Cupido Envenenado

“Trago a pessoa amada em três dias”. Ver cartazes como esse espalhados pela rua sempre traz um sorriso triste aos meus lábios.

Como se fosse fácil. O amor é uma das invenções mais dificultosas e sofridas da humanidade. Quem disse que o amor não sofre, não sangra, não chora, é provavelmente alguém que nunca encontrou o amor. Eu sei do que estou falando. Sou um Cupido.

Você provavelmente já ouviu falar da lenda japonesa do fio vermelho. Aquela em que duas pessoas que estão predestinadas a se amarem são ligadas por um fio vermelho invisível. Ou talvez, já ouviu falar da lenda grega, na qual Zeus criou o homem com quatro braços, quatro pernas e duas cabeças, mas essas partes foram divididas ao meio, assim, nenhum indivíduo é completo até achar a sua outra metade.

Todas essas lendas têm um fundo de verdade, porém elas estão fadadas a não se tornarem verídicas. O fato é que o amor não é e nunca foi um conto de fadas. Duas pessoas que estão destinadas a se amarem nem sempre se encontrarão enquanto forem vivas. Além disso, o amor é muito complexo para ser colocado em qualquer definição. Há pessoas diferentes no mundo e nem todos os casos de amor verdadeiro são felizes, ou saudáveis. Você pode estar predestinado a amar um psicopata. Se esse for o caso, sinto muito, mas o amor é uma via de armadilhas. Nem tudo é cor de rosa, às vezes é vermelho, como sangue.

Eu posso provar o que digo, porque essa é a minha função: não permitir que certas pessoas sejam felizes no amor.

Acontece que eu sou um tipo diferente de cupido. Minha divisão é outra.

Imagine uma sala imensa com diversos compartimentos cheios de arquivos. Caminhe por ela até o final do imenso corredor, até aquele lugar onde a iluminação vai ficando fraca e a temperatura cai, formando uma região nebulosa, escura e fria. Onde nenhum fiapo de alegria ou esperança habita, o lugar mais provável para o desespero e a loucura. O último compartimento da última fileira. Esse é o meu departamento.

Sou o Cupido dos Amores Trágicos.

Se eu gosto dessa função? Bem, acho que não há como gostar de uma função como essas, mas alguém tem que fazer o trabalho sujo, não é?

Você já se perguntou como se resolveriam as lendas se, por exemplo, uma ponta do fio vermelho estivesse em algum lugar remoto do mundo e a outra ponta nunca pudesse encontrar o seu fim? Ou se uma metade do ser humano de Zeus estivesse confinada em uma cela para toda a sua vida e a outra metade não tivesse meios de resgatá-la? Eis a resposta: não há solução. Bem-vindo ao meu mundo.

Agora estou no meio de uma missão e já divaguei demais, a qualquer momento estarei ocupado fazendo com que mais duas pessoas no mundo nunca se encontrem. Se você quiser, pode vir comigo, mas eu não aconselho, a não ser que você goste de histórias que não têm um final feliz.

A avenida está movimentada. Carros, motos e ônibus passam a toda velocidade desviando de pedestres, ciclistas e skatistas. Nada novo sob o sol de Manhattan. Mais um fim de tarde comum, com pessoas estressadas e apressadas. O relógio corre e a cada minuto que passa, menos tempo há para se perder.

Ben Riviera é um artista de rua. Veio de Porto Rico tentar a vida em Nova York. Acorda às 7h da manhã, toma café numa lanchonete, fuma um cigarro e sai por aí levando sua guitarra nas costas. Toca em metrôs, em sinais, em calçadas com bastante movimento e em pontos turísticos. Consegue alguns trocados, almoça em outra lanchonete e vai para o estúdio. Seu bico numa produtora dura cerca de quatro horas e envolve pouco mais do que limpeza geral, suporte técnico e organização de equipamentos. Todas as vezes que ele se aproxima de algo que não é a sua área, lhe viram as costas sem lhe dar nenhuma oportunidade. Mas ele segue tentando e nesse dia, finalmente, finalmente, ele conseguira agendar uma apresentação num pequeno pub alternativo no subúrbio da cidade.

Com a guitarra nas costas sai cantarolando uma música autoral. Recebe uma ligação de Morris, sua baixista. Ela está lhe esperando no lugar do concerto com algumas pessoas e lhe avisa que já conseguiu os equipamentos necessários. Tudo conforme o planejado, hoje é o dia da grande estréia. O dia em que Bem Riviera pretende deixar sua primeira marca na história do rock.

Corre em direção ao seu futuro, sorriso bobo no rosto, um jovem cheio de vida e talento. Tanto talento e tanta vida, realmente seria uma pena se...

Bum.

Seria uma pena se as luzes estivessem apagadas. Seria uma pena se os freios não estivessem funcionando corretamente. Seria uma pena se o motorista estivesse alcoolizado. Seria uma pena, não. Foi uma pena.

