Esquina

A minha intenção ao parar ali na grade da esquina da Brigadeiro com a Paulista era ver se passava uma Tucson ou um i30. Mas parou ali uma garota que me falou que recusou cinco convites de agência de modelo. Recusou por recusar. E ainda falou que todos os selecionadores, olheiros, o diabo, eram cegos. Eu fiquei ali e ela se foi. O vento gelado me fazia companhia. Gélido, mas agradável. Parou ali uma velha que me perguntou o nome daquele hotel grandão que fica lá longe. Falei pra ela o nome, após forçar um pouco a vista. Mas só um pouco. Ela elogiou a minha visão e foi-se embora. Eu estava parado ali a mais de 20 minutos e nada de passar os dois carros. A intenção de ver os bólidos era reforçar a imagem quimérica da minha pessoa dentro de um deles, dirigindo na estrada, indo pra São Tomé das Letras ou Atibaia, ou qualquer cidade tranqüila, friorenta e/ou cheia de natureza, com a mão nas coxas de uma bela mulher, talvez minha, ouvindo Love Will Tear Us Apart pra contradizer o que eu não queria que acontecesse por nada deste mundo. E então, meus pensamentos são interrompidos por um casal que passava rindo com sacolas do Extra, com alguns ovos de páscoa dentro, e aquela garota de rosto quadrangular reaparece perguntando se eu confiava nela. Assim, de repente. Falei que confiava, claro, sem saber por quê. Ela me pegou pela mão e descemos a Brigadeiro em silêncio e teve uma hora que até o barulho dos carros cessaram, só dava pra escutar o crepitar das folhas secas de outono sendo quebradas pelos nossos pés, que andavam em sincronia em direção ao lago do Parque do Ibirapuera e aquilo foi mágico demais. Me virei e vi o letreiro do hotel, muito mais longe agora, e, por um segundo, pensei ter visto numa janela a velha que algumas horas antes havia me perguntado pelo nome dele. E era uma noite em que as nuvens escondiam as estrelas, mas eu havia depositado a minha confiança naquela garota que erguendo as mãos pro céu abriu frestas entre as nuvens e nós ficamos ali até a metade da madrugada contemplando uma lua amarela e ovalada e cheia de sobressalentes manchas negras e a magia continuava e sem querer eu compreendi o porquê dela não aceitar os cinco convites de agência de modelo. Sublime e impagável. Minha compreensão durou apenas alguns minutos. Como eu falei, sublime. Incompreensível. Continua impagável, até hoje, dirigindo a Tucson que nós compramos, com a mãos na minha coxa e ouvindo Handsome Devil, afirmando que por ventura de algum erro na contagem geológica do tempo, tal letra foi composta unicamente pra nós dois. Passeamos de Tucson e, distraídos olhando aquela esquina onde tudo começou, quase batemos num i30 prateado. Não tinha ninguém na esquina. Ah, tinha sim: só um casal com sacolas do Extra, com alguns panetonnes dentro. Nunca fomos pra Atibaia e nem pra São Tomé das Letras. Nossa estação preferida é o outono. E a lua cheia nos enche de tesão. E foi assim, de repente...

30/06/2010 - 21h16m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 29/05/2011
Reeditado em 29/05/2011
Código do texto: T3000212
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