Este texto passou a fazer parte do livro digital Botões de Hibisco Branco e Outras Histórias publicado pela Amazon:

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Cafajeste pela metade
 
Na mesa comprida do jantar da firma, coincidentemente sentou-se frente a frente com ela. Estava longe de ser bonita, mas o corpo era atraente, principalmente pelas pernas morenas bem torneadas.
 
Depois de umas taças de vinho, soltou-se. Soltaram-se. Ele descalçou um dos sapatos e por baixo da mesa acariciou as pernas dela com o seu pé atrevido. Em vez de levar uma taça de qualquer líquido na cara, como temia, recebeu um sorriso maroto. Avançou mais. Foi até onde a perna estendida conseguiu alcançar.
 
Após o jantar, o pessoal resolveu esticar a noite num clube perto do restaurante, desses que cobram entrada, mas oferecem bom ambiente com música ao vivo. Dançaram como colegas, saíram comprometidos para um dia desses. Durante a semana, marcaram para o sábado seguinte. Combinaram o encontro na Praça do Homem Nu, distante do escritório, porque não queriam que nenhum colega os visse juntos. E nem outra pessoa.
 
Ele trabalhou até a hora do almoço e foi para a casa. Tomou banho, almoçou. Ela ficou no escritório até o meio da tarde. Refez a maquiagem leve, tomou um taxi e foi buscá-lo na praça com pontualidade incomum. Ele embarcou e ordenou ao motorista o Hotel Cruzeiro, defronte a estação ferroviária.
 
Coisa que não lhes passava pela cabeça na convivência diária de colegas. De repente, os dois no apartamento de mobília antiga, mas confortável para o padrão tarifário e o propósito a que o hotel vinha se destinando ultimamente. Inacreditável.
 
- Que loucura! Somos loucos! Ela exclamou nua ao sentir a pressão do corpo dele sobre o seu nos alvos lençóis.
 
Não demorou nada para ele concordar. De fato eram deliciosamente loucos. Com fogo nas veias e juízo no calcanhar.
 
A semana seguinte transcorreu sem comentários. Apenas trabalho. Na sexta-feira, à tardinha, ela o surpreendeu:
 
- Amanhã nós vamos sair novamente?
 
- Você quer?
 
- Quero.
 
Acertaram tudo igual. Sábado, meio da tarde, taxi até a Praça do Homem Nu, o mesmo hotel.
 
Desta vez ele levou barras de chocolate para adoçar o amor e dar energia. Gastaram o resto da tarde e avançaram na noite. Saíram exaustos, mas satisfeitos por não terem incendiado o hotel com as labaredas que irradiavam a cada junção repetida.
 
Todos os sábados refaziam a rotina, tomando cuidado para não serem vistos juntos. Às vezes mudavam de hotel. Iam para o Carioca, na Marechal Floriano.
 
Acostumaram-se um com o fogo do outro. Começaram a correr riscos. Só as tardes de sábado não bastavam. Durante a semana ousavam no próprio escritório. Ficavam para fazer serão. Um dia, na hora do almoço, no banheiro. Ele havia acabado de almoçar. Foi total falta de siso. De terno e gravata, em pé, calças arriadas. Ela sentada de pernas abertas no lavatório. Tiveram sorte. Ninguém precisou ir ao banheiro naquele instante e o frágil lavabo de louça resistiu heroicamente ao frenesi do amor, de ir e vir alucinado até a explosão final. Depois, dado o esforço inconsciente, as pernas dele não paravam de tremer. Achou que ia ter um troço, uma congestão ou coisa assim. Mas passou.
 
Um sábado não foram para o hotel. Ela ficou no escritório. Ele foi almoçar em casa, mas voltou no meio da tarde. Ela ainda estava lá. À espera, talvez.
 
Não aguentaram a proximidade. Na sala dela o incêndio começou. Ele foi à janela para cerrar a cortina.
 
- Não!  Ela pediu.
 
- Não o quê? Não quer mais?
 
- Não feche a cortina.
 
