Amanheceu lá fora...

Amanheceu lá fora. Mais um dia chega. Seria igual a todos os outros. Mas havia um quê no ar de que aquele dia seria diferente. Mais diferente do que o dia de ontem.

Após um longo momento refletindo sobre algo que Vitória não sabia ao certo expressar, ela resolveu chutar as cobertas e sair do conforto de sua cama, após uma noite atribulada.

Ao passar em frente ao espelho, demora exaustivamente examinando-se, imergida em um confusão de sentimentos. Será que foi tola o bastante para se enganar por tanto tempo, quando a verdade sempre esteve tão perto de si? Sim, ela havia sido. Projetou tudo onde não havia nada.

Essa frustração revirava o seu estômago, após toda o consumo de bebida da noite passada. Estava de ressaca, algo inédito em sua realidade. Foi ao banheiro, tomar um banho para aliviar o mal estar, enquanto sua cabeça divagava nas lembranças de ontem.

O dia começou com ela dormindo um pouco mais do que deveria, pois havia estudado até tarde, madrugada adentro. Levantou-se, parou no mesmo espelho, observando-se, procurando toda confiança e segurança para enfrentar esse dia tão esperançoso. Lembrando-se de repente da aula, ela se assusta e se dá conta de que está atrasada. Toma um banho rápido, pega uma fruta e sai em disparada rumo a universidade.

A manhã ensolarada passou vagarosamente, enquanto Vitória tentava em vão prestar atenção na aula. Estava ansiosa demais. A aula acaba e ela sai em disparada rumo ao estacionamento encontrar Gisele. As duas pretendem almoçar e depois ir às comprar e ao cabeleireiro. Usualmente elas não precisam de motivos para ir às compras, pois Gigi, uma loura de olhos verdes, era compulsiva e mimada. Contudo, a noite hoje era especial.

Hoje teria uma grande festa na mansão dos Matarazzo. Lívia, amiga de ambas, convidou-as para uma das luxuosas festas de sua família em comemoração ao aniversário do seu avô. Vitória nunca foi de fazer compras, arrumar o cabelo ou fica horas e horas a procura do sapato perfeito. Não que ela fosse desleixada. Vitória era uma garota bonita, de uma beleza singela. Cabelos ruivos, levemente ondulados, comprimento médio, uma franja cobrindo os belos olhos azul-esverdeados, algumas sardas. Mas aquele dia era diferente. Ela sentia a necessidade de ficar bonita, se sentir segura. Na festa encontraria aquele que mexia com cada centímetro do seu corpo. Finalmente iria se declarar.

Após uma tarde agitada, Gisele deixa Vitória em casa. Elas se despedem e combinam se encontrar na festa. Vivi entra em seu apartamento. Ele é pequeno, mas muito aconchegante. É bem localizado. Foi o que deu para comprar com o dinheiro que herdou dos pais, após a morte de ambos num acidente de carro. Ela tinha 10 anos. Com a perda dos pais, ela foi morar com a tia, o marido dela e seu primo. Eles a trataram como filha. Cuidaram muito bem dela. Porém, quando Vitória passou no vestibular para Economia, seu tio foi transferido de cidade e eles tiveram que se mudar. Foi aí que ela decidiu morar sozinha.

Sacudindo essa lembranças, Vitória vai se arrumar. Ela está pronta. Colocou um vestido midi branco rendado. Fez um coque e ajeitou a franja. Fez uma leve maquiagem nos olhos com o delineador preto e ousou no batom vermelho, combinando com os sapatos de salto alto. Decidir usar a única jóia que tinha: os brincos de rubi que fora de sua mãe. Após se observar longamente no espelho, ela hesita. Pensa em fugir, em desistir da ida a festa. Ao olhar o relógio, percebe que chegará atrasada. Ela está confiante. Sabe que essa noite irá mudar a sua vida.

Sentada na janela, com uma xícara de chá, Vitória recorda cada detalhe. Ah, como ela estava animada dentro táxi, em êxtase. Ela finalmente declararia o seu amor para Paulo. Mas as coisas não saíram como ela imaginava. A imagem a fez desvia o olhar do horizonte e perdê-lo no chão...

