O CÓDIGO - PARTE 1

O CÓDIGO

Sumário

O código

Gênese

A primeira namorada

A pobreza

Brincando

O campinho

Morte

Sexo

Colégios

Música

A ponte

Medos

Avós

Religião

A despedida

Recife

O avião e a bola

Hungria

História

O código

¬- Hoje não tem missa.

Esta frase era o nosso código. Só nós conhecíamos o significado.

Entraríamos na igreja para agradar mamãe e, tão logo começasse a missa de domingo à noite, sairíamos para o largo da igreja de São Benedito e sentaríamos na calçada olhando as pessoas saboreando espigas de milho verde cozido, pipocas, canjicas e balões vendidos nas barracas. Algumas jogando dardos num alvo pregado no fundo da barraca ou arremessando argolas para laçar as carteiras de cigarros dispostas numa tábua no chão. Outras arriscando ganhar um mimo derrubando as caixas de fósforos no tiro ao alvo.

Tudo muito iluminado por uma fileira de lâmpadas suspensas num fio que saía das árvores e corria sobre as barracas e as cabeças dos homens de cabelos penteados com brilhantina. A música alta misturava-se à algazarra das crianças, jovens, adultos e idosos. Todos trajavam roupa bonita, engomada, cheirando a naftalina, guardada o ano todo só para os festejos de São Benedito.

Noutras vezes, caminhávamos por entre os namorados de mãos dadas e admirávamos a coragem dos adultos se balançando bem alto nas canoas e na roda gigante do parque de diversões.

Era 1972, e tínhamos doze anos de idade.

Gênese

Nasci em Caxias, no Maranhão, no dia 20 de dezembro de 1961, no mesmo dia da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n° 4.024, que regulamenta a educação no Brasil. Mamãe estava escolhendo o meu nome. Seria Washington ou Orlando. Como nasci no dia do aniversário do meu pai, que se chama João, ele exigiu que eu tivesse o nome dele.

Dentre alguns fatos importantes que aconteceram no ano do meu nascimento, o que mais chamou minha atenção foi o do Profeta Gentileza.

No dia 17 de dezembro de 1961, “o que era para ser uma inesquecível tarde de domingo com a estreia do Gran Circus norte-americano em Niterói, tornou-se o dia mais triste da história da cidade. Num gesto de vingança decorrente de um desentendimento com a administração, um ex-empregado ateou fogo à lona do picadeiro durante o espetáculo, dando início a um incêndio que logo atingiu dimensões incontroláveis. O tecido de cobertura, altamente inflamável, foi rapidamente tomado pelas chamas, caindo em gotas incandescentes sobre a platéia, onde se encontrava um público superior a três mil espectadores, crianças, em sua grande maioria.”

“O pânico foi imediato. Chamas, fumaça, calor, gritos. Pessoas desesperadas buscavam as saídas, esbarrando-se umas nas outras e atropelando as que caíam no chão. O fogo, ao alcançar a cúpula da arena, fez com que a lona desabasse. Quando chegou ao local o primeiro contingente do Corpo de Bombeiros, nada mais havia a fazer senão resgatar os sobreviventes, pois em pouco mais de 50 minutos, só restavam, além de destroços, corpos carbonizados e pisoteados.”

“Mas nem mesmo a dor da perda de parentes, conhecidos e mesmo anônimos, impediu que Niterói se mobilizasse num movimento de solidariedade.”

“Os feridos foram socorridos no Hospital Antônio Pedro, que recebeu inúmeros voluntários para doação de sangue, alimentos e medicamentos, arrecadados também em postos de coleta espalhados por vários pontos da cidade.”

“Além das quase 400 mortes registradas no local do incêndio, mais uma centena de vítimas não resistiu aos ferimentos e morreu nos dias subsequentes. Além do mentor do crime, réu confesso, dois outros cúmplices foram condenados.”

“Profeta que nasceu das cinzas. Entre as tantas pessoas que se comoveram com a tragédia de Niterói, havia José Datrino, um empresário do setor de transportes de cargas no Rio. Interpretando a queima do circo como uma metáfora do incêndio do mundo, sentiu-se chamado para abandonar o mundo material e se dedicar apenas ao espiritual. Assim, deixou tudo para trás e seguiu para Niterói, passando a viver como o profeta Gentileza. E foi no próprio terreno do incêndio que começou a reconstruir o mundo, transformando o local num belíssimo jardim, e levando ao próximo seus ideais de gentileza e paz.” Gentileza morreu em 26 de maio de 1996, aos 76 anos de idade. Os cantores Marisa Monte e Gonzaguinha homenagearam José Datrino em canções que levam o nome de Gentileza.

Gentileza

Composição: Marisa Monte

Apagaram tudo

Pintaram tudo de cinza

A palavra no muro

Ficou coberta de tinta

Apagaram tudo

Pintaram tudo de cinza

Só ficou no muro

Tristeza e tinta fresca

Nós que passamos apressados

Pelas ruas da cidade

Merecemos ler as letras

E as palavras de Gentileza

Por isso eu pergunto

A você no mundo

Se é mais inteligente

O livro ou a sabedoria

O mundo é uma escola

A vida é o circo

Amor palavra que liberta

Já dizia o Profeta

Gentileza

Composição: Gonzaguinha

Feito louco

Pelas ruas

Com sua fé

Gentileza

O profeta

E as palavras

Calmamente

Semeando

O amor

À vida

Aos humanos

Bichos

Plantas

Terra

Terra nossa mãe.

Nem tudo acontecido

De modo que se possa dizer

Nada presta

Nada presta

Nem todos derrotados

De modo que não de prá se fazer

Uma festa

Uma festa.

Encontrar

Perceber

Se olhar

Se entender

Se chegar

Se abraçar

E beijar

E amar

Sem medo

Insegurança

Medo do futuro

Sem medo

Solidão

Medo da mudança

Sem medo da vida

Sem medo medo

Das gentileza

Do coração.

Feito louco pelas ruas...

A primeira namorada

Helena Maria sempre foi desinibida. Escandalosamente cheia de vida. Eu era tímido, calado. Por isso nunca me arrisquei tocar sua mão ou cravar um beijo naquele rosto lindo irradiando um sorriso permanente. Alisar seus cabelos? Eu daria meu mundo por esse carinho, mas morria de medo de ela me chamar de indecente e ir contar ao pai dela ou à mamãe. A caminho da igreja, ela roçava sua mão na minha. Eu escondia a mão para evitar mamãe ralhar comigo. Eu também tinha muita vergonha de que as pessoas na rua nos vissem de mãos dadas. Mamãe repreendia as atitudes das meninas mais salientes, mas Helena Maria não ligava. Além de ousada, ela era desinibida e insinuante. Sua ousadia era o que eu mais contemplava. Ela dizia para mamãe que queria casar-se comigo. Eu corava de vergonha e ficava calado. Por dentro, eu me prometia que casaria com ela e a faria feliz para sempre.

Helena Maria me mostrou que as crianças também sentem o fogo da paixão. Com ela aprendi a procurar as palavras no dicionário; que o amor espalha-se no ar que respiramos e em cada um de nós; que somente os amantes sabem quantas horas demora um minuto quando se está esperando a pessoa amada; o quanto dói o arrependimento por não se ter atirado aos desejos de um coração apaixonado. Com ela aprendi que quando o amor instala-se entre duas pessoas, somente esses apaixonados podem sentir, ouvir e tocá-lo.

Os meus sentidos ficavam mais aguçados quando eu chegava do colégio e esperava ela ir a minha casa. Como era gostoso vê-la atravessando o meu portão. Quando eu estava no campinho e a via entrando, largava os colegas e corria casa adentro. Às vezes nem falava com ela, fingia que nem estava ali, que não a via. Mas por dentro eu estava morrendo de vontade de tocar seus cabelos, beijar aquele rosto liso e brilhante, igual à maçã que eu desejava comer mas não tinha dinheiro para comprar. Enfim, de dizer o quanto a amava. Não o fiz por timidez e insegurança. Frouxidão mesmo. A maçã era doce, suculenta e derretia na boca. Era assim que eu a imaginava enquanto engolia saliva a seco.

