Um Par Perfeito

A ironia já começou com o meu nome; Linda...

Devem ter me perscrutado, tentando encontrar uma beleza qualquer e desapontados, resolveram me registrar assim, na esperança talvez, de que o nome viesse a despertar a insondável beleza...

Não despertou, mas graças aos céus, ao menos não mereci o adjetivo de 'feia'. Sem graça, talvez...

Criada num regime militar onde a mãe, 'general de guerra', cedo afugentou o meu pai, que desertando, nunca mais foi visto. Deve ter preferido a morte, coitado...

Desde criança tive que realizar os trabalhos domésticos de forma perfeita, como 'profissional', repetindo a mesma tarefa inúmeras vezes sob as ordens da general, até que ficassem perfeitas; nenhum grão de pó, brilho uniforme, tudo alocado milimetricamente em seus devidos lugares. Senão...

Até a minha aparência tinha que estar impecável; limpinha, penteada, cuidando de não amarrotar a roupa, e acima de tudo, ter bons modos, jamais dizendo qualquer palavra que pudesse soar como um palavrão. Senão...

Cresci estremecendo àquela voz, tanto por medo como pela enrustida rebeldia.

Porém, na adolecência, já devidamente encorpada para impor-me ao menos fisicamente, provoquei, esculhambando geral pelo menos na aparência dentro de casa. Usando roupas de forma desleixada, enrolada e amarrada na cintura, enrolada nas pernas, tudo retorcido, esgarçando, numa visão que talvez, mãe alguma merecesse ver numa filha...

Mas confesso, para vergonha minha e ponto para a general; jamais tive coragem de atender às visitas que batiam à porta, estando assim mal-vestida.

Externamente eu ainda era certinha, exceto pelos cabelos; pintava-os semanalmente de todos os matizes, até que ficou difícil achar um cabelereiro que tivesse a coragem de me pôr as mãos: vai ficar careca , diziam. Aí eu mesma tingia, apesar do medo de realmente ficar careca... Mesmo com toda essa 'rebeldia', confesso que nunca pintei de verde, azul ou rosa...

Enquanto amadurecia, ficava cada vez mais decidida;

_ Jamais me casarei ou terei filhos! Vai quê, num repente genético eu me torne um clone da general... Deus me livre! Ninguém merece!

Assim, aos trinta e oito anos e após alguns namoricos eu continuava solteira.

Minha única paixão eram os livros, que carregava para todo canto e devorava com sofreguidão sempre que podia.

Um dia, na lanchonete ao lado da biblioteca, presenciei uma cena surreal que me deixou fascinada!

À minha frente, um pouco à direita, um senhor de basta cabeleira grisalha e desgrenhada, óculos enormes com uma armação que deveria ter uns trinta anos, anotava algo numa caderneta. Nessa pequena mesa, à sua esquerda, uma perigosa pilha de uns dez grossos livros, balançava. Quando seu café tamanho grande chegou, meu sexto sentido me alertou: isso tem tudo para dar errado.... E não deu outra!

Por incrível que pareça, o senhor decidiu puxar justo o primeiro livro de baixo da pilha, que, tombando, derrubou tanto a caneca de café quanto o copo de água que estavam sobre a mesa!

Sem pensar, corri e agarrei os livros enxugando-os. Meio envergonhada pela intrepidez, perguntei-lhe:

_ O senhor não se queimou, professor?

Ao dizer isso fiquei mais envergonhada ainda por supor que ele fosse professor.

Quando ele olhou para mim e agradeceu-me, disse que o café só estava morno e me perguntou se eu era aluna dele.

Vi que não era tão velho, talvez na casa dos cinquenta embora a cabeleira e a roupa muito mal ajambrada dessem a impressão de mais.

_ Agora que já tomei café e banho, posso ir, disse-me ao ficar em pé, sacudindo a roupa, aqui e ali molhada. Num relance percebi que suas meias, embora parecidas, estavam desparceiradas!

Ele ajuntou tudo e se foi, me deixando boquiaberta; nem o rosto de seus alunos ele conseguia lembrar!

Como alguém pode ser assim, tão... tão..., faltou-me o adjetivo pois era por demais inusitado para mim.

Tendo sido criada de forma que até um fio de cabelo fora de lugar era motivo para repreensões, eu sempre ficava fascinada ao me deparar com pessoas que não davam a mínima para essas mesquinharias.

Um dia, percebi o tamanho de minha 'prisão':

_ Num grupo de colegas, percebi que uma das moças estava com uma camiseta que tinha dois buraquinhos bem visíveis. Naqueles tempos ainda não era moda usar roupas rasgadas, e ela estava tão à vontade que senti inveja! Eu jamais tive coragem de me apresentar diante das pessoas com roupas assim... Sentir inveja por alguém usar uma roupa furada, era o cúmulo, o fim...

