AMOR E CHAMAS II
 
A pensão onde Thor residia ficava no centro da cidade, possuía 3 andares, com 6 quartos em cada andar. No térreo, havia um restaurante em que se almoçavam de dia, e à noite era usado como bar para encontro entre os clientes e pessoas residentes na cidade.

No ambiente havia uma mesa mais afastada, à meia luz. Ficava quase que escondida dos demais. Era onde Thor costumava se sentar, às vezes, e, por isso, o Sr. Souza sempre a deixava reservada. 

Gentes de toda região se hospedavam ali, quando vinham a negócios ou passeios. Havia movimento constante e histórias diversas eram contadas, sobre o que se acontecia nas adjacências interioranas, ao que Helena se atentava. Gostava de ouvir os causos que a faziam ultrapassar, em seus pensamentos, os limites da cidade.

Era início de primavera. As flores começavam a mudar o semblante da cidade. Nas ruas, as árvores e os jardins das casas, com suas flores, deixavam o ambiente mais alegre. Thor chegara à pensão onde morava, num quarto de solteiro. No balcão, encontrava-se Helena, que atendia a um cliente:

- Boa tarde, Thor – Cumprimentou.

Thor pareceu não perceber, passou rapidamente pelos fregueses, subiu as escadas e se dirigiu ao quarto. Antes, avisou que não queria ser incomodado, nem mesmo faria o jantar habitual com a família Souza, dona do estabelecimento.

Helena teria se incomodado, se já não conhecesse o comportamento habitual do ilustre morador e continuou seu trabalho, cordializando os fregueses.

Lis, filha de Antônio Souza, era uma mulher de beleza única em sua maneira de ser e de lidar com as pessoas. Gentil e sorridente. Não era muito bela, mas compensava com a alegria que sempre estampava no rosto, ao falar com as pessoas. Gostava do que fazia. Os cabelos eram negros e compridos. O rosto afinado, dando-lhe os trejeitos próprios da feminilidade. Era magra, de estatura mediana, e costumava se trajar com uma camiseta que demonstrava a firmeza dos belos seios.

Naquela noite, usava uma saia que mal chegava aos joelhos, e suas pernas morenas chamavam ainda mais a atenção, sobretudo quando se sentava para falar com alguém. Com o avançar da noite e o frio que se assentava, os bicos dos seios agrediam a camiseta que usava. Estava impecável. Era inevitável entrar ali e não prestar atenção em Helena. Thor também já havia reparado, embora se desposasse do que lhe pudesse parecer trivial e mundano, tal como o desejo, que em Helena, lhe provocava com intensidade. 

Mas não possuía somente esse aspecto mundano, com sua presença que cativava os freqüentadores e amigos. Helena conhecia obras de ilustres pensadores como Niecthie, Jung, Shopenhauer, Boff, entre outros. Por vezes, colocava-se em reflexões que a transportavam da pequena cidade. Os debates entre Helena e Thor jamais seriam esquecidos. Ela procurava demonstrar a existência de um Deus fiel e protetor. Ele falava do Deus quântico. Ela falava de bondade e crença no mundo. Ele a tudo negava: Luz e treva.

 Helena costumava trabalhar à noite, atraída pelas conversas às mesas. Havia os clientes preferidos com quem costumava falar: O policial que fazia montanhismo e contava suas aventuras; o pastor que falava, à sua versão, sobre a palavra de Deus; o professor de física que, muitas vezes, proferia discursos científicos e até  os vereadores, debatendo sobre política.

Mas Helena tinha uma particular atração por Fred, um ex-jogador de futebol, que trabalhava num banco e sempre freqüentava a pensão. Era mais alto que o habitual dos freqüentadores. Tinha os cabelos pretos, e o rosto singelo era contraposto pelo vigor corporal. Ainda possuía o ar de atleta e sempre falava de suas aventuras como jogador semiprofissional, dos torneios que disputara, e da emoção das partidas. Ainda jogava, mas agora por divertimento, sem o peso que impunha os campeonatos.

Sempre que chegava, procurava por Helena, e esperava, muitas vezes, que se desocupasse para que pudessem se falar. A atração era recíproca, Fred não faltava de ir à pensão todas as noites e, por vezes, sempre que podia de manhã ou à tarde.

Thor já havia compreendido. Lutava contra o sentimento que lhe brotava, isolando-se ainda mais. Era o oposto de Fred. Este extrovertido, alegre, vibrante, o que chamava a atenção de muitas mulheres. Mas isso não incomodava a Thor que habitualmente tratava o mundo com desprezo, senão por Helena que, incompreensivelmente, tocava-o, em segredo, na mente mais profunda, infiltrando-se em seu inconsciente através dos sonhos fortes e intrigantes que lhe povoavam as noites. E na noite é que parecia ter seu verdadeiro viver.

