Quem há de dizer?
 
A mãe lavava e passava e o guri entregava as roupas limpas e passadas no bordel. Fazia a entrega e voltava com roupas para lavar e passar. Três vezes por semana.

Durante muito tempo não sabia que tipo de casa era aquela. Nem imaginava porque havia ali tantas mulheres. E tanta roupa para lavar.

- As roupas da dona Chiquinha estão prontas, pode levar - dizia a mãe.

E lá ia ele com duas sacolas enormes. Na porta pedia pela dona Chiquinha. Ela vinha, apanhava as sacolas, entrava, tirava as roupas limpas, colocava as sujas, voltava, devolvia as sacolas, pagava.

Enquanto a cafetina fazia a operação de receber, trocar, devolver e pagar, ele ficava na porta espiando a sala. Volta e meia passava alguma das moças, muitas vezes em trajes sumários. De tantas que já tinha visto, não saberia dizer quantas havia.

Foi crescendo nessa rotina. Veio a adolescência. Passou a entender a função da casa e das moças. Mais ousado, já não se limitava a esperar na porta. Entrava e aguardava na sala. Vez ou outra aparecia uma das operárias do amor para um papo rápido.

O termo entrou na sua cabeça para não sair mais quando ele se dirigiu a uma delas pela primeira vez.

- O que vocês fazem aqui? Vejo que são muitas.

- Somos operárias do amor - respondeu a rapariga, rindo da inocência do menino e sumindo dentro da casa.

Lá pelos dezessete deu com uma recém-chegada. Enquanto ele esperava na sala, como de costume, ela passou. No encontro de olhares, estremeceu. Nem conseguiu responder o boa tarde com que ela educadamente o saudou.

Nas próximas entregas, ia na expectativa de reencontrá-la. Não tinha sorte. Foram muitas as entregas até ela reaparecer. Desta vez a cumprimentou. Emendou conversa. Mesmo sem saber o que era o amor, apaixonou-se.

Ela percebeu o jogo. Deu corda. Aparecia sempre. Demorou a entender que também gostava dele. O filho da lavadeira e a puta, pensou. Que futuro? Um frangote apaixonado e ela, bem mais velha, gostando dele. Melhor esquecer.

Maior de idade, já podia frequentar o bordel. Foi atrás dela. Não perdeu tempo, foi com ela.

- Pra você é de graça. Mas só de vez em quando. Não se acostume. E tenha juízo. Não faça escândalo. Nem loucuras.

Passou a ir ao bordel todas as noites. Só para vê-la. Em noites de movimento fraco, ganhava um amorzinho. Voltava para casa feliz e sonhava com ela a noite toda na sua cama.

Certa vez ouviu no rádio uma canção. Gostou da música e da letra. Batia com ele, mas gostaria que ela tivesse um final diferente, feliz. A essa altura já se assumia completamente apaixonado. E ela não podia dizer o contrário, apesar do ofício. Gostava muito dele. Aos fregueses servia pensando nele.

 
Quem há de dizer
Que quem vocês estão vendo
Naquela mesa bebendo
É o meu querido amor

 
Na sua mesa cativa ele passava horas admirando a mulher, bebendo Coca-Cola e embriagando-se com a imagem dela.
 
Reparem bem
Que toda vez que ela fala
Ilumina mais a sala
Do que a luz do refletor

 
Valorizava cada momento, pois sabia que mesmo estando com outro, tudo era para ele, até quando com outro, ou mesmo sozinha, ela dançava.
 
O cabaret se inflama
Quando ela dança
E com a mesma esperança
Todos lhe põem o olhar

 
Podia morrer de ciúme, mas aguentava firme. Não via solução para aquele amor prosperar, mas também não queria entregar os pontos. Contentava-se com o depois.
 
