LÍGIA ( Primeiro beijo)

Capítulo - I

Há coisas na vida que jamais esquecemos. Cada um tem a sua história em particular. Eu por exemplo, lembro da minha primeira calça Lee, da primeira bola de futebol, do primeiro aparelho de TV, esse até cheirava a chocolate... Do primeiro beijo. Ah! o beijo. Paro por aqui.

Chamava-se Lígia. Tinha a pele morena os cabelos negros e olhos esmeraldinos.

Foi dela o meu primeiro beijo. Roubei-o enquanto distraída ela olhava o regato que preguiçosamente se movia.

Zéfiro. Eu não gostava muito desse nome, preferia o meu segundo nome, Jorge. Mas um dia folheando um velho almanaque vi com bons olhos o seu significado. Zéfiro na mitologia grega significa vento agradável, suave. E numa poesia eu li assim: (... Zéfiro, o vento que sonda os campos...) Mudei a minha visão quanto ao meu nome. Havia algo em comum. Sim. Eu também sondava... Sondava suavemente e já há algum tempo a casa da nossa vizinha do lado. Lá morava Lígia, crescera na quela mesma casa. Nos éramos figuras novas por ali, e não demorou para que nascesse entre as duas famílias uma bela amizade. Na cerca que separava nossos quintais, havia até uma passagem que facilitava o trânsito para os dois lados.

Eu mal acabara de completar dez anos e ela já carregava suas onze primaveras. Porém, com essa idade eu já transitava por caminhos que eram considerados indignos para um filho de Deus.

Foram naquelas várzeas onde se jogava futebol que me despertei para as coisas do erotismo. Lembro-me que eram revistinhas mal desenhadas e com histórias bem simplórias e reproduzidas em cópias bem ordinárias. Os marmanjos a chamavam de catecismo. E foi de tal impacto tudo aquilo assim de uma vez, que me vi por um tempo numa situação quase deletéria.

Bem, a essa altura a mãe de Lígia, dona Ester, frequentava a nossa casa quase que semanalmente. Ela e mamãe adoravam conversar, e assunto não faltava. Conversavam sobre as plantas, comida e costura e também sobre os filhos, escola, e etc.. e Lígia, filha única sempre a acompanhava. já éramos vizinhos de portas abertas.

Eu, na minha infância, não gostava muito de agrados, receber carícias dos pais, tios e etc.. Porém numa daquelas tardes enquanto a conversa lá na cozinha de casa prosseguia intensamente, na sala onde eu me debruçava sobre o caderno de escola Lígia apareceu repentinamente. Olhei para ela e não acreditei. Ela deu um sorriso e um oi, o bastante para eu fechar o caderno e abrir ainda mais as minhas esperanças. Mansamente dirigiu-se até onde eu estava e perguntou.

— O que foi isso na sua testa?

Jogando bola no dia anterior, eu havia ferido levemente a testa e Lígia com toda a suavidade do mundo tocou seus dedos sobre o pequeno inchaço e aquilo foi para mim como um bálsamo, uma espécie de carícia que eu jamais aceitaria de outra pessoa.

Corre o tempo, e agora mal eu chegava da escola, atirava os livros sobre a mesa da cozinha e saía ao seu encontro. Ficávamos horas e horas conversando, parecíamos um par de rolinhas ao sol, quase sempre sob o os olhares de dona Ester, todavia, com o passar dos dias ela nem ligava mais.

À noite sempre pensava em Lígia. Fazia do meu travesseiro as formas perfeitas do seu corpo, era um corpo de santa em que eu relutava para não ousar malícias. Mas ao final, a ele me agarrava e me perdia em devaneios, até que o sono cruel me arrebatasse.

Foi ali certo dia naquele riachinho, um ou dois palmos de profundidade em que ela já tinha o costume de mergulhar, e que não ficava muito longe de nossas casas. Foi ela quem me convidou e eu estava muito ansioso, não percebia se ela também estava. Acho que sim.. Então tentei beijá-la, foi um ameaço, pois ela virou-me o rosto. Fiquei sem graça, não sabia onde enfiar a minha cara. Senti-me um patife. Disfarçamos olhando nossas figuras disformes no fundo das águas. Foram seculares segundos. Queria beijá-la de fato e sabia que ela também queria. Sentia-me entre o céu e o inferno, entre o medo e o despojamento. Assim pensando percebi que Lígia fingia estar abstraída. Era o sinal que eu precisava. Então me aproximei lentamente e ela se entregou a mim fechando os olhos. Beijei-a, nos beijamos... Foi curto, depois foi longo e ardente, doce e inesquecível. E o beijo pareceu me imunizar contra as malícias que eu já carregava.