- Oi, Helena! – Cumprimentou Fred ao chegar.

Helena, quando o viu, alegrou-se. O amigo que amava chegara.

- Olá, Fred! Que bom que veio!

Helena falava com amigos em uma mesa. Pediu licença, e veio se sentar com Fred, como habitualmente.

- Helena, hoje queria te contar uma coisa.

Helena pareceu intrigada. Geralmente Fred chegava a falar de coisas normais, sem nenhum pré-anúncio.

- Sim, Fred, diga.

Ele sorriu. Estava irradiante, como se seu time tivesse vencido um campeonato de futebol.

- Helena, recebi uma carta da regional do banco. Fui promovido a subgerente. Terei de fazer um curso de um semana, para aprimoramento e devo assumir o novo cargo no próximo mês.

Helena sorriu, realmente compartilhando do momento único na vida do amigo. A primeira conquista profissional importante.

- Vamos festejar, Fred.

Pegou um vinho, cuidadosamente selecionado, e serviu ao amigo e ficaram desgustando o vinho e falando sobre as possibilidades, o sucesso profissional do amigo emergente. Nos semblantes se via os verdadeiros sentimentos, na alegria da companhia mútua e no desejo de bem estar do outro.

- Onde será o curso, Fred? Você ficará lá por uma semana inteira e não vamos nos ver nesse período? – Perguntou Helena.

- Não, minha amiga querida, Farei em Divinópolis, aqui perto, e virei todas as noites. Viajarei pela manhã e à tarde já estarei de volta.

Helena sorriu, em seu íntimo, estava feliz por não ter de ficar longe do amigo. Nada disse, mas Fred percebeu:

- Minha linda, seria difícil ficar sem te ver por uma semana – Proferiu Fred pegando nas mãos de Helena, que repousavam sobre a mesa.

Os olhares se direcionaram nesse momento. Helena percebeu a intensidade do olhar de Fred, que parecia ultrapassar o sentimento de amizade. Rapidamente retirou as mãos e as apoiou sobre as pernas.

- Fred, eu também iria sentir sua falta. – Respondeu num sorriso desajeitado.

O momento parecia extraordinário. O amigo querido demonstrou a face de um amor emergente. Helena não estava preparada. Balbuciou mais algumas coisas e desculpou-se com Fred, por ter de atender aos demais clientes. No fundo, fugia do momento. Amava-o como amigo, mas o amaria como homem?

Helena não voltou mais à mesa de Fred naquela noite. Ao sair, ele se despediu dela num sorriso largo:

- Helena, até amanhã, amiga.

- Até amanhã, Fred. E venha mais cedo um pouco, antes que tenha de viajar.

O tempo parecia vibrar. Meia noite rapidamente chegou. Helena lembrou-se de Thor. Não havia descido como falara. Ela já o conhecia e sabia desse seus aspecto pouco amigável e pouco social. Mas preocupou-se de ele não descer. Percorreu todas as mesas, perguntando se precisavam de algo e resolveu subir um pouco, para ver se Thor queria algo para comer.

A porta não estava trancada. Helena bateu e não houve resposta. Insistiu chamando pelo nome de Thor. Nada. Helena resolveu entrar.

No quarto se via, à estante, livros que falavam sobre física quântica, astronomia, ciências, psicologia, sociologia. Também se via a presença de pensadores com Platão, Aristóteles, Nietzsche, Jung, Boff, entre outros. Havia também uma Bíblia. Thor era leitor assíduo de tudo, embora defendesse a existência de um Deus diferente do apregoado nas escrituras e geralmente combatesse as idéias dos pensadores aos quais lia. O contraste era Thor. A crítica estava em tudo. Nietzche era a exceção, pois se aproximava mais de seu próprio pensamento.

Helena costumava pegar alguns livros emprestados, para suas próprias leituras e reflexões. Algumas vezes conversavam sobre os pensamentos expostos nas obras, sobre a descrença de Thor com a humanidade e até sobre religião, o que se tornava árduo para Helena, que cria no Deus bíblico, onipontene e onipresente que a tudo criou. Para Thor, era penoso falar com qualquer pessoa, menos com Helena. Com ela debatia sobre tudo, e em sua presença, sentia em si a chama viva que o consumia durante a noite. Lis era luz e trevas em Thor. Um combate vigoroso se instalava em seu ser. Não queria amar. Amava. Não queria se aproximar do mundo. Com Helena, mergulhava nele. Não queria crer nos pesudoamores, em juras intermináveis que via à revelia em toda parte a que ia. E Helena se tornara nele um amor devasso. A luta contra o desejo consumia Thor. Mas o consumiria mais o desejo que o dominara.