E eu dono
Aqui no meu abandono
Espero morto de sono
O cabaret terminar
 
 
No paradoxo de tentar esquecê-la, ou encontrar condições financeiras para tirá-la dali, passou a se dedicar mais ao boxe. Pensava em fazer carreira. Não era mau lutador, mas para chegar ao topo ainda faltava muito. Não era fácil encontrar patrocinador. Quando encontrava, o patrocínio era irrizório, quase não dava para nada. Mesmo assim, ganhou alguns prêmios e troféus de pouca importância.
 
Um dia levou ao bordel um companheiro da academia. Com orgulho, apresentou a ele a sua outra paixão. O amigo não teve dúvida quanto ao amor sincero de um pelo outro.

 
Rapaz leve esta mulher consigo
Disse-me uma vez um amigo
Quando nos viu conversar

Vocês se amam
O amor deve ser sagrado
O resto deixe de lado
Vá construir o seu lar
 
 
Muitas vezes havia pensado nisso. Contudo, não esquecia a opinião da sua mãe e do que já ouvira falar bastante. De que mulheres que nascem predestinadas a essa vida não mudam nunca. É uma maldição para toda a existência.
 
Palavra
Quase aceitei o conselho
O mundo esse grande espelho

Foi que me fez pensar assim

Ela nasceu com o destino da lua
Pra todos que andam na rua
Não vai viver só pra mim
 
 
Certa manhã, depois de mais uma noite de lupanar, ainda abraçados na cama, ela o surpreendeu.
 
- Vou deixar a casa e a vida.
 
- Vai me abandonar também?
 
- Depende só de você. E estou falando sério, não é conversa de puta.
 
- Tem planos?
 
- Tenho. No centro há uma banca de revistas a venda. Preço de ocasião. Pagamento facilitado. Com minhas economias posso pagar a entrada. O resto, um pouco por mês.
 
- E você entende disso?
 
- Ainda não. Mas posso aprender. O dono disse que fica junto o tempo que for preciso. Quando eu estiver pronta, toco sozinha, ou...
 
- Ou o quê?
 
- Você toca comigo. Juntamos os trapos. Nós nos amamos, não há como negar. Se você não se importar em ter como esposa uma ex-puta, negócio fechado. O trabalho será árduo. Levantar cedo para pegar os jornais. Fechar tarde. Dormir pouco. Todos os dias da semana. Sem domingos nem feriados. Topa?
 
- Topo. Negócio fechado. Faça as malas.
 
A banca de revistas foi comprada. Levou a mulher para morar na casa da mãe dele. Continuou tentando a carreira de boxeador. Lutou por uns tempos, mas largou para se dedicar ao negócio e à família, mesmo antes que a idade mandasse parar.
 
Conforme tanto desejava, para ele o final da música foi diferente. O destino lhe reservou a felicidade que ele nem imaginava existir. Levou a mulher e ela passou a viver só para ele, contrariando qualquer prognóstico preconceituoso e o próprio mundo, esse grande espelho, como diz a canção.
 
A banca foi sendo modernizada ao longo dos anos, seguindo os padrões da prefeitura e para se adequar aos equipamentos urbanos do logradouro. O local onde ela está instalada é um dos melhores e mais movimentados do centro da cidade, o que faz dela um ponto de grande rendimento. O simpático casal fez a vida ali. Casa própria de bom padrão. Carro do ano. Quem há de dizer como tudo começou entre eles?
 
Entretanto, há muitos anos os dois não são vistos na banca. Não posso afirmar se a venderam ou repassaram aos filhos, pois nem mesmo sei se filhos eles tiveram. E também desconheço se ainda vivem ou não. Mas se vivos estiverem, já passaram dos oitenta. Espero que sim, e que continuem a irradiar felicidade e simpatia. Como sempre.
 
 
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N. do A. (1) - Conto baseado em fato verídico.
 
N. do A. (2) - As inserções em destaque ao longo do texto correspondem à letra original de Quem Há de Dizer de Lupicínio Rodrigues (música de Alcides Gonçalves).
 
N. do A. (3) - Na ilustração, La danse au Moulin Rouge de Henri de Toulouse-Lautrec.
 
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 30/05/2012
Reeditado em 09/05/2022
Código do texto: T3695736
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