Chegando a residência dos Matarazzo, Vitória desce do táxi pronta para o momento que viria. Na recepção, perguntam seu nome. “Maria Vitória Drummond”, ela responde. Constando seu nome na lista, deixam ela entrar. O salão estava cheio. A maioria das pessoas são estranhas para ela. Mas logo Lívia vem ao seu encontro acompanhada de Camila, sua outra amiga que compõe o quarteto.

- Vivi, como demorou, achei que não viria mais. Ela lhe dá uma bronca.

- Desculpe. Acabei me atrasando, Liv.

- Preciso muito conversar com você. Tenho que lhe contar algo. Mas não pode ser aqui, tem que ser num lugar... Gisele a interrompe trazendo uma garrafa de champanhe e taças.

- Vamos comemorar, meninas. E nos divertir! Principalmente porque a Mila conseguiu uma vaga na orquestra.

Todas ficam muitos felizes, comemorando, pois as quatro são amigas desde da escola e nunca se separaram, contudo Lívia está apreensiva, Vitória conhece a amiga como ninguém, sempre foram muito próximas.

Entretanto, logo a atenção de Vitória é roubada, ao ver Paulo, aquele que a faz sentir um turbilhão de sensações. Se conheceram por acaso, Vitória esbarrou nele, derramando suco em sua camisa. Ele a desculpou e a partir desse dia se tornaram amigos. Porém, ela sentia bem mais que amizade, tinha certeza disso. As meninas se afastaram. Lívia pediu que Camila tocasse e foi falar com os outros convidados. Gisele foi atrás de mais bebida. Vitória ficou absorta com seus pensamentos até que Paulo veio falar com ela.

- Oi, Vivi.

- Ahmm ... Oi, Paulo.

- Você está lindíssima!

- Obrigada. Ela sorri.

- Gostaria de conversar com você. Vamos até o balcão, é mais tranquilo.

Ele a conduz até o balcão. O encontro de seus olhares provoca nela um arrepio. Ambos se debruçam ali, embalados pelo silêncio. Na casa, o ambiente está iluminado, os sons vindo do piano e as conversações dos convidados abafam o som da palavras que viriam. O silêncio de ambos é quebrado por Paulo.

- Vivi, eu sei que você é a melhor amiga da Liv. Sei que ela confia muito em você e que você a conhece como ninguém. Por isso, gostaria que você fosse a primeira a saber que nós estamos namorando e que pretendo pedi-la em casamento hoje. Sei que é um pouco cedo, mas recebi uma proposta de emprego e gostaria que Lívia viesse comigo. Acha que ela aceitaria mudar de cidade? Claro, isso após a formatura, daqui a seis meses.

Aquilo a pegou desprevenida. A cada palavra pronunciada, Vitória sentia que ia perdendo o chão. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Aquilo não estava acontecendo. O momento mais aguardado da sua vida não podia se espatifar assim. Ela ficou muda. Ele, inquieto e sem entender nada. Lívia, do outro lado, desconfia do que estava acontecendo e está péssima. Ela se aproxima com passos rápidos. Ao chegar perto, Vitória a encara. Ela ver nos olhos da amiga a confirmação dos seus temores.

- Vivi, eu... Ela não consegue falar. Só pronuncia uma palavra: “Desculpa”.

No entanto, Vitória já saiu com olhos lacrimejosos. Ela se sente ainda pior. Paulo não consegue compreender a situação. Lívia a tenta acompanhar e a segura pelo braço.

- Vivi, me escuta, eu posso explicar. Foi de repente. Naquela viagem que eu fiz, Paulo e eu nos encontramos e ficamos juntos. Rolou um clima. E quando me dei conta, já estava completamente envolvida. Eu tentei te contar, mas perdi a coragem, pois sabia que ia te magoar. Me perdoa.

Vitória continua muda. Apenas as lágrimas atravessam seu rosto.

- Fala alguma coisa, por favor. Lívia pede.

- Você sabia que eu gostava dele. Gostava muito. Você me enganou. Como pôde? Você sempre foi a minha melhor amiga.

- Eu sinto tanto. Eu sabia que ia te magoa, por isso escondi o meu namoro. Vivi...

