Adágio

ADÁGIO

Roman Kane

Superei o medo e fiz minha primeira viagem de trem, sozinha, da capital para o interior, era noite. Minha mãe providenciou toda documentação e fez mil recomendações ao chefe do trem, disse que meu avô estaria me esperando de manhã na última estação. Não via meu avô, desde a morte da vovó, quando ele e mamãe brigaram, não sei por qual motivo, aliás, nunca soube. Sentei numa das poltronas e tentei dormir, a viagem era longa e cansativa. Fiz amizade com outras crianças que também estavam viajando, fizemos muitas explorações e brincadeiras pelos vagões. Cansei, dormi, acordei com o chefe me chamando, tinha amanhecido. O trem parou numa pequena estação e logo vi vovô me acenando. Ele me deu um forte abraço e fomos ao café.

Fez boa viagem?

Sim, vovô! O trem Foi muito divertido!

E a sua mãe? Como ela está?

Sempre correndo, ela sempre está muito ocupada!

É... Pelo jeito ela continua a mesma!

O que você quer beber?

Um suco!

Eu vou tomar um copo de vinho!

Garçom!

Pois não senhor!

Me trás uma limonada pra a garota e uma taça de vinho pra mim!

E o senhor vovô tá bem? Mamãe disse que você ficou muito triste depois que a vovó morreu!

É verdade! Eu e sua vó vivemos juntos uma vida inteira! Depois que ela se foi, senti um enorme vazio! Agora já estou mais conformado!

Que bom, vovô!

Vamos deixar de tristeza e nos divertir em suas férias!

Essas foram as melhores férias da minha vida, eu e vovô vivemos muitas aventuras. Lembro-me de quando fomos passear a cavalo pelos campos floridos da fazenda e vovô foi me dizendo que no seu tempo de criança, tudo era muito diferente, ele dizia que o tempo demorava a passar e que o natal... Ah o natal custava a chegar, ele não via a hora de ganhar os presentes e ficar acordado até tarde da noite, naquela época as crianças dormiam cedo, logo após o jantar. Sua voz era grave e tranquila, transmitia segurança e eu me sentia protegida de qualquer perigo. Quando a noite chegava, com suas sombras e mistérios, escutava a coruja piando no quintal e vovô dizia: Não tenha medo, a coruja é um bichinho que não faz nada, ela mora ai no toco da cerca. Sempre fui muito medrosa, tinha medo de ficar só, de ser abandonada, principalmente no período em que mamãe e papai estavam se separando. Criança sente e não consegue entender o mundo dos adultos.

Deite-se que eu vou ler uma estória bonita pra você!

Com seu jeito manso e calmo ele abria o livro e começava a ler uma lenda muito antiga de uma princesa que morava no alto de uma torre e como num passe de mágica, meus olhos iam se fechando e eu me via voando por um país distante repleto de animais fantásticos, pássaros mirabolantes, florestas encantadas, montanhas, rios e cachoeiras.

No outro dia cedo, cheirinho de bolo de milho e café com leite fumegando no bule em cima do fogão a lenha, que delícia.

Bom dia, garotinha!

Bom dia vovô!

Hoje vamos pescar lá na lagoa! Pescar bagres e traíras!

Aprontamos os lanches e as tralhas de pesca, vovô atrelou o cavalo a carroça e lá fomos nós estrada afora. Manhã ensolarada, colorida, cheia de borboletas pelo caminho, tudo parecia sorrir, as flores, os pássaros, o vento fresco no rosto, a felicidade morava ali. Andamos um bocado de chão e chegamos à beira do córrego. Água limpinha, cristalina, dava pra ver o fundo de areia branquinha e peixinhos listrados nadando ariscos e desconfiados. Vovô foi até o barranco e soltou o cadeado da corrente, que prendia um pequeno barco, em seguida, pegou a sacola de apetrechos, as varas de bambus, o samburá e depois me disse: Venha, pegue a cesta do lanche e suba!

Vovô foi remando e o barquinho foi deslizando suave pela correnteza calma e foi desembocar numa lagoa, repleta de aguapés, onde uma variedade de pássaros revoava em bandos criando um belo espetáculo visual. Garças brancas e patos selvagens nadavam tranquilamente numa espécie de balé, tendo como fundo musical, uma ária cantada por um lindo pássaro azul, acompanhada pela exuberante orquestra da natureza. Vovô apoitou o barquinho no meio da lagoa e começamos a nossa pescaria. Senhorita me passe à isca para por no anzol!

Aprendi a pescar com vovô, a por minhoca no anzol, a fisgar o peixe na vara (que emoção) e depois retira-lo d’água e colocar no samburá. Nossa que farra, ríamos de tudo e vovô me contava das suas peripécias e falava da vovó e da mamãe, das suas viagens. Quando cansávamos ele dizia: Hora do lanche! Comemos sanduiches de pão com mortadela e tubaína. Quem já comeu pão com mortadela e tubaína? Inesquecível, essas pequenas coisas, coisas que ficaram para sempre em minha memória.

Ao entardecer voltamos para casa. O crepúsculo diferentemente do amanhecer, sempre me causa estranheza, outros sentimentos, me deprime e a melancolia invade a minha alma, sinto que não tenho respostas para nada. Quando a primeira estrela pinta no céu me vejo pequenininha e a dimensão do universo toma conta de mim, o coração aperta e uma lágrima besta insiste em escorrer pelos meus olhos. Os bichos correm para suas tocas, os pássaros para os seus ninhos, os primeiros vagalumes piscando pelo capinzal e finalmente a noite desce sobre a face da terra e o reino das sombras a tudo abraça.

Um sarau, que lembrança doce. Nos finais de semana vovô convidava as pessoas para conhecer a neta da cidade grande. Nossa que linda! Ora veja só, a cara da sua filha, igualzinha! Na sala grande tinha um piano, piano que meu avô havia dado de presente á minha mãe, quando ela era menina. Ele gostava de se lembrar das vezes em que ela tocava aquelas valsas e minuetos e os sons embalavam a todos e ele dançava com minha avó pela sala grande. E como que para reviver tudo aquilo ele me pedia: Toque aquela valsa antiga! Eu me sentava ao piano e tocava “Saudades de Matão”. Ele sorria e depois chorava e todos batiam palmas. Naquelas noites quentes de verão, saia para a varanda e contemplava o “luar do sertão” surgindo por detrás das matas, sentia o perfume das flores do campo e ficava ouvindo o coaxar dos sapos lá no brejo. Como num sonho as férias chegaram ao fim.

Garotinha, acorde! O trem já está chamando!

Vovô me levou a estação de trem e sentamos no café, para esperar o horário da partida.

O que vai querer?

Um suco!

Eu vou tomar um copo de vinho!

Garçom!

Pois não senhor!

Me trás uma limonada pra a garota e uma taça de vinho pra mim!

Depois de um breve silêncio, pensativo e com o olhar perdido em alguma lembrança do passado, talvez, disse:

Diz pra sua mãe me perdoar! Diz que ela tá sempre no meu coração!

Mamãe é meio durona, mas tenho certeza que no fundo, ela te ama!

Ele me deu aquele forte abraço e murmurou no meu ouvido:

Seja feliz, viu!

O trem apitou triste e da janela eu vi ele me acenando. Foi à última vez que vi meu avô. Alguns meses depois, ele adoeceu, acho que já estava doente, mamãe foi ao hospital, ficou com ele até o fim. Foi enterrado ao lado da vovó, debaixo de uma figueira na fazenda. Mamãe voltou triste, mas mudada, com o olhar mais cândido. Nunca me disse nada do que conversaram.