Ela tinha cabelos pretos e cacheados, pernas roliças, braços morenos e desenhados na medida certa para enlaçar-me pelo pescoço enquanto me aproximava à sua boca rósea, princípio do caminho do pecado.

Tínhamos doze anos quando nos conhecemos. Nunca a beijei. Eu a amava tanto que beijá-la parecia admoestação. Nas noites quentes maranhenses, ficávamos no portão conversando até tarde. Eu, ela e nossos colegas brincávamos de cabra-cega, pique-esconde e de esconder anel na mão.

Eu tinha medo da tia dela. Evitava ao máximo ir à casa dela. D. Vina não dava chance. Sempre falando que Helena Maria tinha que estudar, que era muito bonita e inteligente. D. Vina sabia que éramos apaixonados, mas nunca sequer insinuou que fôssemos namorar e casar.

Foi assim, apaixonado, próximo e evitando-a em público, que vivi meu primeiro amor.

A pobreza

Com a ida dos meus irmãos mais velhos e de papai para Brasília, as coisas não ficaram boas em casa para mamãe sustentar seis filhos. Certo dia, percebi que não pertenceria mais ao riacho, ao campinho, ao burro Paturi. Essa reflexão trouxe-me grande tristeza. Por dias os colegas perceberam-me acabrunhado, sem a mesma disposição para nadar, jogar bola ou pilheriar com eles.

No início, papai mandava dinheiro regularmente. Era pouco, porque ele dividia a grana com meus outros irmãos do primeiro casamento dele com a D. Edwiges. Ela morreu de parto, deixando-o com seis filhos. Dois meses depois, ele casou-se com mamãe.

Em meio à penúria que se abatia em casa, foi que apareceu o Tio Nona. Ele morava na roça, nas terras de um certo coronel bravo e muito malvado. Esse coronel tinha uma quitanda na fazenda, onde Tio Nona comprava alguns mantimentos e levava para nossa casa.

Quando ele chegava, mamãe e minha avó ficavam muito felizes. Até choravam de alegria, não só pelas coisas que ele trazia, mas porque ele era mesmo muito querido por todos nós.

Era costume nas conversas lá de casa notícias de que o coronel havia batido uns panos de facão nas costas dos empregados. Meu Tio Nona trabalhava para ele. Mamãe disse que ele nunca apanhou. Eu sofreria a mesma dor se meu tio apanhasse daquele coronel gordo, de chapéu de couro e charuto pendurado no canto da boca.

Éramos pobres. O meu pai tinha uma carroça puxada pelo Paturi, burro branco e muito manso. Papai ajudava-me a subir na carroça, levava-me a quase todos os lugares onde ia. Percorríamos a cidade em busca de fretes. Com o dinheiro, ele sustentava a todos nós. Mamãe era costureira, vendia cuscuz e cheiro verde para ajudar em casa. Muitas vezes eu e meu irmão Francinaldo fomos às ruas vender laranjas, sal e picolé. O sal era de um carregamento que chegou à cidade para salgar a carne dos bois. Como o sal era em grande quantidade, meu pai comprou uma grande porção por um preço baixo e fomos vender para ganhar um lucro.

Mamãe também ensinava plissado a umas meninas sorridentes, bonitas e de pernas grossas, que todas as tardes iam lá em casa. Lembro que mamãe havia mandado fazer um tubo comprido de alumínio. Ela esquentava água, jogava a roupa lá dentro e depois de um tempão tirava a saia plissada de pregas bem certinhas. As meninas se encantavam com o resultado do trabalho e eu com o tamanho daquele tubo. Era maior que um homem!

Éramos treze irmãos, a maioria nascidos pelas mãos de parteiras. Sempre fomos privados de conforto. Nossa casa era de massapê, tinha o chão batido, e só em 1970 tivemos dinheiro para colocar luz elétrica. Na escola, éramos sempre os últimos a comprar as fardas. Nunca tínhamos todos os livros que a professora pedia. Uma das minhas maiores alegrias foi quando D. Socorro, minha mãe de leite, presenteou-me com uma prancheta portátil feita em duratex marrom para prender o caderno.

Apenas os caçulas Gilda e Francivaldo tomavam leite com fartura no café da manhã, porque meu pai não tinha dinheiro para comprar leite para todos nós. Os mais velhos tomavam café com farinha de puba e recebiam um pingo de leite no copo de alumínio. Muitas vezes, quando eu ia comprar leite na quinta do seu Bebé, eu bebia um pouco no gargalo da garrafa e a completava com água do riacho.

Quando saíamos à rua, papai cumprimentava muita gente e todo mundo falava com ele. Algumas vezes, ele parava para conversar com uns homens e me pedia para ficar na carroça. Não queria que eu ouvisse a conversa. Depois vinha sorrindo e dizia “segura pra não cair”. Dava uma chicotada no Paturi e lá íamos cumprimentando e sorrindo para os conhecidos com um “bom dia” ou “como vai?”. Bom dia, Seu Raimundo! Como vai, D. Francisca? Bom dia, D. Maria, o Seu Manoel está bem? Como vai D. Benedita, tem notícias do Seu Nonato?

Em busca de nos oferecer uma vida melhor, meu pai foi embora para Brasília. Um ano depois de sua partida, encontrei-o voltando para casa, descendo do ônibus com uma mala na mão. Corri para abraçá-lo:

- Quem é você menino? Larga minha mala.

- Sou eu, pai, o João Filho.

- É mesmo! Como você está grande! Me ajuda com isso aqui.

Foi um dia de muita felicidade para todos nós. Mamãe era só sorrisos. Chamou os vizinhos e fez café de tarde com bolo e cuscuz para todos. Ajuntamos perto dele para ouvirmos as histórias de um lugar distante. Lembro-me que ele havia substituído a palavra dinheiro por grana. Nenhum de nós conhecia essa palavra e o achávamos muito sabido e chique. Orgulhosamente ele mostrou uma foto com seu uniforme de trabalho. Usava quepe e gravata azuis, e uma camisa branca como as nuvens que me acompanhavam até a igreja. A camisa trazia nos ombros umas listras douradas. Parecia um aviador! Foi com essa informação que Nelson, nosso vizinho com quem eu brincava de bang-bang, pegou a foto e saiu correndo rua afora dizendo que meu pai era aviador. Tanto ele quanto eu acreditamos tanto nessa história, que outros vizinhos vieram ver o meu aviador. Tempos mais tarde vim conhecer seu trabalho na empresa de vigilância Confederal em Brasília, porteiro do bloco G da SQS 116.

Naquela época, ele tinha quarenta e nove anos. Era forte, ágil, corajoso e de um cheiro muito gostoso. Cheiro de homem. Cheiro másculo. Cheiro de pai. Acho que minha irmã Dita também gostava do cheiro dele. Ela tinha catorze anos e vivia enroscada nele e sentada em seu colo. Não desgrudava. Era bonito ver os dois entrelaçados. Ela não o chamava “papai”, chamava “meu pai”. Ela enchia a boca e dizia “meu pai está chegando”, “meu pai vai trazer bombom só para mim”. Era irritantemente gostoso vê-la encher a boca de “meu pai”. Enchia boca de “meu pai” e enchia-o de felicidade.

Passados alguns dias daquela tarde, ele voltou para Brasília. Um ano depois, estávamos todos nós morando de aluguel com ele num barraco de madeira na quadra 28 do Setor Oeste do Gama, na capital do País. Era 1974.

Brincando

Na minha casa havia um pé de manga e um cajueiro muito frondosos. Faziam uma sombra grande e densa que até atrapalhava os raios do sol. O espaço era amplo e limpo. Todos os dias mamãe varria o terreiro e o mantinha sempre livre das folhas secas.

Ali embaixo, eu e meus irmãos brincávamos com nossos carrinhos de lata, jogávamos bola de meia e colhíamos as frutas maduras que caíam no chão. Quando não estava brincando naquela areia branca fina, que de tão fina não levantava poeira, eu ficava na varanda da nossa casa olhando aquela sombra e construía em meus sonhos uma pista bem grande para eu e meu irmão Nonato apostarmos corrida de velocípede.

