BUQUÊ HUMANO


                                                                                    A um casal de amigos

Semelhante a flores de belos jardins lapidados por experientes jardineiros em cidades impares como Paris, Madrid, Rio de Janeiro, ou mesmo igual a simples flores campestres no mais longínquo das chapadas ou ainda perdidas nos labirintos das margens do rio Amazonas - somos também nós; seres humanos; espalhados nos diferentes espaços universais. Povoamos o universo e assim como as flores, desabrochamos para a vida e adquirimos um nome. Somos Violetas, Verônica, Cristiane, Cláudio, Vanessa, Lírios, Margaridas, Valdonez... Também possuímos odores, gestos e formas físicas que tanto nos diferenciam. No entanto, quando todos nós ornamentados num único arranjo humano surge uma combinação perfeita e sensível, também agressiva – isso depende do olhar de quem aprecia.
Estamos soltos no planeta e desejamos agregar-nos a outras vidas. Juntar nossos aromas a outros. Saímos de nossas cavernas, famintos por experimentar. Antes, já sentimos qualquer tipo de aproximação, desejo, ânsia. É nosso modo de farejar que se mantém sempre atento. Uma sensação que aos poucos se junta a nós a partir da observação/vivencia. A principio é um simples rascunho, uma longínqua marca que por um acaso dos gestos nos identificamos; troca de olhares.
Livre no mundo, o arranjo se mostra aberto às explorações. Mesmo que as flores humanas não estejam plenamente soltas de outros arranjos humanos, e quase nunca estão, pois espalhamos raízes diariamente.
Assim, numa noite quente de musica e alegria, as flores exalam o que de mais magnífico existe em si; o seu odor agradável e insaciável. Beija-flores pousam sem receio de provar o mel. Tudo é tão simples, surge tão naturalmente que nem indica virar algo mais profundo. É uma frenética forma de saciar a fome excitante. No entanto as flores estão abertas para o viver. O beija-flor, enquanto experimenta o gostoso prazer, deixa o seu peso e sua forma diferenciada de tocar o seu bico na intimidade da flor.
Sussurra subitamente:
- Deliciosa sensação!
São dois corpos que se cruzam – estes, de certa maneira – não tão sem intenções, pois no fundo de seus pensamentos já habita certo desejo contido. Algo não revelado, mas também algo superficial. Algo identificado como “estamos abertos a diversão”. Similar ao rio que mesmo se alguém não aproveitar sua água para tomar banho em qualquer momento, não deixara de seguir o seu percurso com magnanimidade.
No entanto, a partir de trocas ocorridas, abrem-se janelas. Pensamentos agora podem aflorar com o gosto do sabor experimentado.
Os olhos passam a falar muito mais do que simples palavras.
Olhos que sabem de intimidades.
Olhos grandes que sorriem mesmo estando sérios.
Olhos que querem: experimentar, experimentar, experimentar...
A brincadeira ultrapassa o limite – impossível não ultrapassar qualquer limite. Houve certa atração forte que exige continuidade e se exige continuidade; exige fantasias e fantasias sugerem dias, noites, momentos que não mais ficam perdidos longe, mas próximos, conversando no ouvido baixinho segredos não revelados. Os sonhos ganham personagens identificáveis e ao acordar, através da janela, o céu estrelado faz pulsar o coração.
Brincar de amar é brincar de se arriscar. É brincar sempre com o inusitado. A brincadeira enquanto é brincadeira (e ela pode ser sempre brincadeira), é fácil manejar. Mas até quando queremos apenas brincar? Será a vida uma eterna brincadeira? Pode ser! Tudo pode ser e nada pode ser. Estamos no mesmo barco e nossos destinos são tão impares. Nossos olhos alcançam coisas tão distintas. O piscar de cada olho é como um relâmpago anunciando um vendaval.
Mas sempre queremos viver e experimentar; é próprio da raça humana. Insaciável é uma palavra que nos identifica com extrema categoria. Insaciáveis ou sonhadores ou ainda: viventes. Pois no fundo queremos é viver. Queremos é derramar o que estar pulsando dentro de nós.