Thor se encontrava sentado. Após passar o olhar pela estante e contemplar a pequena biblioteca. Ela reparou um dos livros na cabeceira da cama: “Assim falafa Zaratustra”, de Friendsh Nietzsche. Thor sempre o lia.

Thor estava sentado. A febre lhe ardia o corpo. Transpirava com os braços encolhidos sobre as pernas. O olhar estava fincado no chão, estático. Lis percebeu. Colocou-se a mão.

- Que foi, Thor? Está muito quente!

Thor manteve o silêncio. Nada que quisesse falar. Tampouco do que sentia. Helena apressou-se em ofertar um antitérmico, que foi imediatamente recusado por Thor.

- Não se incomode em tirar essa pequena dor mundana. Ela passa facilmente. Tu não sabes o que é verdadeiramente uma dor.

Helena detestava quando ele falava assim. Sempre arrogante. Cheio de ares. Mesmo quando precisava de ajuda. Mas segurou-se no momento e se restringiu a descer novamente, avisar ao pai que sairia mais cedo aquela noite.

Voltou ao quarto de Thor e se sentou a seu lado. Thor tentou balbuciar alguma praga e mandar Helena sair, mas não teve forças. Estava sentada ao seu lado a guerreira secreta que lhe vinha povoar sua mente durante os sonhos. A mulher que fazia seu peito se encher de desejo e paixão. A dor se assentava, mas era bem vinda. O amor em que Thor não acreditava. O amor dos homens. O amor apregoado. As juras. A hipocrisia. Estavam ali fortemente a seu lado.  Thor era consumido nesta luta. Amava sem forças para se manter na escuridão.  Helena lhe era a luz esmagadora que não conseguia evitar.

O silêncio era estarrecedor. Isso incomodava Helena, mas não a Thor. Ele degustava a presença dela em segredo.

- Thor, por que nega ajuda de alguém? Por que vive tão fechado em si mesmo? Lá em baixo tantas pessoas a se divertirem, sorrindo, contando casos. A vida está rolando lá fora, Thor.

Não houve resposta. Thor lutava contra os próprios sentimentos e toda vez que Helena falava acendia-se-lhe intensamente a chama contra a qual lutava.

Helena resolveu partir para outro caminho e falar do sucesso do amigo:

- Thor, hoje estou muito feliz. Meu amigo Fred foi promovido a subgerente. Não imagina como ele está satisfeito com a promoção. Fará um curso de uma semana e logo estará trabalhando no novo cargo.

Helena tinha um sorriso sincero no rosto, quando Thor resolveu fita-la. Queimava-se por dentro.

- Salada do mundo! Vais comer dessa salada! – Tentou responder indiferentemente Thor.

Helena o odiou naquele momento. Pensou em deixá-lo por ter falado de um amigo tão querido. Muitas vezes dissera a si mesma que não mais toleraria a presunção de Thor e o modo frio como que lhe dirigia as palavras. Não percebera ela a fraqueza do homem a seu lado. Em suas palavras havia muito mais do mundo do que ele pudesse conceber. O ciúme acendeu-se em Thor.

- Por que não saio daqui e deixo esse homem nojento? – Pensou em segredo Helena.

Com a presença de Helena, a febre foi se abrandando. Mas havia consumido as forças da carne. Thor se prostrou. Deitou e rapidamente, tombou em sono profundo. Liz então olhou para aquele homem adormecido, ainda meio febril. Tinha a aparência de quem saiu de uma guerra. A barba estava por fazer. O queixo grande se salientava. O rosto ainda tinha um pouco do suor da febre. A imagem era grotesca.

Helena se aproximou... Sentando-se mais próxima ao leito... Passou a mão no rosto de Thor. Sentiu a febre se indo. Nem imaginava ela a quanto tempo alguém não passava a mão no rosto daquele homem.

- Não compreendo, Thor. Há um sentimento que não compreendo. – balbuciou Helena.

Helena agora tinha os olhos fitos no homem junto de si. Sozinhos no quarto. Involuntariamente reparava os detalhes: A face ruborizada, os olhos funebremente encerrados, o longo queijo e a boca pequena que parecia se esconder entre a barba por fazer. De repente, condenou-se de tais pensamentos, saiu rapidamente e se dirigiu a seu quarto.

A noite havia sido demais. Na mesa do bar, Helena sentiu crescer um amor além da amizade entre si e Fred. E no quarto, pela primeira vez, sentiu algo inexplicável, que nunca tivera sentido antes, ao contemplar Thor.

Nesta noite, Helena não conseguiu dormir, em meio aos pensamentos que lhe invadiram a mente.

Continua...
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 24/02/2016
Reeditado em 02/03/2016
Código do texto: T5554053
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