Naqueles dias, eu tinha doze anos. Ele tinha dezoito e era meu melhor amigo. Ensinou-me a fazer bolas de meia e a jogar dama. Eu sempre ficava no gol, na dama, ele era imbatível. Pegávamos uma meia usada, enchíamos de pano e costurávamos com linha e agulha. Umas ficavam melhores que outras. As mais duras eram as melhores. Podíamos jogá-las com os pés ou com a mão. Certa vez sobrou dinheiro e então mamãe comprou uma bola de borracha. Quando ela furava, meu irmão esquentava a ponta da faca e colava um pedaço de borracha no furo. Enchia a bola com a boca e jogava água em cima do remendo, para ver se estava vazando. De tantos remendos, essa bola parecia um casco de jabuti.

Mamãe ficava tranquila quando eu brincava com o Nonato. Nessas horas ela não me chamava para aguar os canteiros de cebolinha, coentro e alface que ficavam suspensos do chão. Como eu não tinha muita força, era penoso subir a escada levando um regador cheio de água. Mamãe vendia aquelas hortaliças para a vizinhança e garantia nosso sustento.

Meu irmão era mais veloz, mais estudioso e tinha mais força que eu. Um herói perfeito! Foi muito bonito vê-lo jogando no time da nossa cidade. Vestia uniforme completo com camisa, calção, meião e tênis kichute. O vermelho era a cor mais evidente. Atleta ligeiro e bom de bola. Sempre paciente, calado e muito observador. Ah! Ele também me ensinou a fazer pipas e a pescar no riacho São José.

Eu sempre fui muito imaginativo. Lembro que certo dia peguei o rádio e abri todo ele com uma chave de fenda e fiz das peças uma fazenda cheia de gado, cavalos, porcos e galinhas. Noutra vez, não sei quem colocou uma geladeira velha na minha casa. Não tive dúvidas, peguei faca, martelo, chaves de boca e fenda e partir pra cima dela. Desmontei-a todinha. Quando furei o motor, saiu um gás verde. Fiquei ali sentado, olhando aquela fumaça e imaginei aquele motor voando comigo e com meu irmão. Não sei quantas vezes sentei no motor e esperava ele sair voando por sobre a cidade até Brasília para buscar o meu pai. Vi grande multidão embaixo me pedindo para descer. Mas não obedeci. Segui em frente no meu silencioso motor voador. Voava sobre o rio Itapecuru, sobre as matas e era acompanhado por vários periquitos, pepiras e rolinhas fogopagou. A imagem era tão forte que no meu devaneio ouvi só o silêncio. Não ouvi o latido dos cachorros, a algazarra das pessoas na rua nem a cantoria da mamãe. Aquela imagem demorou dias para sair da minha mente.

O campinho

Entre a linha do trem e minha casa havia um banco de areia muito alva e fofa que não grudava nos pés. Quando pisávamos, nossos pés afundavam até a metade. Tiramos o mato, as pedras e improvisamos um campo em frente a minha casa. O que era matagal virou um areal macio, ideal para correr, rolar nas lutas corporais e jogar bola.

Nos fins de tarde, quando o sol ia descansar e tingia a terra com uma cor alaranjada, era certo chegar alguém com uma bola. Minutos depois chegava a turma da rua. Eram o Brito, o Salvador, o Jorge, meu irmão Nonato, o Felipe e alguns outros. Todos tínhamos mais ou menos doze anos de idade. O Brito era o mais alto. Magro e muito brincalhão. O Salvador era conhecido como Dodô, era o mais forte de todos e muito bom de bola. Só não podia perder ou ser derrubado. Se isso acontecesse, o auê estava formado. Ele tinha mais força que eu, era brigão e batia em quem o contrariasse. A turma nunca sabia quando o Dodô estava rindo de alegria ou de sarcasmo. Nem por isso o evitávamos. Estávamos sempre com ele por perto.

Certo dia o jogo estava animado, éramos seis moleques; eu no gol. O Dodô era do time adversário e um dos nossos o derrubou. Falta. Cobrança para o time dele. Dodô disse que cobraria a falta, que foi a uns cinco passos do meu gol. Ninguém o contestou. A cobrança seria direta, sem barreira.

Nesse dia a bola era de borracha, tinha uns dois remendos, mas era perfeita para nossa alegria. Quando chutávamos de bola parada, fazíamos com cuidado um montículo de areia. Colocávamos a gorducha no cume, dávamos uns passos para trás, olho na bola e olho no goleiro. Calculávamos a potência do chute e o canto onde colocaríamos a redonda. Corríamos e... pimba! Pé na bola e bola indo repousar nas mãos do goleiro ou rolando gol adentro. Quando eu estava no gol e a bola passava por mim, eu morria de raiva. Era pela minha incompetência. Naquele turbilhão de emoções negativas, eu jurava que na jogada seguinte eu faria uma bela defesa e meus companheiros se orgulhariam de mim.

Nesse dia, Dodô caprichou no ritual de preparação do chute. Os outros jogadores se afastaram. Agora era eu, a bola e ele. Ele sabia que eu era bom de reflexo e ali no gol eu não tinha medo dele. Ele era o mais forte de todos. Ele começou a tomar distância, foi se afastando, se afastando e se afastou além do normal. Já havia dado uns vinte passos. Alguém reclamou que ele estava demorando muito e ele gritou para ninguém mexer na bola e que iria cobrar a falta. E foi se afastando e todos nós o vimos sumir na esquina e ir embora.

Tinha também o Jorge, filho de D. Helena. Era baixinho, vesgo, muito chorão e ranzinza, mas muito querido entre nós. Aliás, todos nós nos gostávamos muito. O Antonio era menor que eu, gordinho, tímido e tinha o apelido de caga-moeda. Certo dia, falei que se engolíssemos uma moeda e a cagássemos, no local das fezes nasceria um pé de dinheiro. Pois não é que ele acreditou na história! Disse que já estava há uma semana vigiando o local do cocô e só tinha uma moedinha. O erro dele não foi engolir a moeda. Foi falar isso tendo aquela molecada como plateia.

A parte ruim era quando mamãe aparecia no portão de casa, colocava as mãos nos quadris, estufava o peito, abria a boca e lascava um “uuuuu joooãããooo fiiiilho”, que era ouvido nos bairros vizinhos. Ela tinha que gritar bem alto, porque a algazarra da molecada era ensurdecedora. Quando a ouvia, eu corria para aguar os canteiros de cheiro verde, alface e pimentão. Ela só me chamava quando eu estava no meio da partida de futebol. Não tinha jeito, ela não me esquecia. Eu saía pisando duro, morrendo de raiva. Mas se eu não fosse, ela me dava umas lapadas com o cinturão do papai.

Eu pegava o regador pesado, cheio de água, e saía correndo para molhar as plantas. Como ficava um serviço mal feito, era obrigado a voltar e começar tudo de novo. Quando terminava, já era noitinha e os colegas já tinham ido embora se banhar, botar calção limpo e jantar.

À noite nos encontraríamos na pracinha, onde havia uma televisão sobre um pedestal. O prefeito mandou fazer uns bancos de cimento e sentávamos para assistir “Os Trapalhões”, “Durango Kid”, “Zorro” e “O Homem de Seis Milhões de Dólares”. Quando o zelador da praça desligava a televisão, voltávamos para o campinho para brincar de cabra-cega, corda, pique-esconde, cantigas de roda ou bang-bang. Bang-bang era a minha brincadeira preferida. Com um pedaço de pau, imitando um revólver, nós nos separávamos em números iguais. Cada grupo para um lado, nos embrenhávamos no matagal de fedegoso. Com a perícia e o cuidado de guerreiros de verdade, tentávamos surpreender o inimigo e... bang! Aquele soldado que fora atingido se recolhia ao meio do campinho, aguardando os outros que ainda estavam no campo de batalha, ou melhor, no mato de batalha.

A confusão estava formada quando um dos envolvidos não admitia ter morrido.

- Eu atirei primeiro - falava um.

- Não! Quando você atirou, eu te vi primeiro - retrucava outro.

- Assim não vale, eu cheguei por detrás e você nem tinha me visto - afirmava outro.

