AMIGO DI

Nunca havia pensado em escrever num diário, mas você chamou minha atenção naquela papelaria e trouxe para casa sem saber ainda o que fazer. Não tenho nada para falar, mas vou guardá-lo com carinho.

Querido diário, hoje conheci o Carlos, foi um momento mágico. Parecia que estava nas nuvens, parecia que tudo se passava em câmera lenta e ele apenas esbarrou em mim na entrada do metrô, minha bolsa caiu e abaixamos juntos para pegar. Levantamos quase sem olhar para mais nada, apenas olhos nos olhos. Estava com a Morgana, minha amiga de infância e ela comentou que parecia um filme. Ele pediu desculpas e me devolveu a bolsa. Mas junto com ela veio o cartão dele, Carlos Gustavo. Nem pude acreditar, pois isso nunca havia acontecido. Fiquei tão emocionada que liguei para ele assim que cheguei em casa e marcamos nos encontrar amanhã. Estou com um pouco de medo, nem o conheço, mas a Morgana vai comigo, amiga fiel.

Amigo diário, nem escrevi todos os dias, mas venho encontrando com o Carlos diariamente. Aprendi a confiar nele, perdi os medos, e os dias têm sido tão maravilhosos que nem tenho tempo para escrever. São pequenos passeios, almoços, jantares, até já fomos ao cinema e ele me convidou a ir ao apartamento dele amanhã. Claro que irei, já penso numa noite de encantos, até me senti insegura agora, um pouco nervosa. Mas depois venho contar tudo.

Querido diário, ontem comprei um vestido novo e uma lingerie super sexy. Encontrei com Carlos, jantamos e fomos para o apartamento dele. Ouvimos boas músicas, dançamos e eu me sentia uma pessoa tão especial, uma princesa lá da minha adolescência. Comecei a sentir suas carícias, seus beijos, seus afagos. Não, não resisti, nem queria, precisava viver aquele momento com toda a entrega, toda a magia do amor a dois, íntimos o suficiente para não termos melindres ou vergonhas bobas. Passamos horas naquele jogo de corpos nus, encontros, curvas, saía de mim, fui ao delírio, até amanhecer. Nem para a Morgana contei tudo o que aconteceu. Agora tudo ficará só entre você, eu e Carlos.

Amigo Di, posso chamá-lo assim? Tenho essa mania de abreviar os nomes de quem amo, assim como amo o Cacá. Hoje, depois de meses de um amor tão profundo, ele falou em uma vida em comum, filhos, amor eterno, juras. Fiquei tão feliz que chorava enquanto ouvia. Junto com todas as lindas declarações recebi um anel, me lembrei de quando era mais nova e tanto sonhava com o anel de compromisso. Enquanto chorava abraçava o Cacá e ele mais me acarinhava. Foi o dia mais feliz da minha vida. Por que não o conheci antes? Nunca fui tão amada. Perdi meus pais cedo, lutei pela vida e só encontrei amizade na Morgana, que é quase uma irmã. Talvez por ciúmes, se afastou, sinto-me tão culpada, mas de uma maneira bem egoísta, quase nem sinto falta, Cacá me preenche totalmente, meu corpo, meu coração, minha alma. O amo tanto que acho que morreria por ele.

Di, já estou falando sobre o Carlos há quase um ano, não é mesmo? Vou contar um segredo, ele me pediu em casamento, marcamos até a data. Vim para casa olhando as luzes dos postes passarem por mim e só pensava no vestido de noiva, teria que ser lindo, eu voltei a parecer aquela princesa dos meus sonhos. Uma pequena recepção para os poucos amigos e a nossa lua de mel. Ah, já havíamos pensado em ser em Paris. Sempre quis conhecer Paris, passear de barco à noite pelo rio Sena, subir bem alto na Torre Eiffel, e olhar tudo lá de cima, olhar a vida, tudo deveria ser tão pequeno visto lá de cima e as minhas mãos nas mãos do Carlos. Sorria sozinha pela rua.

Di, estamos a uma semana do meu casamento. Tudo pronto, Cacá tão amoroso, cada dia me traz uma flor diferente e diz que é para lembrar que nossos dias jamais serão iguais. Tão romântico, tão gentil, tão carinhoso. O homem que estava guardado para mim, marcado para esbarrar e derrubar minha bolsa há meses atrás naquela entrada de metrô, como a minha vida mudou, como estou feliz, parece que meu peito vai explodir de tanta felicidade. Isso é amar demais, Di...

Amigo Di, hoje farei uma surpresa para o Cacá. Vou chegar mais cedo ao apartamento dele, encher de flores de todos os tipos que ele já me deu, colocar o anel que ele me presenteou com tanto amor, deixar tocando a nossa música, vestir aquela lingerie que parece nem existir de tão transparente. Teremos nossa última noite ainda separados, depois serão só sonhos, palavras doces, picantes, companheirismo, cumplicidade, tudo o que nunca tive e achei em Cacá. Mas depois eu conto, chego a pular de felicidade. Di torça por mim... mais dois dias e serei completa...

