lágrimas ao mar

     Eu já podia sentir o sol queimando a minha pele. Toda aquela grandiosidade chegava a me assustar, mesmo estando muito longe ainda. Passou por minha cabeça, naquele instante, a agonia que deve ser morrer nos braços do fogo. Não que não possa haver um jeito pior, mas comecei a considerar que esse deveria ser o mais horrível de todos. Ele me perguntou se eu estava bem. Assenti com a cabeça. Não queria falar. Olhei para seu rosto e vi uma pequena preocupação em seus olhos, até que em pouco tempo a seriedade tomou conta. Sorri e voltei minha cabeça para a janela. O cheiro do combustível queimado me trazia tontura, mas eu gostava de sentir aquilo. De ficar daquele jeito. Era uma tontura diferente das outras e me deixava feliz. Não como se eu tivesse girado, rodopiado ou corrido em círculos por algum determinado tempo, porque ainda vinha um enjoo de brinde. A horrível vontade de vomitar. Despertei com o odor e sorri abobalhadamente, ao contrário de antes, como se meu espírito tivesse alcançado uma espécie de paz absoluta.
     Chegamos e a areia já torrava a sola de meus pés. Ainda era manhã. Caminhávamos de mãos dadas. Um óculos de sol em meu rosto, uma garrafa de água em minha outra mão, e alguns trocados no bolso de trás de meu shorts. Somente umas moedas, nada de tão valioso. Sentamos não muito perto da água. O medo daquela vastidão azul nasceu dentro de mim ao olhá-la.
     "Bonito, né?"
     "É sim. O mar é muito bonito, eu o adoro," mentira, mas ele precisava se alegrar um pouco. Estávamos precisando disso. E de liberdade também. Vi um sorriso brotar em seu rosto. Aquilo sim era lindo. Penetrava-me com calma nas vezes que eu mais precisava.
     A praia estava cheia de vendedores, como de costume, e banhistas que me incomodavam um pouco somente com a presença que eu julgava infeliz. Havia muitas pessoas na areia. Muitas mulheres com seus filhos e filhas. Pequenas crianças que variavam entre seis e doze anos. Tinha também alguns adolescentes, uns velhos bebendo cerveja e outras pessoas trabalhando em pequenos quiosques montados. Os velhos gostavam muito daquela bebida. Era o que mais—talvez unicamente—consumiam quando iam à praia. Alguns estavam até bem distantes de nós. E as crianças corriam, brincando, se divertindo entre si, feito loucas viciadas em adrenalina. Eu não gostava delas. Não gostei daquelas e de nenhuma outra que cruzou meu caminho. Tinha uma coisa dentro de mim que fazia com que eu não sentisse prazer em querer ficar perto delas. Eram feias, tinham vidas feias e faziam coisas feias. Não queria perder minha inocência com aquele tipo de gente. Algumas cuspiam enquanto falavam e se coçavam demais. Eu tinha nojo delas, de todas.
     O clima ficou estranho. Não percebi quando a mudança bateu, mas sentia algo fora do normal. As mulheres olhavam para os homens na água com suas crianças, sorriam e acenavam, só que tinha essa coisa fora do lugar. Achei que o vento poderia ter mudado de direção ou o sol que ficou menor. Minha barriga esfriou, e junto do frio veio uma leve irritação. Não era fome. Antes de sair de casa eu tomei um bom café da manhã. Gostava de acordar cedo, para aproveitar e comer aquele pão quentinho, porque se eu não o fizesse iria passar o resto do dia de mau humor. No entanto, realmente, algo estava errado. Ao olhar para as mulheres uma outra vez não consegui encontrar a calma de quando cheguei. Seus os sorrisos ecoavam uma falsidade em seus rostos. Parecia que tudo estava sendo ensaiado. Um tremendo fingimento. Refletiam felicidade, mas com o que? Essa coisa começou a me incomodar profundamente. Na verdade, até o incômodo também me incomodava. Com algum tempo nesse estado resolvi parar de restringir meus pensamentos. Eu já estava sonhando diversos motivos de olhos abertos.
     Então me levantei. Decidi que precisava me banhar um pouco. Ele notou que fiquei de pé, ao que ambos começamos a caminhar em direção a água. Limpei meu bumbum de areia e segurei forte em sua mão. Sentia que ele não iria me deixar ir embora. Me olhou com o sorriso que eu mais adorava. Seus olhos estavam fundos, o que me fez olhar para trás para ver que as pessoas mudaram seus semblantes. Agora eram donas de caretas choramingadas. Aquilo devia ser o calor mexendo com minha boba imaginação. Desejei que alguém me acordasse. Não acreditava estar pisando no mundo real, mas em um sonho quente e molhado de suor que me deixara toda arrepiada. Algumas delas tomavam banho de sol, e as que não estavam somente se encontravam lá, paradas e conformadas com as coisas que acontecem, com o que já aconteceu em suas vidas, estampando isso em cada ruga e movimento labial que faziam. Voltei minha atenção para frente, para a grandiosidade do oceano.
     "Papai, essas mulheres estão chorando?" perguntei.
     "O que?" ele soou completamente confuso. "Não. Não tão."
     "Ah, é porque parece que elas estão. Devem estar por dentro então, né?"
     "Como assim?"
     "A mamãe me disse isso uma vez. Que às vezes, mesmo com um sorriso no rosto, a pessoa na verdade pode estar chorando por dentro."