Essa discussão envolvia todos os participantes e se não havia testemunha, o duelo acabava empatado. Mas não passava de uma discussão, nunca brigamos entre nós. Às vezes rolávamos no chão lutando para medir forças, não para nos machucarmos. Nunca ganhei uma luta. Lutei poucas vezes, porque era o mais franzino e tinha menos força que os outros.

Quando os guerreiros se levantavam do chão, sacudiam a poeira do calção e sentavam lado a lado para continuarem conversando ou assistindo a próxima luta. Havia respeito e amor fraterno entre a gente. Éramos muito companheiros e cúmplices nas nossas travessuras. Não sei de ninguém que tenha ido arengar aos pais de qualquer outro amiguinho.

A fraternidade reinava também entre nossas famílias. Nossos pais se conheciam, cumprimentavam-se na rua e visitavam-se. Era momento de grande alegria quando nossos pais iam à casa dos outros. Mamãe mandava a gente arrumar a sala para receber as visitas. Fazia bolo de fubá ou cuscuz de arroz e preparava um bule de café cheiroso. As visitas geralmente eram no fim da tarde. Nos dias de visitas, eu tinha a maior preguiça para varrer a casa de chão batido. Para não subir muita poeira, eu enchia uma bacia de água e salpicava no chão. Depois de varrer o chão, passava o espanador de rabo de macaco nos bibelôs e nas cadeiras. Banhados e de roupa limpa, aguardávamos ansiosos a chegada dos vizinhos ilustres.

Noutras noites, sentávamos nos dormentes dos trilhos do trem para falar sobre a escola, o banho no riacho, assombrações e garotas. Sobre garotas eles me maltratavam muito. O único momento em que eu detestava a turma era quando eles falavam da minha irmã e da Helena Maria. Quando minha irmã Lusiná passava, eles diziam que ela era bonita e que parecia uma índia. Diziam que tinham vontade de comer Helena Maria. Certo dia um deles inventou que se colocássemos um prego caibral no lugar onde a menina fez xixi, em uma semana a gente comia ela. Pensar na possibilidade de alguém desvirginar minha irmã e minha namorada era o meu maior desespero. Por alguns dias, fiquei atento quando elas iam ao quintal fazer xixi, já que a casinha ficava fora de casa. Eu sabia da possibilidade de algum daqueles safados estarem escondidos com o bolso cheio de pregos.

Foi essa meninada quem gerou a D. Arroz Não Deu. Certa manhã, lá pelo meio dia, jogávamos bola quando passou uma senhora com uns pacotes nas mãos vindo da quitanda. Ela tropeçou e deixou cair o saco de arroz. Depois de se maldizer e de falar uns palavrões, ela disse “agora o arroz não deu”. Ouvir os palavrões de uma senhora deixou-nos atônitos e caímos na gargalhada. Foi então que um colega gritou: “e agora o arroz não deu”. Imediatamente a mulher virou-se contra nós, xingando nossas mães e nos chamando de moleques sem vergonha. A partir desse dia, onde quer que a víssemos, gritávamos “Arroz não deu”. Era o bastante para ela se enraivecer e xingar a nós e toda nossa parentalha. Era divertido vê-la desesperada catando pedras e pedaços de pau para jogar na gente.

Enfim, foi nesse campinho que vi passar o amor da minha vida, rolei na areia para ajustar contas com uns colegas, saí como herói ao defender uma bola indefensável. Onde venci as maiores batalhas da minha infância. Onde me preparei para as grandes batalhas da vida. Onde aprendi a lutar, a sonhar e a vencer. E a tornar-me invencível.

Morte

Quando menino, a morte me aterrorizava bastante. As histórias de terror que meu avô e mamãe contavam, me deixavam com muito medo de morrer ou que alguém da minha família morresse. Aprendi que a morte era algo muito terrível e uma espécie de castigo para quem desobedecia a Deus ou aos pais. Ouvi várias histórias de crianças que morreram porque desobedeceram aos pais. Muitas dessas mortes seriam evitadas se elas tivessem ouvido os conselhos de suas mães. Nas minhas orações, eu sempre pedia que a morte ficasse longe dos meus pais, irmãos e amigos. Eu rezei com tanto fervor que não morreu nenhum dos meus irmãos, colegas ou parentes mais próximos.

...

Certa vez fui cobrar uma mulher que devia dinheiro para mamãe. Ao chegar na casa dela, veio um homem me atender. Era um moço jovem, alto e muito forte. Acho que ele tinha força para derrubar um boi. Ao vê-lo, algo estranho me aconteceu. Antes de ele dizer uma palavra, senti que não veria mais meus amigos. Senti um peso no corpo, uma dor no coração, um mau pressentimento. Mamãe dizia que se rezássemos bastante para o nosso anjo da guarda, ele ficaria forte e com sua espada nos afastaria de todos os perigos. Acho que ele me disse que eu deveria fugir urgentemente daquele homem. Ele seria muito perigoso e minha vida corria risco. Obedeci. Não me lembro o que disse para o homem. Só sei que fui embora em desembalada carreira. Só parei quando cheguei em casa e fui direto, de joelhos, alimentar o meu anjo da guarda.

Naquela noite tive um pesadelo horrível. Vi em sonho uma mão azul enorme, bem grande mesmo, flutuando sobre minha cama. Gritei tão alto que mamãe e meu pai correram para me acudir, todos os meus irmãos acordaram assustados. A mão não tentava me pegar, ficava suspensa no alto, próxima ao telhado. Ela era muito grande, maior que eu.

...

Quando os tratores começaram a desenhar a Avenida Santos Dumont, toda a meninada correu para a beira da pista para ver as máquinas trabalharem e correr sobre os montes de terra despejados pelas caçambas. Eram montes grandes, maiores que um homem. Certo dia eu voltava do colégio Eugênio Barros e vi um tumulto ao redor de um dos tratores. Um menino foi mais ousado e acabou atropelado. A pá da patrola Caterpillar o pegou pelas costas, deixando suas costelas à mostra. Quando o suspenderam do chão, seu braço caiu pendurado preso apenas por alguns músculos do ombro. Vi que não tinha sangue e a carne era esbranquiçada. Fiquei vários dias sem dormir com medo de ele vim pegar no pé com sua mão toda gelada.

...

Houve um dia de grande alvoroço na cidade. Eu brincava no riacho com os colegas quando ouvimos o estampido de um tiro. Um de nós falou que seria de revólver ou espingarda. Não demos a mínima para o estampido que já se tinha ido.

Ouvimos grande tumulto de gente correndo e gritando. Corremos para nos juntar ao alvoroço. Cortamos caminho por dentro do mato, a lama ia pela metade da canela, sem camisa, só de calção.

Um cigano havia levado um tiro. Eu o vi ser retirado da água já sem vida. A água estava vermelha de sangue e de lágrimas que começavam a viajar pelas corredeiras do São José. Num instante chegaram outros ciganos em grande correria. Enquanto corriam, deixavam cair as primeiras lágrimas. Gritavam bem alto suas dores e estampavam no rosto todo o ódio pela morte do ente querido.

A polícia todinha da cidade foi em busca do assassino. Em cada jipe havia pelo menos uns dois ciganos com suas armas escondidas dentro da blusa ou presas no cinto, pelo lado de fora das roupas estampadas e alegres. Saiam mostrando ódio e jurando vingança.

Era lindo o caixão daquele garoto pouco mais velho que eu. Luxuoso. Tinha a tampa de vidro que mostrava o buraco da bala próxima do nariz por onde entrou o tiro certeiro e fatal.

...

Quando ia ao enterro de alguém, o que mais me perturbava era imaginar o último grito da pessoa. O desespero de quem não queria morrer e não teve forças para vencer a dor da morte. Eu sempre imaginei que morrer doía muito. Morrer de dor era uma sensação que me doía na alma.

A morte deveria morrer. Ela só traz tristezas. Nunca fui a um enterro em que as pessoas estivessem sorrindo. Só os assassinos riem com a morte. Riem escondidos, longe dos olhos da polícia e dos parentes da vítima. Riem do medo e da certeza. Medo de serem descobertos e punidos e a certeza de que um dia serão punidos. E os que choraram seus mortos é que sorrirão quando do julgamento. Esse é o riso compartilhado, solto, alto e leve. O riso da justiça cumprida é leve, é alto.

