MIOSÓTIS

Em frente aos míopes olhos passava toda sorte de gente, coisas, situações. E da junção de fatos aparentemente sem nexo, surgiam opiniões milimetricamente esculpidas e estudadas. Passos sempre em frente, buscava o sentido mais contrário possível das dezenas de outros passos disputados pela estrada escolhida a dedo, ladeada por imponentes eucaliptos. Um pouco à frente e já vislumbrava um atalho, cortando a estrada num ângulo de 90º. O cheiro de musgo no ar convidava mais que acolhia já que quanto mais se desnudava aos olhos mais ia se fechando em mistério. Matos rasteiros e toda sorte de vegetação já avançava pela estradinha, entregando seu abandono. Diziam se tratar de área pouco freqüentada e os poucos que se aventuravam em seguir em frente geralmente só o faziam empurrados por algum propósito maior. E ele tinha! Desde os últimos 15 anos que vivia para esse propósito e ia de encontro a ele todos os dias, esperando que sua busca, enfim, chegue ao fim e lhe permita remediar todo o mal que causou. Apenas lhe pediu: “Confia!” e ela lhe entregou a vida!

Ardorosos olhos... Protegidos por 5.25° da mais absoluta e solitária abstração. Grossas lentes emprestando um tom intelectual mesclado de obsoleto àquele rosto já tão refém dos anos e, a muito custo, ainda inquietos, curiosos, vivos. Vivos! Embora grandes explosões de vida lhes tornassem turvos, como se sofrera grande constrangimento, ou como se soubesse que para se alcançar tal estado de êxtase um terceiro ou mais se viu vertendo água pelos olhos, como se benzesse com a alma seus próximos caminhos. É... Benzemos com a salobra água expulsa de nossas almas! E a consagração do instante feliz reside aí. Alheio muitas vezes a grandeza das bênçãos recebidas.

Sentou-se. Como sempre após minutos de silencioso cálculo de pé em frente ao local escolhido. Pensou no quanto a natureza era resistente aos efeitos do tempo! Tanto tempo e o velho banco improvisado, à partir de grossos troncos alinhados e sobrepostos, ainda lá estava! Firme, embora bastante maltratado pela vegetação que lhe abraçava, conferindo-lhe um ar meio sepulcral. “Apropriado”, pensou. Não abria mão de se posicionar exatamente no centro, deixando vagos os espaços a sua direita e esquerda. Vangloriava-se de manter certos velhos hábitos...Afinal assim fora até ali e não seria diferente enquanto vivesse. Ainda escorregou os olhos pelos arredores certificando-se da sempre buscada solidão. Reclinou-se, então, apoiando as mãos por sobre o encosto do banco, como se estivesse protagonizando um grande e universal abraço. Novamente alongou o olhar só que buscando agora deliciar olfato e audição, como se faminto estivesse do farfalhar de folhas secas e pequenos objetos carregados pelo vento. Observou o rodopio de duas amassadas embalagens de doce. Viu como elas, separadas, alçaram um rápido voo rumo ao céu, uniram-se por instantes, ensaiando passos de dança, voluptuosas, girando, girando, mais e mais rápido, até que uma delas se viu abruptamente arrancada da companheira e arremessada foi ao chão. Lá ficou, rastejando na carona de alguma brisa mais piedosa. A outra se perdeu no furor do vento, devendo agora já ter se unido à alguma outra e repetido a dança com a mesma paixão . E assim, pensou, também é em nossas vidas. Com a diferença que se não somos a parte que seguiu dançando e rodopiando pela vida, somos a parte descartada ou arremessada só que sem direito à caronas... Mas com direito à escolher qual das duas partes queremos ser no próximo passeio. “Será que ela já repetira sua vigorosa dança? Será que lhe perdoara?”