- Por que não?
 
- Se fechar, o meu noivo, lá embaixo, vai achar que estou saindo e ficará me esperando. Caso eu demore para descer ele sobe. Está trabalhando hoje. É o nosso sinal quando ele está na loja. Então, tem que ser com a cortina aberta.
 
E foi. Sobre a mesa dela, amassando papéis e fichas de estoque.
 
Era noiva. Mas para o noivo não dava. Quase encostando nos trinta, ela queria casar. Se desse, receava que ele caísse fora. Todavia contou que não era mais virgem e que a primeira e única vez foi a força. O filho da patroa, na casa onde trabalhava como doméstica. Pouca verdade. Obrigada ela não foi. Consentiu de bom grado. E não única vez.
 
O noivo era ciumento, brigava muito com ela e às vezes batia. Não para machucar. Dizia que se ela contasse quem a desonrou, matá-lo-ia. Trabalhava em uma loja em frente ao prédio da firma. Mantinha os olhos bem abertos. Por isso não podiam vacilar.
 
E assim os dois iam-se incendiando, a qualquer hora, em todo lugar. Assumindo riscos e pensando que se cuidavam para ninguém notar. Um o vício do outro.
 
Ele, conscientemente, não sentia amor. Apenas desejo. Sempre que pensava nela não enxergava um rosto, mas unicamente um par de coxas morenas de pele macia guardando entre elas um vulcão incandescente. Nada mais. Ela, um dia, confessou que o amava. Entretanto, sabia que era amor sem futuro. Então se conformava.
 
Certa vez não foi possível saírem no dia de sempre. Arranjaram o domingo. No meio da tarde, ele plantou-se na Praça do Homem Nu, fingindo que era sábado. Na hora combinada ela não apareceu. Estranhou, pois não era de se atrasar. Um quarto de hora depois, já estava aflito. Veio-lhe à cabeça uma música singela, mas agradável sucesso da hora. Então, no lugar do homem nu, na praça ele ergueu uma árvore imaginária.
 
Em frente ao coqueiro verde
Esperei uma eternidade
Já fumei um cigarro e meio
E Narinha não veio
 
Os minutos foram passando e a irritação aumentando. Achou que ela fizera de propósito, para lhe castigar por um motivo qualquer. Ou como um sinal de que deveriam terminar com aquilo antes que alguém descobrisse. E a danada da música continuava na sua cabeça, martelando sem parar.
 
Como diz Leila Diniz
O homem tem que ser durão
Se ela não chegar agora
Não precisa chegar
 
Aguentou esperar uma hora e um pouco mais. Pensando em dizer a ela muitos desaforos no dia seguinte, decidiu ir embora e pegar uma sessão de cinema para se acalmar e matar o tempo.
 
Pois eu vou-me embora
Vou ler o meu Pasquim
Se ela chega e não me vê
Sai correndo atrás de mim
 
Na segunda-feira, logo que pode, ela o atraiu para a cantina. Antes que ele iniciasse o sermão ensaiado, ela se adiantou.
 
- Não fui porque recebi visita.
 
- O seu noivo? Mas não estava acertado que ele não iria nesse domingo à tarde?
 
- Não foi o meu noivo. Foi a sua noiva.
 
- Minha noiva?!
 
- Ela chegou dizendo que você tinha ido ao futebol e à noite iria estudar para as provas da semana. Assim, resolveu aproveitar a tarde para me fazer uma visita, pois havia bastante tempo que não nos víamos. Achei meio esquisito, mas fiquei sem jeito para despachá-la. Durante duas horas conversamos sobre assuntos diversos e amenidades. Percebi que ela não estava plenamente à vontade e ela, com certeza, também notou que eu estava angustiada, meio nervosa, falando por falar, sem a fluidez de uma conversa normal. Esforcei-me bastante para disfarçar, mas não consegui. E era o que ela esperava.
 
- Por quê?
 
- Por que ela sabia do nosso encontro. Aliás, sabia de tudo.
 