Nos dias que se seguiram ao velório, fiquei atordoado com a dor da bala perfurando o rosto, queimando e rompendo em brasas a cabeça do cigano até sair no tampo da cabeça e ir-se cair no lamaçal do riacho. O tiro foi de baixo para cima, porque o cigano montava um cavalo na hora fatal. Somente a bala escondida na lama e o cavalo assustado com o tiro sabiam quem era o assassino. Ao ver a arma apontada em sua direção, creio que o cigano chorou e pediu para não morrer. Creio que o assassino deu um sorriso sarcástico e puxou o gatilho. A bala, que até então estava imóvel, saiu retilínea e em disparada cobrar a dívida dos pais daquele rosto inocente.

Eu não tinha amizade com aquele garoto. Vi-o várias vezes brincando no riacho e jogando bola com outros ciganinhos. No dia do seu velório, não me saía da cabeça o pavor que ele sentiu ao ver-se mirado por um revólver. Esse pavor do “não me mate” e da bala queimando o rosto e rompendo cabeça adentro foi o que me inquietou todas as vezes que tinha que passar pelo local onde ele tombou do cavalo.

Ele não devia nada a ninguém. Quem devia, diziam os adultos, era o seu pai. Quem deve e não tem a intenção de pagar, sabe que um dia o pagamento será cobrado, que pode ser a própria vida. E quem não deve? Quem não construiu a dívida? Morrer sob a mira de uma arma é coisa pavorosa. Esse pavor se duplica quando se é inocente.

Sexo

Eu e meus amigos sempre falávamos das pernas e bundas das meninas. Quando tínhamos chance, escondíamo-nos no mato na beira do córrego e espiávamos as mulheres tomando banho. Vi muitas mulheres peladas banhando-se despreocupadamente. Preocupado estava eu em não cair da árvore ou ser descoberto por elas ou pelos amigos. O que seria um desastre.

Nenhum de nós havia tido experiência com mulher feita. Sempre falávamos das galinhas e éguas. Só que galinha era muito quente e as éguas coiçavam a gente, além de serem muito altas. Era uma luta desigual. Os homens falavam de cabras e mulheres da vida.

Lá em casa sempre havia uma moça que mamãe ou meu Tio Nona traziam do interior para morar conosco e ajudar nos afazeres de casa.

Quando morávamos na casa na beira da linha do trem, morou conosco a Maria. Morena bonita, jovem e muito saliente. Quando ela ia tomar banho, me chamava para ajudá-la levar a lata d’água para dentro do banheiro. Ela era mais alta do que eu e me suspendia do chão, se enroscava em mim e deixava que eu pegasse nos seus seios. Ela ficava de calcinha mas nunca ficou totalmente nua e não permitia que a beijasse. Como era malvada! Sorte a dela que naquele tempo ainda não existia o Estatuto da Criança e do Adolescente para que eu pudesse obrigá-la a satisfazer os desejos de uma criança.

Quando mudamos para a casa que tinha um pé de oiti na frente, levamos também a Dora, moça magra, branca e cara de sonsa. Quando mamãe saía para fazer compras, Dora me levava para dentro do milharal nos fundos lá de casa, tirava meu calção e ficava me apalpando todo. Era um ritual delicioso e sempre no começo da tarde. Apesar do sol escaldante e da coceira da palha de milho, nunca me queixei da nossa rotina. Quando mamãe voltava da rua, eu estava limpinho e saciado. A Dora cuidava muito bem de mim e dos meus irmãos mais novos.

Embaixo do pé de oiti eu e o Costinha, filho do soldado Costinha, jogávamos pedra para derrubar oiti. Às vezes não as víamos descendo e elas furavam nossas cabeças. Quando eu entrava em casa sangrando, mamãe ficava apavorada. Papai dizia que aquele menino era muito danado. Culpa do pai dele que acobertava tudo. Dizia também que a qualquer hora ia ter com o Seu Costinha uma conversa de homem pra homem. E se o soldado achasse ruim ele, o papai, tiraria a farda do soldado e dar-lhe-ia uma surra. Depois ele explicava, como que num sentimento de dever para com a família, que não se bate num soldado fardado. Bater em soldado fardado era desmoralizar toda a polícia. Ele ia bater no homem, não no soldado.

Colégios

Morena, alta e muito inteligente. Ah! Como era linda a Cecília, minha primeira professora. Ela lecionava em sua casa e mamãe gostava muito dela. Certo dia, colhi umas laranjas e levei para ela. Era um cacho lindo, com cinco laranjas amarelinhas e madurinhas. Pelo caminho, as pessoas olhavam e admiravam a harmonia perfeita daquele cacho. Até parecia um cacho de uvas, tamanha sua perfeição e beleza. Tão harmonioso como a fila de estudantes no desfile de 7 de setembro. Eu caminhava orgulhoso e altivo, segurando numa mão o presente e na outra a cartilha que tinha a lição “Vovô viu a uva”. Pelo jeito que as mulheres me olhavam e comentavam umas com as outras, acho que invejavam a professora Cecília.

No ano seguinte, fui para o colégio Presidente John Kennedy. Foi lá que descobriram que meu nome estava invertido. O sobrenome de mamãe vinha depois do de papai.

A Fátima também estudava nesse colégio. De tão valente, brigona e danada, a apelidamos de Maria Homem. Ela costumava brigar, eu não. Mas certo dia nos atracamos durante o recreio. Fomos aos socos e puxões de cabelo. Ela tentou agarrar meu pau, mas não conseguiu. Não sei se pelo tamanico dele ou pela minha agilidade. Os colegas disseram que ganhei, mas acho que levei a pior.

Briguei também com o Davi, porque ele queria namorar a minha irmã Lusiná. Ele jogava bola comigo e dizia muitas coisas feias das garotas bonitas. Logo diria também da minha irmã. Ela era morena, com aspecto indígena, tranças longas na altura da cintura. Claro que eu deveria proteger daquele Davi a minha irmã, pobre e indefesa. Ela tinha apenas 11 anos. Ele tinha 12. Para meu desgosto, ela gostava do assédio dele. Mas fui à forra quando entreguei a mamãe um bilhete que ele escrevera. Minha irmã levou uma surra daquelas. Achei foi bom!

Na escola, a hora mais tediosa era quando tínhamos que ouvir um homem careca, baixinho e muito educado falar sobre a Bandeira e o Hino Nacional. Ele dizia que não devíamos forrar a mesa nem nos secar com a Bandeira Nacional. Deveríamos cantar o Hino em voz alta e com a mão esquerda no peito. Ficava horas e horas falando essas coisas cívicas. Todo o colégio ficava em fila, vestido de calça azul, camisa branca e um emblema redondo de plástico com o nome da escola. O emblema era muito bonito e preso na camisa por um broche igual aos de prender fraldas.

Num desses dias estávamos no pátio, um céu muito claro, sem nuvens. Alguém chamou a nossa atenção e todos olhamos para cima. Vimos um ponto branco movendo-se lá no alto, pertinho do céu. Não tinha forma definida, mas parecia redondo. Por aqueles dias eu ouvi na televisão do seu Quincas que o homem fora à terra da lua. Acho que vimos a Apolo 11.

No ano seguinte fui estudar no colégio Eugênio Barros, pela manhã. Ali tive um grande amigo, o Francisco. Só andávamos juntos. Ele usava cabelos compridos e roupa marrom igual a São Francisco de Assis. Era promessa da mãe dele. Na hora do recreio, pegávamos cada qual um palito de picolé, agachávamos no corredor e fingíamos que jogávamos para o outro algum objeto bem pequeno.

- Lá vai, segura.

- Vou devolver, segura você.

- Joga devagar, se não vai perder.

- Lá vai. Cuidado, se não pisam!

Não havia nada sendo jogado. Divertíamo-nos muito porque todos nos rodeavam para ver o que tanto jogávamos.

A outra brincadeira era com as meninas. Víamos uma que estivesse em pé. Pegávamos a lixeira da sala ou uma lata e cuidadosamente, aproveitando a distração da garota, vínhamos por trás e colocávamos o objeto na frente do pé dela. Com um grampo de cabelo dobrado em forma de pinça o grudávamos no calcanhar dela. Não dava outra. Ela chutava para bem longe o que estivesse na frente e depois corria brava atrás da gente. Elas só ficavam bravas, nunca com raiva.