Respirou com a calma de quem não tem mais pressa, sentindo o ar lhe inflar o peito, fechou os olhos como se pudesse assim prolongar a sensação de plenitude daquele instante. Parecia ter entrado num transe, tal a expressão do rosto. Quem o avistasse de longe teria a impressão de está vendo uma daquelas estátuas vivas, numa pose de pura magia, com pinceladas de subúrbio. Manteve-se assim por muito tempo. Até parecia dormir. Não fosse as pequenas e ainda longe passadas que escutou ainda desfrutaria muito mais dessa entrega. Abriu os olhos, apertando-os um pouco de modo a identificar quem lá vinha. Mesmo com os 5.25° dos óculos não perdera a mania de apertar os olhos, como se assim aumentasse seu raio de visão. Só conseguiu saber que se tratava de uma criança, mas ainda não dava para identificar muito. Como era possível? A estradinha freqüentada ficara lá atrás! Nesse atalho poucos se aventuravam! E vinha, ao longo desses anos, plantando histórias inventadas nos ouvidos certos, para aumentar o receio de todos quanto quisessem passear por aquelas paragens. Transformou cada uma daquelas árvores em funestos locais de agonia e morte, na medida certa para alimentar o medo de todos. Até contribuiu em divulgar a triste história do rapaz que se embrenhou por um dos atalhos à procura da amada e nunca mais foi visto, sendo dado por desaparecido após inúmeras e infrutíferas buscas.

Pensou em se levantar rapidamente e continuar sua caminhada rumo à qualquer outro lugar onde não corresse riscos desnecessários. Afinal, se quisesse companhia -pensou- não teria buscado um lugar tão ermo para passar seu dia. Fixou fortemente o olhar sabendo estar à poucos minutos de ter companhia. Esse pensamento lhe causou um certo aborrecimento, reforçado pelo balançar da cabeça que aí mais se assemelhava à um pêndulo enguiçado entre às 10:00 e 15:00 h. Da boca nenhuma palavra. Resolveu-se nesse instante por se afastar dali e quase saltou do banco, pensando no próximo lugar em que estaria. Calculou com a agilidade que lhe era o peculiar por quanto tempo andaria até encontrar seu novo esconderijo. Pôs-se a andar com largas e vigorosas passadas, não devendo nada aos atletas do dia à dia. Cerca de 50 metros à frente, apurou os ouvidos mas já não ouviu nenhum ruído. Parou ali! Retesou-se como se afrontado em seus mais valorosos direitos de cidadão do mundo e resolveu espiar o espaço às suas costas. Espalmou cada centímetro de terra, mas não avistou o indesejado visitante. Aguardou um pouco mais e nada! No canto da boca pareceu nascer um leve, muito leve, sorriso. E foi nesse momento que desfez os poucos metros andados e se lançou novamente naquele banco, já tão seu, já tão íntimo.

Com mãos tomadas de inesperada brandura seguiu as ranhuras deixadas no banco, detendo-se num sulco mais acentuado. Ali deixou que a mão repousasse por longo tempo, enquanto a outra era levada ao rosto agora lívido. Não queria acreditar que depois de tantos anos ainda ali estivesse! Podia quase sentir o gemido da madeira quando foi minuciosamente cortada, mutilada, no formato das malditas letras! Meu Deus, porque tinha que sempre parar ali se a cena nunca era diferente! O mesmo pulsar enlouquecido nas têmporas, a súbita secura na boca, o porejar do suor frio escorrendo como se seu corpo agora fosse algum tipo de nascente. E o tremor das mãos entregando todo o resto!

Respirou mais lentamente, buscando reencontrar o elo com a paz subitamente perdida. Olhos ainda fechados, só que agora umedecidos pela mescla de emoções, tentou sentir a mão que se mantinha ainda por sobre os sulcos encontrados, numa rigidez quase cadavérica, escorregando-a daquele apelo forte demais para ser ignorado. Ano após ano e a sensação não se alterava um só milímetro. Era algo que beirava o sobrenatural, afinal vinha se dedicando com afinco sempre redobrado às mais avançadas técnicas de controle emocional. E via todo o esforço ir por terra bastava que ali estivesse.

À esse pensamento sorriu. Sobrenatural? A quem tentava enganar! Realmente tudo o que se não podia afirmar à seu respeito é que era desse mundo, exceto pelas escolhas. Ah, as escolhas...Toda uma humanidade assumida e talhada pelas escolhas!

