Os Fabulosos Vasquez-Capítulo 1:A Dançarina e a Boba

Sinceramente,acho que a última (e primeira) vez que eu fui ao circo,eu tinha apenas 5 anos de idade.

Bom,agora eu tenho 19 anos de idade.Vamos ver se a criança dentro de mim ainda está viva.Ou está enterrada na terra do esquecimento e dando lugar à um adulto chato e ranzinza.

Eu e José pegamos um taxi para o circo recém-montado na nossa cidade.Ficava no estacionamento de um shopping,perto da praia.

E se você acha que eu sou o mesmo protagonista do Volume 1...Chegou perto.Ele é o meu primo.

Do lado de fora,a estrutura do circo não tinha nada de especial.Apenas uma tímida lona com listras verticais,alterando entre o vermelho e o amarelo.Suas proximidades eram iluminadas pelas lâmpadas fluorescentes dos postes do estacionamento.Vendedores de pipoca e algodão-doce nos esperavam pacientemente na entrada.

O interior do circo era bem acolhedor.Apesar do fato das trevas ocuparem a maior parte do espaço,a simples iluminação que banhava o palco como chuva criava um clima de tranquilidade.Um palco circular,rodeado por quatro vigas de metal em seus quatro cantos.Vigas estas que sustentavam o conjunto de lâmpadas,tanto as brancas quanto as coloridas.Além disso,haviam três grupos de poltronas em volta do palco.Um palco no meio e dois nas laterais.Corredores entre os blocos de cadeiras que mais pareciam poltronas de salas de cinema.Tudo aquilo me lembrava um coliseu romano.Um minúsculo coliseu.

Eu e José achamos lugares posicionados no fundo do bloco central de cadeiras.Enquanto eu tinha uma modesta garrafa de água,José tinha um imenso saco de pipoca nas mãos.Ainda bem que o som dele não me incomoda.

Logo após respirar fundo e tentar me acostumar com o lugar,as luzes se apagam,cobrindo o público com trevas,e se dá início a uma música alegre e convidativa.

O show vai finalmente começar.

A dança de luz branca de projetores holofotes acaba quando um homem começa a sair detrás das cortinas no fundo do palco.As luzes se concentram nele.Um homem visivelmente acima do peso,de pele branca,olhos azuis e cabelos grisalhos.Vestia um modesto terno com uma gravata vermelha.Tinha um microfone em mãos.

No momento que ele aproximou o microfone da boca e abriu a boca,sua voz me atingiu como se fosse uma grande bola de canhão.Era tão grave e forte que poderia colocar um muro de metal abaixo.Nem precisaria de um microfone para alcançar nossos ouvidos.

Depois de me recuperar da surpresa,prestei atenção no que ele disse.Basicamente,ele disse que o espetáculo a seguir seria algo simples,porém impressionante,talvez inesquecível.

Veremos.

Não demorou para ele sair e dar lugar ao primeiro espetáculo.O mágico Dormund Vasquez e seu filho Oswald,apelidado carinhosamente de Oz.Ambos usavam as mesmas roupas:Calças pretas,coletes pretos e camisas vermelhas.Os mesmo chapéus pretos.Ambos tinham cabelos castanhos que quase pareciam loiros.Pele branca.O pai tinha uma barba rala que cobria a parte inferior do seu rosto.Achei que seria um show de mágica bem água-com-sal.Mas felizmente,me enganei.Cada truque de mágica embalado pela química entre pai e filho me fazia querer me aproximar mais e ver como tudo aquilo era feito.Havia momentos nos quais a surpresa tinha força suficiente para explodir o meu peito.O pequeno Oz também se atrevia a fazer alguns truques.Um deles,um ótimo truque de desaparecimento,fez o pai fica impressionado.’’Nossa,não vejo um truque tão bom assim desde que a minha ex-mulher pegou tudo no divórcio’’,disse Dormund.Todos caíram em gargalhadas.Principalmente José,que se engasgou com uma pipoca.Por fim,pai e filho acabaram o show com uma reverência ao público.Eles saíram do palco.