Cabeça no asfalto, costela quebrada, guitarra despedaçada, esperança vã.

Sangue. Tanto sangue.

O tempo congela, o mundo gira devagar, as pessoas ao redor paralisam em suas expressões aterrorizadas. Gritaria, multidão que se aglomera.

— Alguém chame uma ambulância!

Ninguém se move, alguém se aproxima.

— Afastem-se, afastem-se, eu sou médica!

Não era, era uma estudante de enfermaria com aspirações grandes demais. Ainda assim, consegue espaço, não pode omitir socorro.

Toma-lhe o pulso, fraco. Examina seus ferimentos. Presta os primeiros socorros.

— Alguém já chamou uma ambulância? — ninguém responde, ela se irrita. — Você, chame uma ambulância, agora!

Já se passaram mais do que cinco minutos, o paciente está se esvaindo. Ouvem-se sirenes. É a polícia. Alguém já identificou a vítima? O carro sumiu, alguém anotou a placa? Mais minutos perdidos. Ben Riviera não tem documentos, está no país ilegalmente. Mais sirenes, finalmente a ambulância.

Macas, paramédicos, máscara de oxigênio, faixas para estancar o sangue, eletrodos. Alguém para acompanha-lo? Ninguém. Alguém para quem ligar? Ninguém. Segue para a rede pública. Emergência. Chamem o médico de plantão.

Ah, lá está ele.

Hans Schröder. Descendência alemã, recém-completos 27 anos. Médico residente, primeira emergência. Aparenta tranquilidade, mas no fundo está nervoso. Lembra-se de todas as aulas, como um bom estudante que é. Segue para a sala de cirurgia. Os batimentos do paciente estão fracos, há uma queda nos níveis de oxigênio.

— Peguem o desfibrilador!

Hans é um médico decente e Ben é um rapaz forte e saudável. Talvez, com uma margem de cinco por cento de chance, ele fosse capaz de reverter a morte certa e ressuscitar pelas mãos de seu futuro amor.

Ah, veja! O desfibrilador parece ter funcionado!

Os batimentos de Ben voltaram e sua respiração está mais ou menos estável. O perigo iminente passou, é hora de cuidar do resto.

Algum tempo de cirurgia faz com que a perfuração nos pulmões causada pelas costelas quebradas não seja mais uma ameaça. A transfusão de sangue ocorre com sucesso e a situação é estável. Ben vai sobreviver.

Hans está mais do que simplesmente aliviado. Algo em seu âmago lhe diz que não podia perder esse paciente. Agora que tudo está sob controle, é hora de saber quem ele é. A polícia achou seu telefone e ligou para o primeiro contato na sua agenda. Morris veio correndo e entrou no hospital em prantos. Seria aquela bonita menina a namorada de seu paciente? Tal pensamento lhe deprime, Hans se confunde com suas emoções, mas vai ao encontro dela. Explica a situação do paciente e pede algumas informações.

Ben está sozinho no país, é um residente ilegal. Assim que estiver melhor, tentarão atirá-lo para fora da fronteira. O oficial de polícia pede seu diagnóstico, Hans exagera o estado de gravidade do paciente. Algo lhe diz que deve manter Ben a salvo. Algo também se alivia em seu coração quando Morris diz não ser sua namorada, mas apenas uma colega de trabalho. Um artista, que intrigante. Músico... Hans adora música.

A enfermeira lhe informa que o paciente acordou.

Ben parece meio grogue e em estado de confusão ainda. Não sabe bem o que aconteceu e ao olhar em volta começa a entrar em pânico. Um hospital? Ele está num hospital? Não pode ficar aqui, vão pegá-lo sem os documentos!

— Benjamim, eu sou o doutor Hans Schröder. Não se preocupe, você está bem, está tudo bem. Ninguém vai tirá-lo daqui sem o meu consentimento.

Ben e seus grandes olhos negros cheios de aflição parecem se acalmar aos poucos à visão do médico. Sentia que podia confiar em alguém com voz tão melodiosa e aparência tão gentil.

Eles se encaram em silêncio. Cada qual com seus pensamentos confusos e distantes a respeito um do outro. Sem que percebam, seus corações aceleram, suas pupilas dilatam, seus pelos se eriçam e seu cérebro começa a produzir dopamina. Gostam um do outro, sentem-se confortáveis na presença um do outro, confiam um no outro. O amor não é um simples sentimento. É pura e simples química. Não está apenas na mente. Está cravado no corpo. As primeiras reações ao amor são físicas. Antes que as almas saibam que se amam, os corpos já anseiam pelo afeto um do outro.

É aqui onde eu entro.

Você já solucionou o mistério?

Ben e Hans estão ligados por um fio vermelho invisível. Infelizmente, eu preciso garantir que as pontas nunca se encontrem.