- Não me chama de Vivi. Eu não quero mais ouvir você. Me solta.

Ela se desvencilha dela e sai correndo. Os convidados as observa, cochichando baixinho. Gisele e Camila se aproximam, não entendendo nada. Paulo se aproxima da namorada e a abraça.

Vitória desce as escadas e tenta pegar um táxi. Aproxima-se um carro, dele saindo o motorista. Era Miguel. Seu melhor amigo. Quando o ver, ela corre em sua direção e o abraça. Ele se assusta com o ato. Mas logo reconhece a figura que o enlaça. Ele sem entender nada, retribui o abraço. Quando ver o rosto da amiga, ele fica assustado.

- O que houve, Vivi?

- Miguel, me tira daqui, por favor. Ela diz em lágrimas.

Eles entram no carro, em silêncio. Ele olha sorrateiramente a amiga que chora baixinho, com o olhar perdido. Aquilo lhe parte o coração, a dor nos olhos dela. Eles vão a um barzinho. Sentam numa mesa mais afastada. Pedem cervejas. Ela está mais calma, no entanto, ainda assim continua calada. Eles bebem as cervejas. Ela finalmente lhe conta tudo que ocorreu. Ela pede mais cerveja enquanto desabafa. Miguel percebe que ela está bebendo muito, mas não diz nada. Vitória quer afogar as mágoas na bebida. Após muitas garrafas, Miguel para a conta e a leva para dar uma volta. Ela bebeu muito.

Compram cappuccino e vão se sentar no banco do parque em que gostam de caminhar. Bebem o café trocando olhares. Vitória tira os sapatos e solta os cabelos, levantando-se e estendendo a mão, convidando Miguel para andarem. Começam a caminhar lado a lado, na noite fria, embalados pelo silêncio. Quem observasse essa cena veria um casal caminhando silenciosamente, em harmonia. A menina, com os olhos um pouco inchados, tem o olhar perdido. O rapaz mira o horizonte e de vez em quando observa curiosamente a menina que está ao seu lado.

O céu está estrelado e a lua está linda. Eles entrelaçam as mãos e trocam um sorriso. A paz invade o coração de Vitória. A dor ainda insiste em lhe roubar o sorriso.

- Eu fui tão boba, Miguel.

- Você não foi boba. Estava apaixonada e achou que era correspondida.

- Eu me iludir com uma paixão. Achei que era amor. Eu queria acreditar que era amor. Estava tão desesperada por amar e me sentir amada, que não pensei que era tudo uma ilusão, uma fantasia da minha cabeça. Bastou alguns olhares e um pouco de atenção. E pronto. Acho que é eu me sinto muito sozinha. Mas depois de tanto tempo convivendo com a solidão, eu deveria saber que ficar sozinha não é tão ruim.

- Você não está só. Eu estou aqui, com você. Sempre estive. Ele a puxa para um abraço.

- Eu sei. Me sinto tão segura no seus braços. Que sorte tem a sua namorada.

- Acabou, Vivi. Nós terminamos. Ela se afasta, com ar preocupado.

- Oh, Miguel, eu sinto muito... E eu aqui me lamentando das minhas ilusões. O que houve?

- Está tudo bem. Eu apenas me dei conta de algo que vinha tentando fugir a muito tempo: que amo outra mulher. Não é uma ilusão. Eu só penso nela todo dia, toda hora. Perto dela eu sou boba e me perco em seus olhos. Eu tremo de expectativa antes de encontrá-la. Não podia continuar com Laura, gostando de outra. Ela não merecia. Laura é uma pessoa maravilhosa. Ele merecia que eu fosse sincero. E eu fui. Agora preciso ser sincero comigo e com a mulher que amo.

Ficam os dois calados por alguns instantes. Olhando-se fixamente, exalando uma intensidade entre eles.

- Eu não sei o que me deu, Miguel. Eu sempre fui tão centrada, tão racional. Mas hoje estava disposta a abrir me coração, porque eu realmente achei que era amor. Quase protagonizo a cena mais ridícula da minha vida.