Com o Antonio Maria a brincadeira era outra. A diversão era vê-lo com raiva quando ríamos dos dentes dele. O apelidávamos de dentes de piranha. Como ele era grande e forte, eu só falava quando ele estava longe. Certa vez peguei a dentadura de um peixe que comemos lá em casa, deixei secar por vários dias e coloquei ao lado da carteira dele. Ele chorou de raiva e jurou estrangular quem colocara aquilo. Essa história foi parar na secretaria e nunca pegaram quem fez. Graças a Deus!

Os meus rivais do bem eram o Gastão e seu irmão galego. Eles tiravam dez em todas as matérias. Nunca souberam, mas serviram de estímulo para eu melhorar minhas notas. Em silêncio, eu competia com eles para tirar as mesmas notas. E conseguia.

Em nossa sala havia uma garota muito pobre, igual a todos nós. Ela vendia mingau à noite, na praça. Então criamos a seguinte música para ela:

Acordei de manhã cedo

Pra fazer mingau.

Não achei panela limpa

Nem colher de pau.

Pisei no rabo da gata

A gata fez miau.

Te aquieta gata

Senão não te dou mingau.

Em nome da sinceridade para com a poesia da história, do respeito ao leitor e aos meus sentimentos, nem que esse testemunho venha me custar muito caro, não posso negar que toda aquela meninada se divertia com a ira dela. Ríamos de vê-la chorar e correr atrás de nós jogando seus cadernos e palavrões. Em vão ela tentava nos ver chorar para que nossas lágrimas lavassem sua alma ferida. As lágrimas de alegria pela vingança são o bálsamo para o espírito ferido.

No ano seguinte, então com treze anos, fui estudar à noite no colégio São Benedito, pois tinha que trabalhar para ajudar em casa. Estudando à noite, encontrei um mundo novo cheio de novidades. Foi em uma dessas noites que traguei uma ponta de cigarro jogada no chão. Engasguei, tossi e lacrimejei bastante. Felizmente foi a primeira e única vez que experimentei um cigarro.

Nos primeiros dias de aula, instalou-se um circo na cidade. Não deu outra. Eu e uns amigos gazeávamos aula para irmos aos espetáculos. Muitas vezes entrávamos por debaixo da lona; noutras ficávamos de fora apenas admirando o espetacular vai e vem das pessoas e o colorido das luzes. No final daquele ano, o boletim veio espetacularmente desastroso.

Estudei também no colégio Duque de Caxias. Foi ali onde conheci o Zeca, filho do seu Bebé. Família de posses, criava gado e vendia leite. A calma e a generosidade do Zeca fizeram com que os outros alunos abusassem dele. Escondiam seu lápis ou caderno e só devolviam quando o Zeca pagava um picolé ou bombom. Só uma vez o vi se exaltar com essa espécie de sequestro. Ele era vítima por conta de o seu pai ser mais rico que o restante da turma. A nossa amizade foi muito intensa e marcante. Todos os dias, antes de irmos para casa, passávamos numa pastelaria ou sorveteria e ele pagava um lanche para nós. Ele nem imagina o quanto aqueles lanches me mantinham em pé, e o quanto eu o agradecia em silêncio. Como eu não tinha dinheiro, na hora do recreio, eu ficava só observando os colegas comprarem lanches.

Ainda naquele colégio, eu também tinha um grande amigo, o Antonio Benedito. A nossa amizade começou na sala de aula e foi tomando rumo perigoso. Por várias vezes, saíamos do colégio e passávamos num mercado que ficava próximo à agência dos Correios e Telégrafos. Lá pegávamos alguma coisa pequena e de pouco valor e colocávamos entre os livros. Às vezes era biscoito, chiclete ou caneta. Num certo dia, peguei um perfume, escondi dentro da calça, mas meu anjo da guarda pediu para eu devolver para a prateleira. À saída do mercado, o segurança nos revistou e não encontrou nada. A partir daquele dia, prometemos um ao outro que nunca mais faríamos tal coisa. Dito e feito!

Música

A música sempre esteve presente em nossa casa. Mamãe vivia cantarolando o dia todinho. Trabalhava cantando músicas lindas. Eram cantigas de roda, músicas tocadas na rádio e algumas que minha avó ensinava. A preferida dela era “Meu Primeiro Amor”.

Meu Primeiro Amor

Composição: Herminio Gimenez

Versão: José Fortuna e Pinheirinho Jr.

Interpretação: Cascatinha e Inhana

Saudade palavra triste quando se perde um grande amor,

Na estrada longa da vida eu vou chorando a minha dor,

Igual uma borboleta vagando triste por sobre a flor,

Seu nome sempre em meus lábios

Irei chamando por onde for

Você nem sequer se lembra

De ouvir a voz desse sofredor

Que implora por teus carinhos

Só um pouquinho do seu amor

Meu primeiro amor tão cedo acabou

Só a dor deixou neste peito meu

Meu primeiro amor foi como uma flor

Que desabrochou e logo morreu

Nesta solidão sem ter alegria

O que me alivia são meus tristes ais,

São prantos de dor que dos olhos caem

É porque bem sei quem eu tanto amei

Não verei jamais

Saudade palavra triste quando se perde um grande amor,

Na estrada longa da vida eu vou chorando a minha dor,

Igual uma borboleta vagando triste por sobre a flor,

Seu nome sempre em meus lábios

Irei chamando por onde for

Você nem sequer se lembra

De ouvir a voz desse sofredor

Que implora por teu carinho

Só um pouquinho do seu amor

Meu primeiro amor tão cedo acabou

Só a dor deixou neste peito meu

Meu primeiro amor foi como uma flor

Que desabrochou e logo morreu

Nesta solidão sem ter alegria

O que me alivia são meus tristes ais,

São prantos de dor que dos olhos caem

É porque bem sei quem eu tanto amei

Não verei jamais

Não verei jamais

De tanto ouvi-las, acabei aprendendo algumas letras. Eu cantava a caminho da escola, do riacho ou quando andava na carroça. Só não cantava quando ia regar as plantas. Nessa hora eu não era feliz.

Quando eu cantava caminhando pela linha do trem, eu saía pulando e dançando pelos dormentes até sumir na curva longe. Acho que o sol parava para me ouvir, porque eu não o sentia queimando minha pele. Ia e voltava ouvindo as músicas dos rádios nas casas. Parava, ouvia e cantarolava até aprender. As primeiras músicas que aprendi foram “A namorada que sonhei”, de Nilton César; e “Mar de Rosas”, com The Fevers.

Caminhar cantando fazia-me chegar mais rápido ao destino. Eu flutuava ouvindo minha própria voz desafinada e orgulhava-me de ter aprendido uma música inteirinha. O sol batia no meu rosto, na minha camisa e no meu calção e enchia de alegria todo o meu ser. Não me bastava cantar. Eu gostava de cantar e me requebrar pela estrada. Eu tinha vergonha de alguém me ver cantando. Então olhava pros lados ou atrás de mim a caminho da escola ou da quitanda, e se não tivesse ninguém, eu cantava com toda a força dos meus pulmões. Cantar me fazia forte e grande. Acho que ninguém nunca me ouviu cantar. Eu teria morrido de vergonha! Eu cantava essas músicas para a Helena Maria. Era nela e para ela que eu pensava quando cantava.

As músicas “A Namorada que sonhei” e “Mar de rosas” eram as que eu cantava com mais emoção.

A Namorada Que Sonhei

Compositor: Nilton César

Intérprete: Nilton César

Receba as flores que lhe dou

Em cada flor um beijo meu

São flores lindas que lhe dou

Rosas vermelhas com amor

Amor que por você nasceu

Que seja assim por toda vida

E a Deus mais nada pedirei

Querida, mil vezes querida

Deusa na terra nascida

A Namorada que sonhei...

No dia consagrado aos namorados

Sairemos abraçados por aí a passear

Um dia, no futuro, então casados

Mas eternos namorados

Flores lindas eu ainda vou lhe dar...