Guardamos mesmo sem querer os acontecidos. Colocamos nossos momentos secretos dentro de uma caixinha enfeitada e, sempre que queremos nos confortar abrimos e deixamos nos irradiar com uma verdade palpável tatuada na mente.
A flor Margarida foi picada pelo bico afiado do beija-flor Cláudio. A flor se desabrochou em puro êxtase. Houve fecundação sentimental. Porem, a flor e o beija-flor trilham caminhos opostos e comprometidos. Povoam cidades amplas com moradores que exigem suas responsabilidades. Mas para que pensar nestes moradores de suas vidas agora em momento tão marcante entre ambos? Talvez porque esses moradores tenham significação profunda em suas consciências. Não são apenas moradores, são, decerto, acionistas, proprietários. Assim, mesmo não querendo percorrer as veias deste pensar fora de seus corpos ardentes de prazer, depois do gozo, a certeza da impossibilidade eterna desta franja de momento percorre sobre a consciência. As interpretações diante do outro palco da vida ficam complexas, vagas, ou mesmo longe da realidade passando a ser quase apenas ficção.
Um simples beijo na face provoca um turbilhão. O corpo encolhe de forma estranha na cama do outro. Corpo que não obedece a sua dona, seu dono e não atinge a máxima exaltação durante a entrega, pois esta entrega está sujeitada a outro corpo a outra respiração e a outros toques. Aconteceu a chama do furor. Desvios de sentimentos.
Dias que percorrem lentamente. Facetas da vida. A brincadeira inicial não mais é tão inocente. Agora o vaso é regado com sentimentos palpáveis. E até se ousa em pensar nos prosseguimentos... Mas quanto tempo dura uma chama capaz de anular a verdade? Só vivendo, só experimentando para saber! E por que não viver? Por que se privar de experimentar aquilo que nos causa certa fuga de sabor inconfundivelmente prazeroso? O melhor é consumir tudo enquanto há tempo.
Hoje Margarida consegue ver o sol se pondo ao longe, deixando o Cristo Redentor mais bonito do que é, pois não vê apenas o Cristo. Seus olhos estão em consonância com a mente que deixa a vida suave. A brisa que toca o seu rosto enquanto atravessa as horas rumo à veneração daquilo que preenche seus momentos a afirma sobre o prazer das incertezas da vida. Quer correr. Quer atingir este cume e não importa o depois, pois quer saborear o beija flor Cláudio, em Niterói, agora.
E do outro lado da baia de Guanabara, em Niterói, já se encontra o beija-flor ao som de uma música. Dirigindo não apenas o carro em velocidade extrema, também a permear pensamentos um tanto sexuais. A flor soube distribuir seu aroma de maneira duradoura. Não vale cortar estes impulsos por medo ou receio. Vale continuar trilhando os encontros em ruas desertas e carros de lixos recolhendo os entulhos da cidade em hora noturna. Vale dizer que o sabor do chocolate é gostoso ao derreter-se. A suavidade em toques gestuais, as não promessas verbais afirmam que devem apenas atingir seus êxtases sem jogar nenhuma semente em canteiros propositalmente, pois ambos já pertencem a canteiros diferentes e, no entanto existe algo em comum.
Retirando os óculos do rosto pergunta-se:
- Por que não saciar minha fome de amá-la?
Ela e ele. Nós. O mundo. A vida. Os dias. Os momentos. Aquilo que sentimos de verdade. O encontro que ocorreu sem que se tenha a mínima noção em anos perdidos. O melhor é deixar fluir, fluir. Viver. Sentir, tocar, amar...
Coração agitado. Rápidos passos por entre as avenidas. Pessoas irreconhecíveis e... Os olhos da flor Margarida encontram os olhos do beija-flor Cláudio e o momento se cristaliza em recíproca atração...




Este e outros contos estão disponíveis no livro:
“Rascunhos existenciais”
de
Valdon Nez

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Valdon Nez
Enviado por Valdon Nez em 17/05/2012
Reeditado em 19/10/2020
Código do texto: T3673631
Classificação de conteúdo: seguro
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