Quando você imagina o Cupido, por acaso visualiza um anjo nu com cabelos loiros e cacheados, asas puras e brancas, munido de um arco de ouro e flechas em formato de coração, não é? A imaginação humana é uma coisa realmente curiosa. Mas, pois bem, fique com a sua imagem, eu não perderei tempo tentando explicar como realmente sou. O único detalhe que peço que repare são as flechas que carrego comigo. Não têm formato de coração e não são de ouro.

Elas são invisíveis, a não ser por um brilho perigosamente hipnotizante. Se você pudesse enxerga-las provavelmente ficaria tão encantado por elas que ansiaria o momento em que elas se cravassem em seu coração, despedaçando-o. O efeito que produzem não é o mesmo para cada pessoa. Todos têm uma história diferente e já escrita. Às vezes, elas apenas fazem com que o alvo mude de rumo, siga por um caminho diferente, onde jamais trombará com seu amante. Às vezes, elas projetam pensamentos horríveis, doenças, transtornos mentais que fazem com que o indivíduo nem sequer chegue a procurar o amor, assim, nunca o encontrando. Outras vezes, porém, elas são ainda mais maldosas, minhas Flechas Envenenadas.

Essa, infelizmente, era uma dessas vezes.

Ben Riviera engasgou e espasmou. Arqueou e contorceu–se horrivelmente, sentindo uma pontada de dor asfixiante. Seu coração parou.

Hans entrou em pânico.

Bem, eu não preciso ver a cena que vai se desenrolar a seguir, pois minha missão já está cumprida, mas, se você quiser, pode ficar assistindo. Você verá Hans acionar o alarme logo acima da maca do paciente e correr em direção ao desfibrilador mais próximo, a sala se encherá de enfermeiros e operadores de equipamentos. Não haverá meios de transportar Ben até a ala emergencial então algumas coisas deverão ser improvisadas. 1, 2, 3, Hans vai pressionar o desfibrilador no tórax de Ben, rezando para que ele ressuscite. Nada. 1, 2, 3, nova tentativa. Dessa vez, Hans terá lágrimas nos olhos.

Ele sabe que não há chance. E eu sei perfeitamente o que acontecerá com ele a seguir. Hans será um cirurgião extremamente bem sucedido, mas ao longo de sua carreira nunca esquecerá daquele primeiro rapaz que morreu em suas mãos. O pensamento de ter deixado Bem morrer lhe atormentará para o resto da vida e ele nunca encontrará a plena felicidade.

Fim da história.

— Os batimentos voltaram! Estabilizem os níveis de oxigênio!

— Continuem com os procedimentos de reanimação!

— Fiquem atentos a qualquer sinal de parada cardiorrespiratória!

— Verifiquem a pressão!

— Está estável, doutor. A reanimação foi bem sucedida.

— Níveis de oxigênio voltando ao normal.

— Batimentos constantes.

— Não o perdemos, ele está bem.

O que você disse? Eu falhei? Não seja ridículo, essa possibilidade não existe, minhas flechas envenenadas nunca erram!

Você está delirando. Ben não pode ter sobrevivido.

Hans cobre os olhos, apoiando-se em um canto da parede. Ele está chorando, mas não é de tristeza. É de alívio. Ben vive!

O que é este sentimento que o invade tão repentinamente? Essa força descomunal com a qual Hans se dirige ao leito do paciente? Ben respira, abre os olhos lentamente. A primeira coisa que vê é um homem sorrindo para ele.

Sorrindo!

Hans não pode sorrir! Não é seu destino ser feliz! Há algo errado!

Ben respira. Ben está fraco demais. Mas ele reúne uma força incomum. O que é este sentimento que o mantém vivo?

É... amor?

— Eu não acredito em amor à primeira vista...

Diz Ben, num sussurro. Hans tenta calá-lo, dizendo que está muito fraco para falar agora, mas Ben não lhe dá ouvidos.

—... Eu tinha que te ver uma segunda vez para começar a te amar.

Eu falhei.

As pontas do fio vermelho entre os dois se encontraram num laço inquebrável. A flecha envenenada chegou tarde demais. Do momento em que se viram a história dos dois mudou.

Eu falhei e vou pagar caro por isso. Uma flecha que ricocheteia não atinge outro senão o seu dono. Agora que ela arde cravada em meu peito e eu tenho lágrimas nos olhos, vejo passar o tempo pela minha frente repleto de acontecimentos felizes.

Eu falhei e, no entanto, essa foi a coisa mais certa que já fiz em toda a minha existência. Morro conhecendo o que é o verdadeiro amor. Minha missão está cumprida.

Ingrid Flores
Enviado por Ingrid Flores em 08/09/2016
Reeditado em 09/09/2016
Código do texto: T5754895
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