Só o medo é feliz

Gustavo tinha poucos anos quando encostava a cabeça na janela do seu quarto no segundo andar da casa mais alta da rua, e sentindo o vento cobrir o seu rosto desejando um dia ter um amigo. Não que não tivesse contato com outras crianças da sua idade, mas nada que o fizesse se sentir tão próximo de alguém, que o fizesse ser criança como as outras crianças eram. Quando completou doze anos mudou de escola, bairro, e consequentemente pôde conhecer outros grupos. Mas ninguém, nada se aproximava dele. Gustavo estava em constante mudança, já que seu pai falecido, sua mãe em absoluta devoção à religiosidade, estava sempre atrás de uma igreja que fosse da altura da sua fé.

Casada novamente, e gravida do seu quarto filho, sua mãe decide mudar para uma casa maior, já que a atual não comportaria mais um novo integrante familiar. Mas Gustavo já estava cansado, e também por não se dar bem com seu padrasto, e não ter tanta aproximação no ambiente familiar, pediu que a mãe o deixasse ficar com as tias, pedido que foi concedido sem impugnação de qualquer parte.

Gustavo tinha uma boa convivência com suas tias, já que elas dedicavam praticamente seu total tempo a ele. E talvez fosse o que ele precisasse.

Embora fosse o filho mais velho de uma família de quatro irmãos, Gustavo não se sentia o mais especial. Não que houvesse qualquer preferência da mãe de Gustavo por qualquer dos filhos, mas trabalhando em dois turnos, e dedicando o tempo livre a Deus, a mãe não podia dar atenção para todos, e os irmãos não se importavam, já que podiam fazer praticamente qualquer coisa sem supervisão.

Finalmente Gustavo se sentiu preencher, mas ainda havia algo que estava errado. Conheceu algumas pessoas que residiam próximo, e que de alguma maneira ele acreditava existir alguma conexão, mas não era o suficiente, existia algo que o deixava afastado de tudo ao redor.

Aos quatorze anos, e reintegrado na casa de sua mãe, que percebeu que um filho de peixe peixinho não é, Gustava foi arrastado para uma festa de rua por sua irmã, que o fez dar seu primeiro beijo. Foi com um desconhecido, de cabelos loiros, olhos azuis, piercing nos lábios, e hálito embriagador. Sentiu-se usado em todos os sentidos, tendo em vista que sua irmã gostava de garotas, e estava segura disso, mas precisava se sentir livre da culpa cristã da mãe, de não ser aceita sozinha pela decisão asseverada que iria tomar. Precisava que alguém compartilhasse da mesma dor que ela, caso sofresse de alguma forma. Na manhã seguinte, os dois deitados, juntos, ele de olhos semisserranos, perguntou para sua irmã o que significava a palavra gay. Explicou que ouviu por diversas vezes, mas que cujo significado lhe era desconhecido. Ela riu.

Todas as quartas e domingos, ela, a irmã, o arrastava pelas ruas quase desertas e escuras, onde se perdia por horas e o deixava em um canto encostado em qualquer lugar. Diversos homens se aproximavam, alguns lhe causava estranho medo, e outros vinham, conversavam, tentavam o agarrar, o agarravam, colocavam as mãos em lugares desconhecidos até por ele mesmo, ele chorava, os homem riam, às vezes se afastavam, às vezes queriam tirá-lo de lá. Ele não sabia dizer não. Ele dizia sim, tinha medo, mas dizia sim. Sempre sim. Mas a irmã às vezes se aproximava, não deixa que o levassem, gritava, mandava alguns embora, às vezes ria, às vezes não fazia nada, estava acompanhada, estava bêbada, era sempre sim.

Numa dessas quartas e domingo, Gustavo conheceu Karina. Ela não se calava. Karina estava sempre falando, sempre acompanhada de várias pessoas, estava sempre acompanhada, estava sempre no mesmo lugar, mas às vezes, por um curto lapso temporal, não estava. Ela é divertida, pensou Gustavo. E reiterou o pensamento diversas vezes, em vários momentos distintos, até que Karina o levou para trás de um carro, abriu sua carteira, tirou um saco e um canudo, virou o rosto e depois estendeu para Gustavo, ele sorriu, gostaria de dizer que não, quer dizer que não, mas é sempre sim. Sim, diz. Ele tenta. Nada muda. Ela ri, não disfarça, depois voltam para o ponto de encontro.

Aos dezesseis anos já não existia mais a irmã por perto, mas existia Karina, existia Nora, Jorge, Julio, e tantos outros, que andavam em bando, sentiam-se felizes. Estava só, nada havia mudado, mas estava próximo de pessoas notadamente iguais. Cobriam se culpa, que se abafava em meio de tanta cumplicidade. Eram amigos.

