JULIA

Corria o ano de 1915 e Julia, uma portuguesa doce e ingênua, recém-chegada da terrinha, iria fazer quatorze anos. Seus pais imigraram para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Aqui a família da moça reuniu-se a outros patrícios que já estavam trabalhando numa padaria de um primo mais abastado.

No dia do aniversário de Julia, a comunidade portuguesa compareceu em peso para prestigiar o evento. Cada família contribuiu com um prato de doce ou salgado, afinal, ninguém podia se dar ao luxo de esbanjar ali. De mais a mais, aquela era uma ótima oportunidade para estarem juntos e saberem notícias de Portugal.

Dentre os convidados, havia Miguel, que trabalhava num restaurante no centro da cidade. Ele levou o primo Joaquim, que era alfaiate. Quando Joaquim foi apresentado a Julia, ele sentiu-se atraído por seu jeito suave e por seus olhos cor de avelã. Enquanto o rapaz ficou o resto da festa sob o efeito do encanto daquela jovem, Julia mal notou o moço.

Após alguns dias, como Joaquim não conseguia tirar a menina dos seus pensamentos, ele achou melhor se aproximar da família da moça e revelar suas intenções. Ele já estava no Brasil há alguns anos, e tinha emprego fixo e residência. Embora fosse dez anos mais velho do que Julia, não via mal nisso já que naquela época as moças casavam-se cedo. Os pais de Julia - João e Rosa- ficaram sem saber o que fazer, mas ao procurarem informações sobre o rapaz, descobriram que ele era trabalhador e nunca fora pego fazendo algo errado. Como eles tinham quatro filhos, uma boca a menos dentro de casa seria bom. Dessa forma marcaram as bodas para janeiro do ano seguinte. O problema é que os pais da menina se esqueceram de perguntar a ela o que achava dessa história de casamento, porém os tempos eram outros, e o que fosse resolvido pelo patriarca da família era o que valia.

Durante aquele ano, Rosa fez o enxoval, mas Julia mesmo não entendia bem o significado daquela trabalheira toda. Além do mais, era muita novidade para administrar de uma só vez. Primeiro, havia feito uma longa travessia de navio até chegar a uma terra estranha. Ninguém a havia consultado se queria vir ou não. Apenas lhe disseram para pegar suas roupas, alguns brinquedos e pronto.

Pouco tempo depois do aniversário de quatorze anos, algo estranho ocorreu com Julia e ela pensou que iria morrer em breve. Um belo dia ao acordar, a jovem percebeu que seu lençol estava sujo de sangue, mas ela não sabia a razão. Levantou-se, fez uma higiene no banheiro, e permaneceu sentada no vaso sem saber o que fazer. Não compreendia porque sangrara já que não havia se machucado, e estivera apenas dormindo. Dali a pouco Julia sentiu algo úmido entre as pernas e foi com espanto que constatou que voltara a perder sangue. A menina saiu do banheiro aos prantos e foi para o quarto. Rosa, vendo o desespero da filha, logo foi atrás. Julia chorava muito e foi só depois de bastante tempo que contou para a mãe o que estava acontecendo. Foi então que Rosa se viu numa saia justa. Uma mulher como ela, analfabeta e extremamente tímida, não sabia como explicar essas mudanças no corpo de uma jovem. À noite, quando o marido voltou da padaria, eles conversaram sobre o assunto e resolveram chamar um vizinho, rapaz que estava estudando medicina, para explicar tudo à filha.

No dia seguinte, João foi à casa de Wilson pedir-lhe ajuda. O estudante achou aquilo bastante inusitado, porém a família estava tão aflita com o sofrimento de Julia que ele resolveu falar com a moça. Ela havia se trancado no porão da casa e negava-se a comer ou a sair de lá. Ela achava que seu fim estava próximo já que não parava de sangrar. Os pais haviam feito de tudo para tirá-la dali, mas ela recusava-se, num misto de constrangimento, e medo de que sua família pudesse se contagiar com a sua doença. Foi assim que Wilson encontrou o circo armado quando foi ter com Julia. Munido de muita paciência, ele bateu na porta do porão e conversou com ela, ele do lado de fora, e ela lá dentro, por quase meia hora. Depois, quando Julia já estava mais calma, ela abriu a porta e eles conversaram por um bom tempo. Ao final, a moça já entendia as transformações pelas quais estava passando.

Qualquer um poderia pensar que, aos poucos, a mãe de Julia iria se incumbir de preparar a filha para a vida de casada. Não era só uma questão de ensinar a cozinhar, cuidar da casa e da roupa. Era bem mais do que isso, porém Rosa novamente pecou pela omissão. A vergonha era tamanha que ela não se via falando sobre sexo com a menina. E para piorar, dessa vez, nem ela nem seu marido lembraram-se do estudante de medicina para dar alguma explicação para a moça.