O homem grisalho voltou.Ele se apresentou como Fernando Vasquez.Pelo sobrenome,concluí que Dormund e Oz eram,respectivamente,filho e neto.Ele disse que o nós vimos era apenas um pedaço daquele mar de fantasia que são os Fabulosos Vasquez,sendo este o nome do grupo circense da sua família.Gostei muito da ideia de uma família rodando o mundo como um grupo circense.

Ao mesmo tempo que imaginava tal ideia,Fernando deixou o palco para a próxima atração.

E ela chegou.O casal de gêmeos Emílio e Emília.O casal de gêmeos mais idêntico que eu já vi,tirando o bigode de Emílio e o longo cabelo de Emília.Não demorou para eles mostrarem o que vieram fazer:Contorcionismo.Mas não era a toa.A cada número,mais e mais víamos o quanto um completava o outro.Como se eles tivessem passado o tempo dentro da barriga da mãe de mãos dadas.Como se eles fossem uma pessoa só dividida em duas metades.Como se eles fossem dois lados simétricos de uma imagem.Eu tive certeza dessa última comparação no momento final do show,quando eles se contorceram para formar um coração.

Depois daquilo,não sei mais o que me surpreenderia.Mais alguns comentários de Fernando e mais uma artista.Um anão chamado Samuel.Cabelos castanhos e encaracolados.Um anão equilibrista.

Desisto.

Eu realmente achei que o show de Samuel seria o mais fraco do espetáculo.Me enganei novamente.As acrobacias e as proezas que Samuel fazia sobre uma corda eram tão surreais que,ao olhar para os lados,pude ver dezenas de olhos arregalados.Até José estava surpreso,tanto que até ignorou o saco de pipoca por um momento.Eu olhava para o equilibrista e me perguntava como não teria medo de realizar tudo aquilo.Cada proeza era um convite para cair da corda e cair no palco,experimentando uma morte horrível.Era como se ele não só não temesse a morte,como se estivesse zombando dela.

O show dele acabou.Meu coração estava batendo mais rápido que bico de pica-pau.Fernando voltou ao palco dizendo que as duas próximas atrações,além de serem as últimas,iriam ‘’acalmar os nossos corações’’.

Acalmar os nossos corações.Gostei disso.

Fernando deixou o palco.As luzes assumiram uma tonalidade alaranjada bem morna.Uma longa fita de tecido branco desceu do alto das vigas de metal do palco.Uma menina saiu das cortinas.Cabelo preto amarrado em coque.Pele morena.Maiô negro.Um rosto com linhas tão bem desenhadas quanto as linhas dos seu corpo.Olhos selvagens e sedutores quantos os de uma víbora.Ela agarrou a corda.Ela a subiu.Ela começou a esbanjar a sua arte.

Ela começou a dançar no ar.Uma dança nunca antes apresentada a pessoas comuns como eu.

Olhava os seus movimentos da mesma forma que olhava para uma estrela cadente.As linhas imaginárias desenhadas pelos seus passos de dança no ar eram algum tipo de interseção entre a fantasia e a realidade.Uma graça capaz de trazer uma serenidade branca para a minha mente corrida e incontrolável.Senti a minha cabeça desacelerar e acalmar.Seus olhos sincronizavam com aquele belo espetáculo.

Ela parou a sua dança por um certo momento.Desceu delicadamente e graciosamente.Começou a se entrelaçar a corda pelo seu belo corpo.Correu pelo palco,formando um grande círculo.A corda subiu e a puxou,levantando-a.Ela rodopiava pelo ar.Bem acima das nossas cabeças.Vê-la voando foi algo extremamente surreal.Uma dançarina dançando sobre nós.Seus passos de dança pareciam mais fantásticos a curta distância.Uma feiticeira soltando sua magia perto dos meus olhos.

Por um momento,pude ver um singelo e ligeiro olhar dela me atingindo.Senti seu olhar perfurando acaloradamente a minha alma e me deixando desnudo perante a sua presença.

Passei um tempo pensando no que ela estaria pensando quando me viu.Momento este que terminou com a dançarina descendo e sendo loucamente aplaudida pela plateia (Me incluo nela).Ela agradeceu com uma reverência.Fernando veio e falou sobre ela.Um nome tão bonito quanto as sua forma e sua graciosidade:Daniela.

Eis um nome do qual eu lembraria por um bom tempo.