- Como ela ficou sabendo?
 
- Isso ela não disse. Não revelou a fonte. Somente depois que o tempo passou de forma que não adiantaria mais ir ao seu encontro porque você já não estaria lá, abriu o jogo. Contou que viera à minha casa naquela hora porque sabia que você estaria me esperando na praça. Assim, queria saborear a minha aflição e imaginar você fazendo papel de bobo. Pediu para lhe dizer que faça o grande favor de não procurá-la nunca mais. Fiquei com a cara no chão e tive que engolir ela dizendo que não sentia raiva de mim, mas pena. Veja só. Pena! E que eu ficasse tranquila porque não contaria nada para o meu noivo. Entre outras coisas, disse que tinha grandeza suficiente para não se rebaixar por nada neste mundo, e que não criaria confusão nem embaraço. Virava a página com a visita surpresa. E que surpresa!
 
- Por essa eu não esperava...
 
- E quanto a nós, estive pensando e resolvi que é hora de parar. Assim como ela, com certeza outras pessoas sabem ou desconfiam do nosso caso. Não quero perder o meu noivo. Fim da linha para nós. Foi muito bom, mas loucura demais.
 
- Mas...
 
- Não adianta, acabou. E ela ainda me pediu para lhe entregar isto.
 
Deixou nas mãos dele um pequeno estojo negro de joalheria e saiu. Abandonado, ele abriu a pequena caixa. Dentro dela, duas fendas. Uma vazia. Encaixada na outra, a aliança da ex-noiva. Voltou a fechar o estojinho e o guardou no bolso do paletó. Serviu-se de uma xícara de café amargo. Enquanto o sorvia, pensativo, alguém entrou na cantina e lhe desejou um sorridente bom dia. Surpreendendo-se com o seu semblante tenso, o colega perguntou:
 
- Que cara é essa? De segunda-feira?
 
- Meu time perdeu ontem. De goleada. Estou chateado, só isso - respondeu depositando a xícara sobre a bancada. Saiu em seguida, deixando o outro falando sozinho e matutando a que goleada ele se referira, pois a rodada tinha sido de placar magro em todos os jogos.
 
Foi até sua mesa, deu uma olhada em alguns papéis e na agenda. Concluiu que estava sem condições para o trabalho naquele momento. Preferiu ir dar uma volta para espairecer e pensar um pouco. Na rua, sem querer tomou o rumo da Praça do Homem Nu. Lá chegando, não viu mais o coqueiro verde que imaginara na véspera. No seu lugar, a enorme estátua esculpida em granito olhando firme para o horizonte.
 
Como se ficasse desapontado, ele atravessou a rua e entrou no bar em frente. Instalou-se em uma mesa próxima à porta, com vista para o logradouro, e pediu um conhaque. Nunca havia bebido àquela hora da manhã, nem imaginara que um dia poderia fazê-lo.
 
Os seus olhos perdiam-se entre a estátua, o obelisco e o painel dupla face do outro lado. Casais de pombos beliscavam restos de pipoca no chão e matavam a sede no espelho d’água sem se importar com os passantes, enquanto ele experimentava a sensação de que o sol estava brilhando para todos menos para ele, esquecido no seu vulnerável refúgio. Num único dia, perdera a noiva linda e amorosa e a amante fogosa. Se ao menos fosse cafajeste por inteiro, não estaria agora sentindo essa indizível dor a lhe corroer a alma como soda cáustica. Não fosse ele apenas cafajeste pela metade, certamente estaria imune a tão pesada angústia e a uma implacável vontade de chorar.
 
 
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N. do A. (1) - Na ilustração, aspecto da Praça 19 de Dezembro, em Curitiba, Paraná, popularmente conhecida como Praça do Homem Nu.

N. do A. (2) – As inserções em destaque ao longo do texto correspondem à letra original de Coqueiro Verde, gravada por Erasmo Carlos e da autoria dele com Roberto Carlos.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 02/07/2012
Reeditado em 17/05/2022
Código do texto: T3756146
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