Depois que o professor se foi, pedi mais um café e fiquei pensando no incidente...

_ Ele não usa aliança...

Boba! Com certeza a perdeu no dia do casamento!

Depois desse encontro inicial, passamos a nos cumprimentar e adquiri o hábito de 'cuidar' dele à distância.

Um dia levei um susto! Ao chegar perto de mim por trás, perguntou-me de súbito:

_ Porquê você lê tanto livro de Filosofia?

Primeiro gaguejei, pois nunca imaginei que ele prestasse atenção a qualquer coisa. Depois disse-lhe:

_ Oi, professor! Que susto! Parece que hoje está cheio por aqui, quer se sentar aqui comigo?

Ele se aboletou com seu monte de pertences e logo tratei de dispor tudo de forma a minimizer as possibilidades de acidentes.

_ Você sabe algo sobre a Física Quântica? Perguntou-me perspicaz!

_ Você me surpreende, professor! De fato, aprecio as obras do físico teórico Amit Goswami, mas como ele se distância um pouco da física tradicional, mesclando aspectos espirituais e filosóficos, tento entender tantos conceitos. Respondi.

Depois ele deve ter me ignorado por uns vinte minutos, enquanto fazia algumas anotações.

Eu tentava ler o meu livro com um olho e com o outro vigiar-lhe os gestos. Afinal, agora, até a minha segurança está em risco! Pensei.

_ Prefiro que me chame de Júlio. Disse-me de repente.

Sou cientista, ou melhor, professor de química na faculdade ali, logo atrás da biblioteca.

Sábado darei uma palestra sobre Poluição Urbana e seus efeitos na Saúde e Ecologia. Se quiser assistir, está convidada.

Assisti a palestra e depois disso, passei a acompanhá-lo em outros eventos também, como uma espécie de assistente voluntária... Na verdade, carregadora e guarda-costas...

Percebi que me sentia muito bem com pessoas assim, 'meio' atrapalhadas e que estavam sempre à vontade em qualquer situação.

Gostava de correr atrás dele afim de evitar incidentes, de arrumar em segurança os montes de livros e apostilas, de arrumar, catar, secar o que ia derrubando pelo caminho.

Acima de tudo, fiquei feliz por constatar que eu jamais seria o tipo 'general de guerra', pelo contrário; cuidar das pessoas me dava prazer.

Um dia tive que seguí-lo até a sua casa, literalmente arrastando um espécie de baú cheio de materiais que seriam usados em suas experiências químicas.

Ele me disse que, sendo solteiro, podia morar num local pequeno, mas queria um local onde pudesse instalar um laboratório.

Sua casa, apesar de atulhada de livros, apostilas e aparelhos estranhos, estava razoavelmente limpa.

Resolvi tomar a iniciativa de passar um café e fui logo limpando a mesa e lavando as canecas enquanto a água fervia.

Ele chegou ao meu lado e tomando a caneca para secá-la, disse de súbito;

_ Se você aceitar, gostaria que se casasse comigo.

O susto foi tão grande que as pernas tremeram e tive que me sentar; por essa eu realmente não esperava! Jamais me passou pela cabeça que ele pudesse ter qualquer interesse desse tipo por mim, e embora eu apreciasse estar com ele, estava realmente disposta a acompanhá-lo sendo apenas sua 'assistente'.

_ Olha, Júlio, você é realmente uma peça rara! Cada susto que me prega! Mas te aceito, sim!

Só que vamos precisar de uma casa onde caibam duas pessoas, montanhas de livros e seu laboratório... Respondi.

_ Não acredito que você me aceitou! O que há de errado com você?!

Disse, me abraçando e feliz como eu nunca o tinha visto.

Como somos 'românticos', ironizei mentalmente.

Aí ele me disse:

_ Preciso te contar uma coisa...

Pronto! Lá vem... Pensei.

_ Vamos ter que alugar uma casa no teu nome pois o meu está bem sujo nessa área...

É que houve um acidente e o meu laboratório anterior explodiu, danificando a casa em que eu morava. Ainda estou ressarcindo os danos que causei, pois o estrago foi grande...

Meu salário mensal vai quase todo nisso...

_ Ah, Júlio, porquê será que eu não fico nem um pouco surpresa com suas aventuras, ou melhor, desventuras? Perguntei-lhe rindo.

Não se preocupe pois tenho 'treinamento militar'; posso cuidar de você, do nosso bem-estar, segurança e finanças, com um braço amarrado às costas, disse-lhe confiante.

Ele riu com cara de quem não tinha entendido direito... Mas teremos todo o tempo do mundo para nos apresentarmos um ao outro.

Por um momento pensei:

_ Obrigada, mamãe! Acho que valeu a pena, afinal...

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Allba Ayko
Enviado por Allba Ayko em 01/07/2015
Reeditado em 01/07/2015
Código do texto: T5295733
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