Enquanto Daniela saía do palco e se misturava na escuridão da cortina,Fernando anunciava a última atração.Uma atração que as crianças gostariam de imediato...Mas não significa que os adultos não gostariam também.Uma atração que estamparia um largo sorriso nas nossas faces quando fôssemos embora.

Ele terminou seu comentário com o anúncio dela:Helena,A Boba.

Fernando apontou para a cortina atrás dele.A luz de um dos holofotes seguiu a sua referência.

Nada de diferente aconteceu.Nada.Nada mesmo.

Ele tentou anunciá-la de novo."Helena,A Boba" soou mais alto dessa vez.

Nada ainda.

Uma mulher saiu por uma abertura do lado das cortinas.Camisa verde e calças pretas.Cabelo castanho e encaracolado.Devia ser uma pessoa da produção.Ela chegou perto do ouvido de Fernando.Ela começou a falar alguma coisa,enquanto ele ouvia tudo com um ar de incredulidade.O comentário da mulher foi interrompido por um brusco "Como assim ela não acordou ainda?!".A mulher não soube responder àquilo."Traga-a para cá,imediatamente!",gritou ele.A mulher levou apenas alguns segundos para voltar ao palco...Com uma cama de solteiro.Havia alguém dormindo sobre aqueles lençóis amarelados.Uma pessoa coberta com branco.Não...Um branco coberto de bolas coloridas.

Ela foi trazida para perto de Fernando.Ele olhva ela pacientemente,em contraste com seu humor naquele momento.Demorou para perceber que a mulher trazia um megafone.E que a pessoa adormecida na cama não exalava sinal algum de ronco.

"Bom",começou Fernando,"é uma estupenda demonstração de coragem dormir logo no momento que estamos num show,principalmente quando você é a última atração.Sabe,várias pessoas dedicaram uma parte do dinheiro e do tempo delas para virem aqui saborearem um poucos do entretenimento que nós podemos conceder à elas...",ele pegou o megafone e o ligou logo em seguida,"e você fica dormindo nos bastidores?!".

Todos se assustaram.Principalmente aquela pessoa.Ela levantou sem rodeios.Pude ver melhor.O chapéu branco em forma de cone,decorado com bolas de pelos tão coloridos quanto as bolas de sua roupa.O cabelo loiro e longo preso sob a forma de duas tranças que caíam sobre os seus ombros.A sua maquiagem branca e bem chamativa.Os sapatos brancos de cadarços coloridos.

Uma palhaça.

Ela estava de pé.Coluna rígida.Olhando fixamente para Fernando.Fazendo uma saudação militar.

"Ótimo",ele prosseguiu,"agora que está acordada,tenha a decência de começar o seu show",disse ele em um tom amigável,"Helena,A Boba,pessoal!".

Ela andou um pouco até a platéia,acenou com as duas mãos e fez uma breve reverência.Tinha um belo sorriso.Aparentava estar demasiadamente feliz.

Não sei porque,mas eu realmente achei que o espetáculo dela seria abaixo das minhas espectativas.Chato,no máximo.

Mas eu me lembre sobre o quão bom é se surpreender.

A cada brincadeira dela,eu minha risadas era mais altas e mais motivadas.Eram os vários os momentos nos quais eu duvidava sobre quem ria mais:Eu ou José.Nunca chegava numa conclusão.

Em um certo instante,eu dei uma risada tão longa,que quando me recompus,peguei ela olhando para mim por um segundo.Apenas um segundo.Olhando para mim.Não com um sorriso caricato de uma palhaça,mas um sorriso.Um sorriso simpático.Natural.Convidativo.Carinhoso.Como se ela achasse que eu estava adorando o espetáculo.E eu estava.

Ela decidiu terminar com uma pinhata.Colocou uma venda preta nos olhos.Pegou um taco de baseball.Se posicionou perto dela.Preparou bem o seu acerto.E no instante que ela desferiu o golpe fatal...Uma enxurrada de dpces voou sobre a platéia.Todas as crianças comemoraram e caçaram os doces voadores.Ela tirou a venda,esboçando um sorriso agradável.Eu também sorri.Estava muito feliz com aquilo.Por fim,os outros artistas vieram até o palco,se juntaram em um grupo e fizeram uma grande reverência.Agradeceram por terem assistido um show dos Fabulosos Vasquez.