Querido amigo diário, não sei por onde começar... não consigo escrever...estou molhando suas páginas...meu peito dói, volto mais tarde.

Di, fiz tudo como havia planejado. Cheguei cedo, arrumei as flores pela sala e mudei de roupa ali mesmo. Pensei em esperá-lo no quarto, cheia de sonhos e fantasias loucas, afinal, seria a nossa despedida de solteiros. Fui andando pelo corredor, quase nas nuvens, pensava como iria me deitar para surpreendê-lo. Talvez fingir que estava dormindo, talvez uma pose bem sexy, ou dar um susto quando ele entrasse no quarto, não havia decidido. Mas conforme me aproximava comecei a ouvir vozes, gemidos, barulhos que eu tanto conhecia, frases que eram tão minhas. Como assim? Parei, não conseguia andar, logo percebi o que estava acontecendo. Não, não podia ser, estava nervosa, ouvindo coisas... me recusava a acreditar. Consegui dar mais uns passos, vozes conhecidas, claro, do Cacá eu já conhecia bem, sussurrando, meio rouco naquelas palavras, aquelas juras, mas a outra, tão familiar...

Não sabia se entrava ou voltava correndo. Mas tirei coragem nem sei de onde e dei um empurrão na porta do quarto. O tempo parou, os dois me olharam, se olharam nos olhamos. Queria gritar, falar alguma coisa e a voz sufocou, Carlos Gustavo e Morgana, meu futuro marido, amor da minha vida e minha melhor amiga, quase irmã. Meu peito doeu, meu silêncio gritou por dentro, tremia e tudo foi se afastando, se apagando, não sentia minhas pernas, não sentia o chão, não sentia meu mundo, tudo acabara naquele momento. Quando acordei, só o Carlos estava ao meu lado e eu deitada ali naquela cama, naqueles lençóis que presenciaram amores, traições. Estava tão fraca, queria correr, sair de perto dele, mas o meu corpo não obedecia e Carlos se explicando. Disse que desde aquele dia que pegou minha bolsa no chão e me deu seu cartão, Morgana havia ligado para ele. Que não era amor, não era puro, que me amava mais que tudo, mas se via preso na beleza de Morgana, nas suas investidas, no seu corpo, na doce sensação do perigo. Depois explicou que teria sido a última noite, pois ela sairia do país para fazer um curso, verdade, eu sabia disso.

Carlos só conseguia repetir: Perdão, perdão, amo você, perdão, não vamos estragar nossa vida, perdão, perdão...

Consegui me levantar e me vestir. Saí dali sem saber para onde, sem saber o que fazer, caminhei pelas ruas com aquelas palavras na cabeça: perdão, perdão... como conseguir isso?

Cheguei à estação do metrô. Enquanto esperava tudo voltou, lembrei-me de cada momento, cada foto, cada beijo, cada palavra, nossos planos, meu casamento no dia seguinte, e o trem se aproximava, não vi outra saída, dei um passo a frente, tonta, vazia, morta. De repente uma pessoa me puxou pelo braço numa atitude decidida. Uma senhora que me perguntou o que estava pensando em fazer. Que fosse o que fosse nada merecia minha vida em troca. A abracei e então consegui chorar, solucei no ombro daquela mulher e contei que tinha acabado de perder o meu amor. Nesse instante, ela me afastou um pouco, me olhou nos olhos e disse: Você está enganada, minha filha, o seu amor é só seu, ninguém tira de você, ele está aí, por isso sofre tanto. Pense nisso, o seu amor não foi perdido, ele é seu, só seu... se afastou para entrar no vagão e continuou dizendo que o meu amor era meu, só meu, só meu...

Consegui voltar para casa e logo busquei você. Precisava desabafar pensar, minha vida estava prestes a mudar totalmente. Apartamento decorado, vestido pendurado aqui na minha frente, igreja, festa, viagem, as alianças com a inscrição “amor eterno”, tão lindo... sei que passarei a noite em claro, pensando no que fazer.

Querido amigo Diário, Carlos Gustavo ligou dezenas de vezes, só dizia perdão, perdão... mas já decidi o que fazer, tudo será como combinado, preciso viver isso até o final.

Vou arrancar suas folhas e mandar de presente para o Carlos Gustavo. Aí sim ele me conhecerá, saberá o que senti e vivi durante tanto tempo. Vou até a igreja, e na hora da pergunta que decidirá a minha vida vou responder a palavra certa e dar um final a isso tudo.

A palavra certa...

Oi, Di! Cacá e eu estamos em Paris. Você continua sendo só meu, assim como o meu amor. Não consegui trair a mim mesma. Cacá estava tão lindo, chorava tanto. Na hora de confirmar nossos votos ele disse: Sim, eu aceito, perdão...

E eu, eu disse a palavra certa...

Mariza Schröder
Enviado por Mariza Schröder em 22/12/2013
Reeditado em 22/12/2013
Código do texto: T4621222
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