Os meses foram passando e Julia continuava com sua vidinha. Aprendera a ser uma boa dona de casa, mas o que gostava mesmo era brincar de bonecas. Fantasiava histórias como ninguém, mas jamais poderia supor o que estava para acontecer com ela.

No dia das bodas, Julia estava linda. Foi um casamento muito simples, porém a moça estava deslumbrante. Todos os portugueses conhecidos e alguns brasileiros juntaram-se para organizar a festa. Tudo correu perfeitamente bem até que, no final da tarde, Joaquim procurou pela noiva e não a encontrou. Ele ansiava por ir para casa para ter sua primeira noite de amor com sua amada. Ele já estava totalmente apaixonado por Julia embora nunca a tivesse beijado. Na verdade, mal havia trocado algumas palavras com sua noiva, e mesmo assim, conversaram na frente de um adulto porque jamais foram deixados sozinhos. Todos passaram a procurar por Julia, porém não sabiam onde encontrá-la até que, de repente, Rosa lembrou-se do porão. Não deu outra, a menina estava lá brincando com sua boneca favorita. E quem disse que Julia queria sair dali para viver com um homem que mal conhecia, e que teria que deixar suas bonecas para trás? Foi um drama! Subitamente João lembrou-se de Wilson e foi à sua procura. Joaquim não gostou nada de saber que outro rapaz iria conversar sobre algo tão íntimo com sua mulher, mas como não queria começar sua vida de casado, brigando com a família de sua esposa, resignou-se. Novamente foi um custo para Wilson conseguir que a moça abrisse a porta para falar com ele. Após ter concluído sua missão, o futuro médico aproveitou e falou com Joaquim. Pediu que fosse paciente e carinhoso, pois os pais de Julia não a haviam preparado para a vida a dois, e ela precisava de tempo para acostumar-se com tudo. Apesar do ciúme, Joaquim entendeu que se quisesse ganhar o coração de Julia, teria que ser cauteloso e sutil ou sua vida poderia virar um inferno.

Quando Joaquim e Julia chegaram a casa, tudo estava na mais perfeita ordem. Eles fizeram um lanche e depois na hora de dormir, Joaquim foi até a varanda para que a moça se trocasse sem pressa. Ao entrar no quarto, a luz estava apagada, mas Joaquim achou melhor deixar as coisas assim. Apesar do desejo enorme que nutria por sua mulher, Joaquim controlou-se e puxou apenas conversa sobre a festa. Julia, imóvel feito uma estátua, parecia que ia para o cadafalso, mas ao notar que seu marido apenas tagarelava, relaxou e falou uma ou duas palavras. Durante os dias que se seguiram Joaquim foi se chegando de mansinho. Ao sair com Julia, dava-lhe o braço. Ao se despedir antes de ir trabalhar, beijava-lhe o rosto e foi assim que, após duas semanas, consumou seu casamento. A princípio não era exatamente o que se poderia chamar de uma relação “caliente”, mas tendo em vista a história de vida de Julia, ele podia entender.

Lá pelo mês de julho, Julia começou a enjoar muito e foi assim que descobriu que estava grávida. Era uma surpresa atrás da outra na vida dessa jovem. Mal havia se casado, ia se tornar mãe.

No ano seguinte, Julia deu a luz a uma linda menina, a quem deram o nome de Maria Rita. O casal ficou muito feliz com a chegada da criança, mas o sonho de Joaquim de ter um filho varão, não vingou. Os dois ficaram mesmo com uma única filha.

Os anos foram passando, e Julia aprendeu a amar aquele homem. Embora não fosse nenhum príncipe encantado, ela tinha que admitir que ela a tratava com carinho e que dentro da sua simplicidade, procurava agradá-la.

Quando Julia casou-se, ela já era uma mocinha um tanto alta para sua idade, mas com o tempo veio a crescer ainda mais. Na velhice, a diferença entre marido e mulher era bem grande. Julia era alta, forte, bonitona. Joaquim era baixo, magro, até um tanto franzino. Vivia com um cigarro entre os dedos e por conta disso adquirira um enfisema pulmonar. Moravam num prédio antigo em Ipanema no terceiro andar. Como não havia elevador, o pobre homem sofria para subir todos aqueles degraus, e a cada lance da escada, parava sôfrego para respirar. Todos os vizinhos achavam que o Sr. Joaquim não iria longe, no entanto, quem veio a falecer primeiro foi D. Julia. Nunca souberam exatamente de quê ela morrera, mas o fato é que foi algo fulminante. O velhinho ficou tão transtornado com a ausência do seu grande amor, que um mês depois, veio a morrer nos braços da filha. Afinal, para quê viver mais se quem iluminava a sua vida havia partido?

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 22/01/2014
Reeditado em 22/01/2014
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