AMOR E CHAMAS I

 
Era setembro de um ano encravado no início do século XXI. Na cidade de Bom Despacho, já haviam se abrandado os comentários e alguns temores espalhados de que o mundo acabaria. Pessoas direcionadas por equivocadas interpretações bíblicas ou influenciadas por pensadores como Nostradamus que profetizou o fim dos tempos para o início do milênio.

Os debates eram tão acalorados como as conversas sobre o campeonato de futebol local, que habitavam as bocas nos botequins da cidade, em meio às cachaças e cervejas, bebidas com languidez felina. O teor dos debates era tão mais duro quanto maior a quantidade de bebida ingerida e, por vezes, acabavam em ríspidas discussões. O desperdício máximo de tempo e de alguma intelectualidade talvez, jogados às moscas em palavras vazias proferidas ao vento e captadas pelo interlocutores desprovidos de bom senso.

Thor, sempre distraído e trancado em si mesmo, passava pela calçada. Na porta do boteco, os freqüentadores assíduos ingeriam álcool e vomitavam desconexões. Inadvertidamente, um deles questionou-lhe, em alta voz, seguida de uma gargalhada pejorativa:

- Thor! O que acha dos comentários sobre o fim do mundo? Também tem medo?

Thor era um homem simples, de estatura mediana. Tinha o cabelo raso, um pouco mais comprido que o habitual da cidade para homens. O boné era seu companheiro inseparável. Não era forte como os jovens, mas possuía um corpo trabalhado, embora não admitisse vaidades. Além disso, possuía várias tatuagens: desenhos de pulsares na parte posterior externa dos antebraços; na inferior, dois átomos quânticos. Em um dos braços havia escrito “Quantum”, no outro “Infinyty”. O apelido Thor veio de outra tatuagem no ombro: o martelo Mjounir, arma do nórdico e poderoso Deus do Trovão. E não eram o bastante, também havia tatuagem de um diamante no outro ombro, de um coração alado nas costas, e de 8 letras japonesas, que Thor nunca dizia o que significavam.
 
As pessoas não compreendiam aquelas tatuagens tão diferentes, mas Thor havia tatuado expressões mínimas de seu pensamento no corpo, através de símbolos, pois se dizia quântico e vivia mergulhado em seu próprio mundo, ao qual fincava morada com vigor. Dizia sempre: “Sou o centro do Universo, quântico em seus ocasos de infinitas possibilidades, em mim criado e por mim projetado”. Tinha uma aparência, diziam, sombria. E das vezes que se pronunciava, o que raro acontecia, proferia, geralmente com a cara fechada, pensamentos desilusórios, nebulosos e ultramundanos sobre a humanidade. Era um desesperançado na própria vida e, sobretudo, na humanidade, que considerava o lixo do Cosmo.
 
Thor quis sorrir da zomba que tomou, mas isso lhe era uma atitude de difícil execução. Pensou em não responder, mas preferiu comer da salada servida pelo homem, sem parar sua caminhada:
 
- Infelizmente, Nostradamus não enxergava mais que um palmo à frente do nariz, meu caro!

O homem agora foi acompanhado dos amigos que o cercavam em suas risadas. Thor prosseguiu ignorando o que houvera acontecido. Sempre parecia ignorar a tudo que fosse mundano, razão da zomba que tomou.

Bom Despacho não é diferente de tantas outras cidades interioranas, que se situa no centro-oeste das Minas Gerais. Possui uma população aproximada de 40 mil habitantes, com base econômica na agropecuáRia, pouco conhecida no estado, muito menos no país. Não obstante possui algo diferenciado – pelo menos aos olhos de Thor: Uma imensa praça, em cujo dentro fica a Igreja de Nossa Senhora do Bom Despacho, de arquitetura barroca. Esplendidamente bela. Em todo o redor, por uma adjacência considerável, situam-se árvores e flores de cores variadas, que parecem fazer silenciar até os roncos dos motores dos carros que trafegam ao redor. Ali, no interior daquela igreja, Thor passava horas com os olhos fitos em algo, que não era tangível, embora muitos pensassem que ele orasse.

Nas ruas, ouvia-se, às vezes, comentários discretos sobre o homem que pouco falava e não sorria. Que dava descrédito a tudo e que parecia viver num mundo à parte, tresloucado, que vivia com a postura pretensiosa, como se dono fosse realmente do mundo e capaz de ignorar e demonstrar desprezo pelo que era habitual aos demais: os discursos pífios proferidos nas sinagogas, aos quais muitos iam adorar, sobretudo aos domingos; as belas mulheres que por vezes lhe direcionavam olhares perturbadores, os pseudoitelectuais que se reuniam, exclusivamente, no clube do rotary, e até os pensadores ilustres que lia, como Shopenhauer, Nietzsche, Jung, dentre outros.

Talvez Thor fosse um alienado, presente em corpo neste mundo, mas ausente em seus pensamentos.

Continua...


 
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 24/02/2016
Reeditado em 02/03/2016
Código do texto: T5554044
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