Que seja assim por toda vida

E a Deus mais nada pedirei

Querida, mil vezes querida

Deusa na terra nascida

A Namorada que sonhei...

Mar de Rosas

Composição: Joe South

Intérprete: The Fevers

Versão: Rossini Pinto

Você bem sabe

que eu não lhe prometi um mar de rosas

Nem sempre o sol brilha

Também há dias em que a chuva cai

Se você quer partir pra viver

por viver sem amouuuu

Não tenho culpa

Eu não lhe prometi um mar de rosas

A promessa que eu fiz foi fazer você feliz

Eu queria que você entendesse o quanto

eu lhe quero

O quanto eu sou sincero

Se eu falasse talvez ao menos uma vez

Que o mundo inteiro a seus pés

Contente eu botaria

Isso eu não podia

não há razão pra ser tão triste nosso amor

Ainda existe

Temos muito tempo para amar

Você bem sabe que eu não lhe prometi um mar de rosas

Nem sempre o sol brilha

Também há dias em que a chuva cai

Você bem sabe que eu não lhe prometi um mar de rosas

Se eu fizesse uma canção de todo coração

E nela eu confessasse que sem o seu amor

eu não consigo viver

Você talvez até nem fosse entender

É bem melhor você pensar

No passo que vai dar

Pois há sempre alguém querendo ver

Um grande amor com o nosso no fim

Isso mesmo você disse pra mim

Não há razão pra ser tão triste

Nosso amor ainda existe

Temos muito tempo para amar

Você bem sabe que eu não lhe prometi um mar de rosas

Nem sempre o sol brilha

Também há dias em que a chuva cai

A ponte do Treze

Na minha cidade, havia um político que se chamava João Afonso. Todos os dias, a uma hora da tarde, ele falava um tempão na rádio. Mamãe era ouvinte assídua. Eu aproveitava a distração dela e fugia para o riacho com os meus amigos do campinho e outros da redondeza. Íamos todos para a ponte do Treze, recém construída sobre o riacho São José. O riacho era tão fundo que a gente pulava de cima do pilar da ponte e não tocava os pés no fundo. A água era quente e cristalina. Pulávamos e nadávamos para debaixo dela até agarrarmos os pilares. Reuníamo-nos no campinho e saíamos conversando na maior algazarra, pés descalços, de calção, sem camisa. Ninguém se atrasava para a saída. Não tínhamos um líder. O horário estabelecido era quando começasse o programa do João Afonso.

Certo dia, mamãe deu um sermão em mim e no Jorge. Correu a notícia que uma piranha havia arrancado o tampo do calcanhar do pai dele. Fiquei muitos dias com medo de entrar no rio e no riacho.

Ao longo do riacho, havia uma mata ciliar bastante densa, com árvores altas e capim canarana verde e abundante. O sol que atravessava as árvores despejava uns raios finos que iluminavam a água, mas não víamos o fundo. Com as ondas que provocávamos, a água dançava e fazia um movimento bonito, iluminado pelas frestas do sol.

Naquelas águas, aprendi o valor das amizades e a obrigação de proteger quem estivesse ao meu redor. Eu também me sentia protegido. Por várias vezes, o espírito de solidariedade fez-se presente. Vi-o quando tinha dificuldade para nadar, e um colega que já estava a salvo esticava a mão para eu segurá-la. Quando eu me machucava jogando bola, os colegas paravam o jogo até eu me restabelecer. Nunca brigamos na divisão de mangas, cajus, ou cachos de pitangas que pegávamos nos quintais das redondezas.

As disputas lá no campinho, nas horas do bang-bang, injetaram-me uma vontade inabalável por conquistas e vitórias. No bang-bang, aprendi a ficar imóvel à espera do momento oportuno para dar um tiro certeiro com revólver de madeira no adversário.

As brincadeiras com meus amigos eram a melhor coisa do mundo. Eu só não gostava quando estávamos no riacho, e o Zeca, que era maior e mais forte, segurava meu pé e me puxava para o fundo. A sensação de afogamento instantâneo me deixava com pavor.

Eu nunca consegui brincar à vontade, porque tinha medo do programa do rádio acabar e mamãe dar por minha falta. Se isso acontecesse, era peia na certa. Mas o risco valia a pena.

Aqueles meninos eram soltos, livres e donos daquele pedaço de água morna, corrente e acolhedora. Em 2008, visitei esses mesmos lugares. Só então percebi a dimensão daquela família infantil e a gratidão por eles terem feito parte da minha história... Da boa e doce história.

Além do prazer de nadar naquelas águas cristalinas, o riso era o que mais me lavava a alma. Instalávamos o riso entre nós. Desde o instante em que nos encontrávamos até a chegada à ponte e durante todo o caminho de volta. O riso nos fazia grandes e poderosos. Nossa presença era notada de longe, porque nossa algazarra era descontroladamente grande e harmônica.

Foi naquelas águas que aprendi a nadar, a prender a respiração embaixo d’água e a sentir o carinho da morte por afogamento.

A felicidade naquelas brincadeiras era tão intensa, a água era tão gostosa, e as risadas e pilhérias com os meus amigos eram tão fortes, que tenho certeza que se mamãe sentisse essa mesma emoção, não me chamaria para varrer a casa ou fazer mingau para meus irmãos mais novos. Se ela soubesse o quanto eu era feliz naquelas brincadeiras com meus amigos, ela nunca teria me impedido de ir lá nem marcado hora para eu voltar ou me batido por desobedecê-la.

Graças à obediência à mamãe é que pude me transformar num homem leal, verdadeiro com os amigos e implacável com os adversários.

Aquelas brincadeiras transformaram-me num homem conhecedor dos meus limites, respeitador dos espaços alheios e demarcador do meu território.

A dureza da mamãe fez-me um homem sério, de caráter forte, respeitador dos horários combinados. Meus amigos fizeram-me solidário, de espírito leve e sorridente.

Eu sorri muito quando criança. Foram poucas minhas horas de angústia. Minha família era muito unida e feliz. Eu e meus irmãos nunca brigávamos. Neste momento, tento e não consigo me lembrar de uma briga sequer. Os irmãos mais velhos gostavam muito de mim e eu gostava muito de todos eles. Como nasci no dia 20 de dezembro, dia do aniversário de meu pai, ele exigiu que meu nome fosse João, que nem o dele. Mamãe aceitou, embora já tivesse escolhido que eu me chamaria Washington ou Orlando.

Por causa dessa coincidência com o nome do meu pai, meus familiares passaram a me chamar de João Filho. Apelido que perdura até hoje e o mantenho com orgulho.

O meu maior sonho era crescer e pular de cima do arco da ponte da Trezedela. No tempo das chuvas, o rio Itapecuru transbordava, muitos rapazes subiam no arco da ponte e pulavam de ponta, ou em pé. A ponte ficava quase intransitável de tanta gente para assistir ao espetáculo. Cada salto era acompanhado por um grande suspense, que só acabava quando o destemido emergia e saía nadando para as margens. Era um lindo e muito perigoso espetáculo. Nunca vi uma moça pulando. Por que as mulheres não pulavam? Porque eram medrosas, ou porque tinham juízo?

Medos

Quando menino, eu tinha medo de quarto escuro e de almas do outro mundo. Meus avós contavam histórias de Lobisomem, Mula Sem Cabeça, Saci Pererê e Caipora. Eu tinha medo de todos eles.

Quando papai se casou com mamãe, ele tinha 38 anos, ela, 18. Uma criança! Poucos dias após o casamento, ela foi ao mercado municipal comprar verduras e carne. À saída do mercado, havia um vendedor mascate que anunciava uma pomada milagrosa para curar reumatismo, empaludismo, catapora, sarampo, sesão e outras doenças mais.

Curiosa, mamãe juntou-se à multidão que cercava o vendedor falador e ficou esperando a briga da cobra com o jacaré que a todo instante ele anunciava que aconteceria. Ele abria uma mala, onde supostamente estava a cobra, e dizia:

- Minha bichina, espera só mais um pouquinho que você vai se vingar daquele maldito jacaré.

Ele abria outra mala, com o suposto jacaré, e dizia:

- Te cuida, cascudão, a Jurema tá doidinha pra envenenar tua vida!

