Histórias de Amor - Parte 01 - A cura

Uma família aparentemente normal. Cada qual com suas peculiaridades e isolados em si mesmos.

A mãe, Luiza, embora amante de esoterismo e temas humanistas, mantinha-se um pouco alheia aos acontecimentos de seu próprio lar. Ainda que seu amor por todos fosse legítimo, suas teorias espiritualistas, não facilitavam que mergulhasse na intimidade, normalmente pairando sobre as aparências.

O pai, Alberto, era disperso. Indubitavelmente, amava sua esposa, mas nunca foi capaz de demonstrar seus sentimentos. Frustrado profissionalmente por não ter seguido carreira militar, implementava de forma quase compensatória, uma tirania doméstica, especialmente tendo os filhos, como subordinados. Sempre se excedia em cobranças e exigências que justificava, alegando estar construindo: disciplina e respeito. Nunca observou os talentos individuais dos mesmos, sempre os conduzindo aos caminhos que considerava "certos".

Tinham dois filhos: uma menina, mais velha de 12 anos, chamada Ana e um jovem rapaz, com seus meros 8 anos, Daniel.

Ana desde cedo, manifestava vocação artística. Talentosa na arte de dançar e atuar, era extremamente sensível em sua forma de expressão e ver a realidade. No entanto, sofria por reprimir tudo isso, em função da vigilância e rigor paternal.

Daniel era muito jovem ainda para perceber ou entender o que sentia. Mas mesmo involuntariamente, construía seus passos a exemplo do próprio pai, que se vendo refletido, conferia uma velada proteção e preferência, inclusive sendo permissivo com seus erros. Adorava atividades físicas, histórias de guerra e especialmente guerrear com a irmã. Transformando diferenças em implicâncias.

Embora todos vivessem juntos, visivelmente eram desunidos e cada um do seu jeito, tentava disfarçar este desencontro até que uma notícia abalaria e promoveria uma grande mudança: Luiza foi diagnosticada com câncer.

Todos ficaram desolados, mas não sabiam como reagir. Não havia intimidade ou cumplicidade para se apoiarem. Todos pareciam petrificados.

Alberto por trás de toda aparente dureza e resistência, se estilhaçou em mil pedaços por dentro. Mesmo não racionalizando suas emoções, sentia na esposa, um equilíbrio para aquela deficiente estrutura em que viviam. Já os irmãos, se ocuparam e nada disseram sobre o assunto.

Luiza, ainda se recuperando do choque e se adaptando a dor recém descoberta, repentinamente, despertou para a situação que havia ao seu redor. Seu corpo parecia reflexo da sua família. Uma ânsia se apoderou de seus pensamentos e uma forte vontade nasceu para lutar por mudanças. Como se nada estivesse ocorrendo, matriculou-se em uma faculdade de psicologia, inversamente ao que todos esperavam: prostração. Ela chegou com um olhar vibrante e alegre, que sem qualquer explicação, contagiava e destruía aquelas altas barreiras construídas ao longo do tempo entre eles. Beijou todos os filhos, exemplificando um carinho que nunca foi capaz de mostrar.

Alberto, quase hipnotizado por aquela nova mulher, deixou de lado seu espirito dominador e rendeu-se a devoção a ela. Daquele dia em diante, passaria a buscá-la todos os dias e ouvir dela as ínfimas conquistas rotineiras, sendo transformado por elas através de uma sensação de realização e empatia até então desconhecida. Sua sensibilidade agora aflorada, enfim, conseguiu enxergar os seus filhos e sua influência sobre os mesmos. Seguindo o exemplo que passou a acompanhar de perto, apesar da dificuldade, conseguiu se reaproximar deles.

No início , houve um estranhamento natural de todos os lados, como se houvesse um acordo velado de se (re) apresentarem e (re) conhecerem. (Re) encontrar uma imagem que há muito, havia sido perdida. As poucas palavras diárias foram se transformando em diálogos e agora percebiam uns aos outros.

E neste processo, Ana, acostumada a uma postura severa, foi surpreendida por um pai que até então não conhecia. Um pai que se interessava pelo que ela gostava, que não mais impunha, mas antes ouvia e argumentava, deixando sempre o poder de decisão final a ela. Como algo que muito esperava, emocionou-se diante dele, que já sem reservas a abraçou como se fosse o primeiro abraço.

Alberto lembrou dos primeiros dias de vida da filha e se deixou envolver por uma ternura inexplicável. Agora era ele que chorava compulsivamente. O filho vendo aquela cena, mesmo sem entender direito o que ocorria, apenas correu e os abraçou. Eram todos UM. A mãe espiava de longe e realmente entendeu naquele instante, o sentido de espiritualidade. Apesar da doença, ergueu os olhos ao alto e agradeceu tamanha benção ou felicidade.

Os próximos meses não foram fáceis. O quadro dela havia se agravado, requerendo muitos procedimentos e intervenções. Mas todos se revezaram para amenizar aquele período. Todos se tratavam juntos, expurgando quaisquer resquícios de dores emocionais que pudessem ter adquirido pelo caminho.

Este momento conquistado, fazia com que nenhum deles esmorecesse, prolongando o que parecia inevitável. Por vezes, Luiza precisou ser carregada no colo pelo marido, devido a sua fraqueza agora evidente, mas fazia questão de estar presente em tudo que considerava importante. Um hábito se tornou decorrente naquele lar: todo dia, a "nova" família, se reunia para narrar os acontecimentos particulares.

Foram 5 anos de luta incessante e insistente desde a fatídica declaração da doença. Luiza conseguiu se formar e durante a cerimônia, na qual recebeu o diploma em uma cadeira de rodas, aplausos efusivos ecoaram de todos os lados por quem nela via, uma força e coragem, quase sobrenaturais.

Faleceu alguns meses depois com um sorriso em seu semblante, mas sua presença ali persistiria...pulsando como coração da casa. Nunca mais houve um dia sequer, que Alberto e os filhos não conversassem e se abraçassem. Nestes momentos, sempre aproveitavam para reavivar a lembrança de Luiza, através de eventos que cada um particularmente tinha passado. Perdurando e preservando viva a imagem da grande mulher cujo amor a todos curou!

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Nota: Em tempos que o amor anda tão desacreditado. Onde tudo parece tão descartável, talvez seja válido relembrar histórias permanentes, sólidas e que resgatem este sentimento. Plagiando o poeta Vinícius de Moraes: "É preciso inventar de novo o amor"

Essa coletânea de textos é baseada em histórias verídicas, que tive o prazer de testemunhar ao longo da vida. Ainda que dê nomes fictícios, cores e nuances novas, a essência foi preservada!

Fernando Paz
Enviado por Fernando Paz em 13/07/2015
Código do texto: T5309005
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