Depois ela saiu correndo para casa desaparecendo entre os varais apinhados de coloridas roupas. A princípio fiquei com uma cara lambida, todavia, logo depois me senti bem. Foi um beijo não pueril, mas, puro. Rapidamente me coloquei num degrau mais alto, eu estava virando homem, pensei.

Continuamos a nos encontrar, agora, com beijinhos de cumprimentos e às escondidas, de mãos dadas. Ninguém mais poderia saber.

Lígia estava cada vez mais linda e parecia não mais caber, agora nos seus doze anos. Parecia uma mocinha dentro daqueles vestidinhos rodados e de alcinhas. Ah! aquilo com o tempo foi me despertando coisas que nem é bom falar... Já não estava a resistir, nem ela tampouco. E ela desfilava uma variada coleção deles.

Lígia era meiga e embora parecesse submissa, na verdade era ela quem me dominava. Tinha aquele jeito doce e gracioso e ao mesmo tempo sensual naturalmente. Então aconteceram as juras.

Era verão e estávamos em férias escolares. Numa bela tarde em casa, ela jogou-se sobre a minha cama e eu não resisti. Ela acabara de banhar-se. Seus longos cabelos ainda estavam úmidos e o perfume que ela usava deixava no ar uma fragrância celestial misturada com pecado. “Rosa com Dama-da- noite”.

Fiquei alerta. Na parede uma imagem de Santa Bárbara parecia querer nos dizer algo. Parecia desaprovar nossas atitudes. Senti-me incomodado. Ergui-me ligeiro e sem titubear virei o quadro ao contrário.

Lígia permanecia encovada entre travesseiros e seus olhinhos tremiam fechados, estava ansiosa e eu mais ainda! Mal se ouvia os burburinhos lá na sala diante da aurora dos nossos sentimentos.

De súbito prendi seus braços em formato de cruz e com o meu corpo pesando sobre o dela eu disse num tom bem pueril:

—Juro que quando eu crescer me caso com você. E você?

—Também juro!

— Mesmo?

— Mesmo, juro!

— Então me dá um beijo........

E foi um beijo febril, parecíamos flutuar, seus olhinhos permaneciam fechados.

E mal terminamos ouvimos o repicar de tamancos sobre o assoalho de madeira vindo em nossa direção.

Senti-me culpado de alguma coisa, e para não pagar com uma grande vergonha e as consequências que viriam, pulei a janela do quarto mais rápido do que um quati acossado e me escondi no porão. Era dona Ester que veio acompanhada de minha mãe. Safei-me por um triz.

Tão bruscamente fomos interrompidos, que a sensação que ficou foi que o meu corpo estava no porão e minha alma ainda estava lá a beijá-la...

Depois daquele dia só nos encontramos mais duas vezes. Aquela visita de dona Ester fora para despedir-se de nós. Estavam de mudança, e iam morar bem longe, lá no Paraná.

Nos dias que se seguiram fiquei como ave que se perde do seu bando. Já não me alimentava e nem estudava direito. Corriam os meses e eu ficava a imaginar que tipo de amor ou paixão havia sido tudo aquilo tudo e porque tudo terminara assim tão abruptamente? Será porque éramos apenas duas crianças?

Andava cabisbaixo e passava algumas tardes enfurnado pelos cantos pensando nela. Na verdade depois que eles se foram só tivemos notícias deles, uma ou duas vezes, não mais.

Mas todas as vezes que eu passava cruzando a pinguela sobre o riachinho eu tinha a impressão que a qualquer momento Lígia apareceria. E na minha rica imaginação apareceria como uma figura mitológica, como Yara, que emergindo daquelas águas com os seus longos cabelos de algas me levaria para o fundo de alguma lagoa e lá ficaríamos para sempre...

SBC. 2010 Cor.2018

José Alberto Lopes
Enviado por José Alberto Lopes em 16/11/2010
Reeditado em 16/12/2023
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