O sol já ia alto e mamãe ali, ansiosa pelo duelo, até esqueceu de ir embora. Só achou o caminho de casa quando o homem da cobra anunciou que, antes da luta, a cobra sairia para se enrolar na perna da mulher que ainda não tivesse se banhado naquele dia. Mais que depressa, mamãe pegou a sacola e saiu de fininho por entre a multidão. Ela conta essa história com muita graça, para deleite de toda a família.

Histórias assim podem render bons momentos de felicidade. São as histórias em comum que identificam os grupos. O sangue que corre nas veias de um grupo familiar não fortalece esse grupo tal como os momentos compartilhados. Tirem-se as experiências que um grupo acumulou e os membros não se reconhecerão.

Os laços sanguíneos definem o parentesco. A convivência estabelece o amor, a amizade, a compaixão e até o ódio.

Um grupo só se lança contra outro porque as histórias e os anseios de ambos são diferentes. O indivíduo que se insurge contra seu bando é considerado à margem da lei e punido com prisão, degredo ou morte. O indivíduo que se lança contra um grupo rival e mata a todos, é reverenciado como herói e recebe todas as honrarias.

Aterrorizava-me a possibilidade de levar uma surra da mamãe. Naquela época eu não entendia, mas a crueldade das surras e castigos eram o preparo para as jornadas duras que a vida impõe aos mais pobres.

Meus colegas também apanhavam dos pais. Como éramos vizinhos, ouvíamos os gritos e lamentos deles. Nesses momentos de horror e angústia represada na alma, morríamos de vergonha pelas nossas surras e pelas dos amigos. Era uma vergonha que doía na alma. A dor na pele passava logo. Como cada um poderia apanhar também em suas casas, quando nossas feridas internas estavam cicatrizando-se, elas se reavivavam ao ouvirmos os gritos dos colegas. Não havia casa privilegiada, os castigos se espalhavam por todas elas. As marcas dos chicotes só arranhavam a pele. Doía mesmo era na alma.

Havia uma lenda verdadeira que na linha do trem apareciam fantasmas. Em uma dessas histórias, vários homens foram atacados num trole por algo que eles não viram, só sentiram as pauladas. Voltaram para casa muito machucados. Minha avó e outras pessoas falavam de um homem que virava lobisomem. Eu não o conhecia, mas diziam que ele morava perto na minha casa. Acho que morava mesmo, porque às vezes eu sentia um frio subindo pela espinha e quando eu me virava não via ninguém!

A linha do trem era mesmo muito perigosa. Várias vezes ouvi falar em atropelamento de animais e até de pessoas. O caso mais chocante foi o do Arimateia. Um negro forte, baixo e muito ágil. Trabalhava no matadouro de bois, era bom no laço e na imobilização dos animais. Ele vinha de uma festa, dormiu nos dormentes e o trem amputou-lhe o braço. Foi difícil acreditar nessa história. Assustador foi vê-lo sem o braço.

No matadouro, toda a molecada e os adultos admiravam a destreza do Juvenal, do Lombardi, do Arimateia e daquele que perdeu a mão quando estava desatolando um caminhão. Ele disse que estava colocando uma tábua nos pneus de um caminhão atolado. O motorista não o viu, arrancou e o rapaz não teve tempo de tirar a mão. Dias depois, ele mostrou a mão toda amassada e preta de sangue pisado.

Nossa diversão era ver os bois sendo laçados e arrastados para dentro do matadouro. Gostávamos mais dos bois valentes e que resistiam à força dos laços, numa esperança de fugir para o pasto e escapar da morte certa, na ponta afiada da faca dos açougueiros.

Quando um boi dava muito trabalho, um dos homens enrolava a corda num tronco, enquanto outro vinha por detrás do bicho e com uma faca grande bem amolada, num golpe certeiro e forte, cortava os tendões dos pés traseiros do animal. O boi ficava sem força para brigar e deixava-se levar ao abate, pisando e sangrando com os pés deformados e dependurados.

Certo dia, papai chegou em casa muito agoniado. Contou a história da vaca que se ajoelhou quando entrou no matadouro e viu os outros bois esquartejados e dependurados. Ele disse que ficou com tanta pena dela que se tivesse dinheiro a teria comprado e levado para casa. Disse que ela mugia um som doloroso, piedoso mesmo. Quando entrou no recinto do abate, ela se ajoelhou e foi andando de joelho e berrando alto, um berro esquisito e penoso. Era o grito de quem sabe que vai morrer. Era o “pelo-amor-de-Deus, não me mate!”. Ele contou que todos os homens que estavam sangrando ou esquartejando outros boi,s pararam para ver o triste espetáculo e que todos se arrepiaram. Ainda assim, mataram-na.

Na frente da nossa casa, do outro lado da linha, na parte de cima da rua, depois dos matos e pés de velames, sob a sombra de umas árvores bem altas e frondosas, ficava a venda do Seu Vieira e D. Alice. Ele tinha quase a mesma idade do meu pai, só que era mais baixo e musculoso. Nunca conversei com ele. Mas papai e mamãe eram amigos deles. Mamãe ia, muitas vezes, à casa deles pedir a máquina de costura emprestada para remendar nossos calções e camisas. D. Alice era uma pessoa muito boa, atenciosa e de sorriso farto. Com ela eu falava sempre. Além de bonita, tinha um semblante gentil e angelical.

Certo dia, eu estava em casa quando ouvi um alvoroço na rua. Corri para o portão e vi uma multidão se dirigindo para a casa da Sra. Alice. O seu Vieira a havia matado a facadas. Ciúmes. Quando eu e mamãe chegamos ao local, não pudemos entrar, porque já havia muita gente na calçada, na porta e nos corredores.

Disseram que ele era muito ciumento, mas não havia motivos para ciúmes. Ela era uma mulher honesta e só vivia para a casa. Disseram que ele correra atrás dela até que ela tropeçou num banco no quintal, caiu e foi morta ali mesmo, de bruços, com várias facadas. Os curiosos que iam saindo, derramavam lágrimas nos olhos vermelhos e estavam indignados com tamanha crueldade. Contavam que ela estava banhada de sangue e tinha que esperar a polícia chegar para retirar o corpo. O assassino foi preso ainda na cena do crime. Não fugiu nem reagiu à prisão.

Fiquei muito impressionado com esse crime. Mamãe e minha avó choraram muito. Lamentaram perder uma vizinha tão compreensiva e de coração tão bondoso. Por várias noites, fiquei com o sono perturbado com a cena descrita pelos curiosos. No dia do enterro, vi o caixão com ela dentro. O caixão era revestido de um roxo tão forte que dava medo. Ela estava vestida com roupa branca, envolta em rosas amarelas.

Quando eu voltava à noite do colégio, o caminho era pela calçada da Sra. Alice. Depois seguia-se um espaço escuro, sem casas, protegido por árvores altas. Eu sempre passava correndo por ali, pois tinha medo de assombração. Só que no dia do enterro, depois da aula, ao passar pela calçada, senti um calafrio em todo meu corpo de menino franzino de treze anos. Acelerei o passo e embaixo das árvores, no local escuro, iluminado pela lua minguante, havia uma cadeira de espaldar alto, coberta de veludo roxo-caixão. Passei olhando pela cadeira e me perguntei por que ela estaria ali. Só poderia ser cadeira de gente rica, pois eu nunca vira uma cadeira tão bonita na vizinhança. Minhas pernas amoleceram, minha espinha se esticou. Consegui forças e corri em desembalada carreira até minha casa, que ficava a uns cem metros dali. Falei com meu pai o que tinha visto e ele disse que devia ser móvel velho que os ricos jogam fora. Só que não havia na vizinhança ninguém com dinheiro suficiente para comprar uma cadeira daquelas.

Ao amanhecer, levantei cedinho e fui direto ver a cadeira. De dia eu não tinha medo de assombração. Chegando lá, encontrei o lugar mais limpo do mundo, nem sinal dela. Olhei se havia marcas dos pés dela no chão. Nada, tudo limpinho. Nunca mais passei por aquele local à noite. Nas noites seguintes, não tive um sono tranquilo. A todo instante eu tinha sobressaltos e solavancos que nem os do jipe na estrada de terra a caminho da roça do Tio Nona.