Foi um conjunto de performances memoráveis,pra ser honesto.

Eu e José saímos da lona do circo,junto com o restante da platéia.Ela não parou de falar sobre as atrações,sobre o quanto ele riu com as proezas da palhaçada o quão maravilhado ele ficou com os truques do mágico,o quão incrédulo ele ficou com a dança de Daniele...

E por falar nela,eu a vi saíndo da lona.Com um vestido vermelho,bem diferente do seu maiô,com a alça de uma grande bolsa pendendo do seu ombro.Estava acompanhada de vários rapazes.Não tinha necessidade de contar.Cada um ocupava um luga em uma de suas laterais ou retaguarda,a fim de conseguir um pouco de sua disputada atenção.Esqueci a presença de José e olhei aquela cena com o coração à galope.Senti meu rosto ficar avermelhado e minhas mãos suarem.Uma sensação forte...

"Você gostou?".Ouvi uma voz cortando a minha atenção.Uma voz morna e agradável.Virei para trás.Percebi que José havia parado de falar e também se virou.Era Helena.Ela não estava maquiada.Seguava a sua fantasia com os braços cruzados.Jeans escuros e uma camisa azul-claro.

Ela estava tão linda sem a maquiagem.

"Desculpe,eu não ouvi...",tentei balbuciar,mas o meu nervosismo ao ver Daniela reduzia meu comportamento ao de um homem das cavernas.

"Você gostou do show?",ela expressou um sorriso convidativo.Como se ela dissesse que não havia motivo para ter medo.Receber aquele sorriso foi tão tranquilizante quanto ser banhado por um balde de água gelada para apagar as chamas do nervosismo sobre a minha pele.

"S-sim...Eu gostei.Na verdade,eu adorei",até aí eu estava bem,"mas o seu foi o que eu mais gostei.Você leva jeito pra fazer comédia e coisas engraçadas".Não sei porque falei isso.Foi involuntário.

"Ah,obrigada!",ela reforçou o sorriso,acompanhado por uma coloração vermelha das maçãs do seu rosto.

"Então...Pra onde você vai agora?"

"Eu e os outros vamos para um hotel aqui perto’’

‘’Ué,pensei que vocês iriam embora.’’,e pensei isso mesmo.Uma pena.

‘’Ah,que nada.Vamos fazer uma estadia aqui na cidade,mas não vamos fazer um show todo dia ou toda semana.Vamos fazer um show quando der na telha.Pra não ficar enjoativo.’’

‘’Entendi.’’

E logo no momento no qual me afastei dela para continuar a andar nesse trilho de trem chamado vida,ela se colocou na minha frente,bloqueando o meu caminho.Achei que ela tinha mais alguma coisa para dizer,mas ela colocou uma das mãos no emaranhado de tecidos de sua fantasia.Ela tirou uma flor.Uma flor semelhante á uma rosa.Uma rosa azul-escura.

‘’O que é isso?’’,ela realmente me surpreendeu.Não sou acostumado a receber flores.Principalmente de pessoas recém-conhecidas.

‘’É uma lembrança do espetáculo’’,disse ela,com um ar de sinceridade na voz.

Tentei estender a minha mão para pegá-la,mas hesitei.

‘’Pode pega!Ela não morde’’,ela riu.Eu também ri.Peguei a flor da mão dela.Uma flor de plástico.Pude encostar meus dedos na mão dele.Uma pele macia como seda.

Ela foi rodeada por um mar de crianças.Cada uma queria a sua atenção.Todas haviam adorado o seu espetáculo.Antes de se distanciar e mergulhar no mar de escuridão da noite,ela se despediu de mim com um delicado aceno,um olhar convidativo,um sorriso gentil e um ‘’Tchau’’.Eu apenas acenei de volta com uma mão,enquanto usava a outra para segurar a flor de plástico.Olhava ela partir e José olhava para mim,incrédulo ao fato de ter recebido uma flor de plástico de uma palhaça.

Naquele dia,o meu coração pulsava forte pela dançarina Daniela (ou achava isso),mas eu sorria pela palhaça Helena.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 23/09/2016
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