdeu o sentido. Apenas resquícios me restam, lembranças furtivas. Nem dos piqueniques lembro mais, dos passeios no Parque Municipal, no zoológico ou no cinema. O cinema eu odiava, ainda continuo odiando, não gosto. Prefiro o aconchego do meu quarto e da minha cama. Prefiro o aconchego de mim. O papel amarelado é apenas a prova total do crime, de quem assassinou sonos e enterrou sonhos.

Não adiantou nada a faxina pois por dentro ainda estava toda a poeira,

provisoriamente, até segunda ordem.

Daniel Cezário
Enviado por Daniel Cezário em 15/11/2016
Reeditado em 02/01/2017
Código do texto: T5824712
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