Aos dezenove anos não existia qualquer dos anteriormente citados, mas Gustavo ainda existia, o sim também. Tudo era sempre sim, e no sim conheceu Bernardo. Estavam sempre muito próximos, protetores um do outro, cuidavam um do outro, nunca estavam sós. Não existia mais aflição, dor, angústia e sofrimento. Vestiam-se iguais, cortavam o cabelo iguais, moravam juntos. Bernardo tinha cabelos loiros, olhos verdes, quase a mesma altura de Gustavo, e ensinou a Gustavo como dizer não, entre tantos nãos dado por ele. E ele disse não, não, não, e depois disse não novamente, e então não disseram mais nada um ao outro.

Gustavo estava só. Novamente, pensava com seus olhos abaixados, e de novo, e de novo, de novo. Não que com vinte e um anos ele se importasse em estar só, não ligava mais, pois agora dizia não. Gustavo queria estudar, ser professor de Filosofia, e então tentou e conseguiu iniciar o curso. Dois semestre depois largou, mudou para Ciência Política, conheceu Rayssa, tornaram grandes amigos, quase irmão. Sempre unidos, estavam sempre próximos. Gustavo e Rayssa saiam juntos sempre, conversavam sempre, tocavam bateria e guitarra sempre, ouviam suas bandas preferidas sempre. Os dois tinham uma banda que sempre tocavam juntas. Tinham as mesmas angústias, o vazio os consumiam na mesma proporção e tempo, estavam sempre em sintonia, se amavam. Lutariam sempre um pelo outro.

Rayssa conheceu Gregori, Gustavo conheceu Nic, mas estavam sempre juntos, se amavam. Embora Nic nunca estivesse presente, Estavam sempre juntos Gustavo, Rayssa e Gregori. eles iam sempre para lugares distintos, cheios de pessoas, muito barulho, muita bebida, muitos cigarros, muita comida, não que se importassem, até o final da festa. As pessoas os olhavam, os viam felizes, Nic nunca estava. Alguns meses depois Nic decidiu não estar mais definitivamente.

Nic, ou Nicholas, tinha o cabelo negro, pele branca, olhos escuros, o sorriso mais lindo que Gustavo já tinha visto. Encontraram-se a primeira vez em um temporal na noite de terça, em dezesseis de janeiro. Beijaram-se, não preocuparam-se, amaram-se para sempre no meio de tanta chuva, e então estavam conectados. Conversavam diariamente sobre uma enorme diversidade de assuntos, e muita das vezes empolgavam-se e faziam planos. Foi em uma dessas conversas que Nic, alguns anos mais novo, confessou que estava em contato com um ex caso, mas que não via problemas, tendo em vista que toda história é uma história. Gustavo sentiu-se novamente mergulhar numa onda de angústia, e solidão. Não pelo fato do contato, mas pela forma como Nic expressava-se ao dizer aquilo. Gustavo conteve-se, esperou, as coisas ficaram áridas entre eles, e depois de um tempo não havia mais coisa alguma, pois Nic já não o atendia mais, não o procurava, preferia viver sozinho e triste do que estar ao lado de quem jurava amor e solidariedade à quem o fazia sentir toda a dor do mundo. Então se foi, não estava mais em lugar algum.

Aos vinte e três anos, Gustavo estava boiando em uma piscina por quase quarenta minutos quando Rayssa decidiu finalmente intervir. Ela o confidenciou várias coisas, e ele olhava-a e nada sentia. Não existia o sim, o não, tudo estava lá, nada estava lá. Gustavo não se importava. Tudo ia quase bem no curso de Ciência Política, se não fossem as provas, suas notas iam bem ruins, ele não se importava. Nada importava. Os caras vinham, queriam o sim, faziam qualquer coisa pelo sim, riam, dopavam-o, bebiam, o deitavam, tiravam a sua roupa, Gustavo fechava os olhos, escondia os olhos encharcados, era sim, era não, era qualquer coisa, não estava lá. Bebia todos os dias, tomava calmantes em doses cavalar, dormia, não sentia nada.

Foi numa noite de domingo que não se conteve, um ano depois ligou para Nic, pediu que o encontrasse.

Nic voltou. Tudo encontrou um lugar melhor para descansar. Já não havia mais dor, angústia, sofrimento. Só havia felicidade, e amor.E o Sim e o Não voltaram.

Foi também em um final de domingo, que Nic confessou ter beijado uma garota, não teve sexualização, sentimento, foi só brincadeira, sabe? Entende? - disse ele. Os olhos de Gustavo se encheram de água. Uma água fria, olhos quentes, cheios de algo que nunca imaginou sentir novamente. Nic ri, está seguro. Gustavo o procura, diz que o ama, entende.

Um ano e dois meses depois. Gustavo está sozinho, cinco horas esperando Nic, que há cinco horas saiu de casa dizendo ir ao seu encontro. Ele liga, parece está embriagado, ri, diz que está indo.

Não existe sim, não existe o não... Gustavo está só.

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 06/05/2016
Reeditado em 07/05/2016
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