Lembrou-se de quando a viu pela primeira vez. E de como costumava ser até ali. Morreu e nasceu nesse breve instante, violando cada uma das suas regras de vida. Alguns são surpreendidos pela doçura ou fragilidade, mas nela tudo harmonizava com a dureza das rochas, fria e cortante, desde o olhar até os pensamentos mais secretos. Pensou no quanto ficou fascinado, antevendo as possibilidades dessa junção, afinal, até aqui, havia quase que se limitado à observar milhares de seres, desde os microscópicos até as interessantes criaturas tecelãs dos sonhos humanos, sem, contudo, estabelecer contato direto. Como seria gratificante vergar esse ser à sua vontade, estudando-lhe os mínimos gestos, absorvendo-lhe a energia vital... A verdade é que quis tomá-la para si desde o primeiro momento! Quis esse contato! Quis abdicar de tudo para estar com ela! Sempre foi ela e só compreendeu isso quando a tomou nos braços.

“Confia!” “Confia!” “Confia!” Parecia que o vento assobiava baixinho! Olhos fechados, sentia a solidão lhe escorrer dos olhos, num misto de saudade e aflição. Até quando iria esperar? “Por toda a eternidade!”, pensou. Manteve-se assim até que seu corpo acusou o frio que já sentia. Ao abrir os olhos, deu-se conta que já era noite. Uma noite lindamente perolada por uma lua cheia. “Por que não?”, novamente pensou e alongou as pernas por sobre o banco, aconchegando a cabeça da melhor forma possível, de modo a lhe garantir um mínimo de conforto.

Poucos minutos se escoaram e a viu a poucos metros dali. Sonhava? Não! Era real demais para ser sonho! Levantou-se de supetão, mantendo os olhos fixos nela. O raio de lua que lhes banhava, emprestava um ar de mistério à cena, agravado pelo fato de que nenhum dos dois esboçava reação alguma, apenas olhos nos olhos, fixos, atônitos, cansados. Ele quis ir até lá, mas seu corpo não lhe obedecia. Mãos lançadas à frente do corpo como a pedir perdão. “Perdoa!” Mas apenas conseguiu que ela lhe desse as costas e, lentamente, aumentasse a distância entre seus corpos. “Não! Volta!” suplicou, entre lágrimas, sem sucesso. Apenas a ouviu lhe responder: “Confia tu também! Em ti depositei minha vida e o que me destes em troca até aqui ainda não é suficiente para que nossos corpos se unam novamente. Eis que o dia se aproxima! Quando despertares verás nosso pacto traduzido na nossa flor favorita. Leva-a contigo sempre e lá estarei.” Disse isso e desapareceu.

Os melódicos sons da alvorada o despertaram lentamente. Demorou-se deitado, saboreando os detalhes do encontro. “Ela viera, enfim!” Não sabia se ria ou chorava, apenas sentia que os últimos 15 anos faziam agora mais sentido que cada longo dia passado. Lembrou do que ela lhe dissera sobre o pacto feito e imediatamente correu os olhos pelo chão, localizando um belo miosótis depositado bem próximo de onde sua cabeça estivera toda a noite. Porque seu corpo ali permaneceu todo o tempo, nos últimos 15 anos, bem protegido abaixo do rústico banco. Apenas um corpo que pegara emprestado dos sonhos dela, para que pudessem unir carnes e espíritos. Quando ela se fora, seu invólucro material definhou até a morte física, escolhendo esse banco como morada final. Foi ali que se amaram e era ali que deveriam se reencontrar. Pegou o miosótis com cuidado e o pôs próximo ao peito, imediatamente levando uma das mãos à ranhura no banco. Lentamente novamente percorreu as letras na madeira e baixinho repetiu:

“Não-me-esqueças!”

De um salto, levantou o cansado espírito e o levou dali, desfazendo o caminho até chegar à estradinha. Mais tarde, voltaria.

De novo, viu passar correndo uma criança, mas dessa vez, percebeu se tratar de rosto conhecido. Era ele! Era seu rosto! Criança já tão magnetizada por essas paragens! Brincando inocentemente. Parou, então, e observou o trajeto do pequeno. Lá no comecinho da estrada, percebeu que outras crianças brincavam, acompanhadas de suas mães. E viu uma delas correr com algo na mão em direção ao garoto, sorrindo, dizendo, aos gritos: “Toma! É nosso miosótis! Tu o havias deixado cair.” E saíram de mãos dadas.

Fim (da primeira parte)