- O problema de nós dois, Vitória, é que nós mergulhamos em amores rasos demais. E agora só precisamos de um tempo para juntar os pedaços e seguir em frente.

Era impressionante como Miguel a entendia tão bem... Às vezes, melhor que ela própria. Talvez por isso ela sentiu ciúmes quando ele começou o namoro com Laura. Tinha medo de perdê-lo, de não ouvir mais o som da sua voz, os seus braços a embalando num abraço, seu ombro nos momentos difíceis, sua risada nas alegrias e conquistas. Será que aquilo que sentia por ele era o amor que tanto desejava sentir?

- Você vai ficar bem.... Afinal, há vitória em seu ser. Não havia nome melhor para ti. Você tem uma garra para superar momentos difíceis. Esse será apenas mais um. Fugir não corresponde com você, Vivi.

Se olharam profundamente. Miguel acariciou a bochecha de Vitória, que abriu um sorriso e se perdeu no olhar dele. Não resistindo ao momento, ele beijou-a delicadamente. Eles se entregaram ao momento e se beijaram com paixão.

Ao terminar o beijo, sorriram, porém, não disseram nada. De mãos dadas andaram juntos, apreciando a calma, o vento agitando os cabelos, o vestido, varrendo para longe as tristezas. Cada um absorto no significado daquele beijo.

Eles retornaram ao carro, com uma calmaria entre eles. Miguel foi deixá-la em casa. Subiu até o seu andar e deixou-a na porta. Deu-lhe um beijo no rosto e sussurrou no seu ouvido “boa noite”.

Afastou-se com passos lentos, enquanto Vitória tentava abrir a porta. Miguel pediu o elevador, olhou para trás e viu-a lutando com as chaves. Ela o olha. Sem pensar muito, ele volta até Vitória, tomando seu rosto nas mãos e a beija. Eles se encostam na porta do apartamento, beijando-se com desespero. Param para recuperar a respiração, sorrindo.

- Eu te amo, Vitória. Como nunca amei ninguém. Você é quem me rouba a paz. Eu só penso em você. Só desejo você.

Se beijam novamente, dessa vez o intensificando.

- Vivi, é melhor pararmos. Estamos com os sentidos entorpecidos pelo álcool. Não vamos fazer nada que venhamos a nos arrepender.

Se afastam, sedentos de desejo e com os pensamentos embaralhados. Miguel se despede, beijando o rosto de Vitória. Ela está em êxtase. Abre a porta do apartamento, mas antes de entrar, ela vai até Miguel. Chama seu nome. Ele se vira e ela o abraça e diz.

- Eu amo você, Miguel. Sempre te amei. Você é o meu amor e meu melhor amigo.

- Ah, Vitória. Eu amo você. Muito. Se afastam.

- Tchau.

- Tchau.

Miguel entra no elevador. Vitória entra na escuridão do apartamento e a tristeza a invade novamente. Contudo, com mais suavidade. Sua mente vaga em direção a festa, o som inesgotável do piano, o ar morno embalando o balcão, o doce perfume da primavera no parque, as mãos entrelaçadas, o sorriso de Miguel. Sorriu ao lembrar de tudo que passou com ele. Lembrou-se da briga com Lívia. Pegou o celular e mandou uma mensagem para ela, pedindo-lhe desculpa pela maneira como saiu da festa e dizendo que estava tudo bem, que ela compreendia, que ficaria bem, que desejava que ela fosse feliz.

Com essas inquietações, Vivi deita-se na sua cama e fica serena, pensante. Reflete sobre a noite, sobre seus sentimentos tão confusos. Pensa em Miguel. Sempre tão amigo, tão presente. Como nunca percebeu que o sentimento que os unia era tão forte e verdadeiro? Apesar da tristeza e decepção, sentia um onda de esperança. Tinha esperança de que poderia ser feliz. O amanhã seria melhor.

Em frente ao espelho, lembrando-se dos fatos ocorridos, com um brilho no olhar e uma decisão, Vitória manda uma mensagem para Miguel. Sai de casa com o impulso de ser feliz, pois a vida a aguardava lá fora.

Belinda Oliver
Enviado por Belinda Oliver em 30/08/2015
Reeditado em 19/07/2017
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