     Ele me encarou sem esboçar uma resposta. Chegamos bem perto da água e aquele medo de antes aumentou. As ondas se moviam e se desfaziam quando batidas na areia, e eu, atônita, encarava aquele fenômeno que julgava ser demoníaco. Caminhei mais um pouco para frente, depois de um longo suspiro, até que a água alcançou meus pés.
     "Papai!" eu gritei. "A água está muito gelada! Não quero mais entrar!"
     "Deixa de bobeira! Vem logo!"
     "Mas papai. . ."
     "Anda! Quando você entrai vai mudar de opinião!" ele me assegurou sorrindo outra vez. E novamente sua expressão mexeu com meu interior. Ele tinha um grande poder persuasivo, algo que me impressionava sempre. Já o vi utilizar dele outras vezes com outras pessoas, e achei bem bacana. Mamãe dizia que foi isso que a conquistou. Só hoje pude reparar nisso, depois de todos esses anos.
     Ele puxou minha mão, e quando vi já nadava ao seu lado. Fiquei com medo no começo. Confesso que sou muito medrosa. Meu pequeno coração acelerou. Olhei ao meu redor e algumas crianças pareciam estar choramingando. Vi seus pais bem sérios diante de suas expressões. Eu me desesperava dentro da água, e pulava e me batia de maneira absurda, como se eu estivesse me afogando. Acho que não eram lágrimas naqueles rostinhos e sim a água salgada do oceano. Alguns olhos até estavam um pouco avermelhados. Comecei a me ajeitar ali. Papai me ajudou um pouco. Fazia tempo que não íamos à praia, mas não demorei para lembrar de como fazer para ficar boiando. A água congelou meu medo e o afogou. A felicidade no rosto daquele homem me acalmava, me trazia segurança.
     Ele olhou profundamente em meus olhos. Pude senti-lo, desta vez, invadir meu corpo. Me deu um beijo na bochecha e disse que precisava fazer aquilo. Que precisava e não tinha outra opção. Eu fiquei sem entender o que acabara de acontecer. Estávamos bem ali, sem dor alguma, sem tristeza alguma.
     "Tenho que ir, minha doce criança," mas eu não queria ir embora agora. Por que estamos indo? Eu pensei.
     "Mas papai, eu quero ficar," respondi.
     "Não há o que temer, querida," estávamos longe da areia. As ondas acabaram por nos levar para bem distante das outras pessoas. Aconteceu naturalmente, sem minha atenção. Olhei ao meu redor. Olhei para trás e me deparei somente com aquela imensidão azul. Era lindo, de certa forma, mas não deixei de ficar assustada. E quanto mais eu olhava mais o desespero crescia dentro de mim. Quando retornei meu olhar para meu pai não o vi mais ao meu lado. Tinha sumido. Não consegui encontrá-lo. Diversas pessoas nadavam de volta para a areia, e eu não tinha forças o suficiente para fazer aquilo. Tudo aconteceu muito rápido. Fiquei sozinha, boiando naquela enormidade salgada.
     Comecei a gritar. Gritei, gritei e gritei. Gritei até entrar água em minha boca. De nada adiantou. Notei que eu não era a única criança ali jogada aos peixes. Outras várias se encontravam na mesma situação que eu, à deriva, chorando e gritando uma esperança pela salvação. E algumas outras descansavam na areia com seus pais. Após um tempo parada, boiando, a água começara a ficar mais gelada. Eu não sabia mais o que fazer. Minhas pernas iniciaram sua desistência, e minha barriga roncava. Tinha que tentar pela última vez a sair dali. Eu recusei terminar daquele jeito. Comecei a nadar de volta para a areia, com turbulentos pensamentos rodeando minha cabeça. Acho que papai queria que eu continuasse aqui dentro, foram as palavras que passaram em minha mente. E, por um instante, depois daquele pensamento esvanecer, eu parei para descansar. Ver as outras crianças com seus pais, ver todo aquele amor que me foi negado por razão nenhuma aparente, ver os sorrisos que eu jamais darei me deram vontade de desistir de vez. Talvez meu pai não gostasse mais de mim. Talvez ele tivesse se chateado comigo, pois o magoei e ele então agora queria ficar o mais longe possível de mim. Talvez sua tristeza fosse tão grande que resolveu me deixar lá pra morrer. Aqui pra morrer. Sim, era isso. Exatamente isso. Esse era meu destino.
     Voltei a gritar, com alguma negação ainda dentro de mim. Gritei muito mais. Entretanto, obtive nenhuma resposta. Eu já tinha me afundado. O mundo ficara mudo, e pude ver minhas últimas borbulhas de esperança indo embora. Perdi o ar. Senti-me pesada, como se eu tivesse comido dois, ou até três mistos-quentes. Tentei abrir meus olhos, só que não consegui. A água me enchera, substituindo o ar dentro de mim. Onde eu me encontrava já não tinha mais como voltar. A palavra impossível ecoava feito música, das profundezas do oceano. Algumas lágrimas invadiram meu coração, e então tudo ficou frio.

     "Querida! Querida!" ouvi gritos. "Acorde, querida!" tinha algo além de desespero em sua voz. Só que era limpo, suave e como se estivesse molhado.
     "Não! Não! Me solte! Você não vai me levar!"
     "Mas, amor. Você não vai a lugar algum."
     "O que?” eu parei de me contorcer. "Como assim?"
     "Abra seus olhos e veja por si mesma."
Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 10/11/2016
Reeditado em 10/11/2016
Código do texto: T5818957
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