OPERETA BUFA *

“azo às cismas e temores,

à conta de receios vãos,

diante a si verdade crua”

Azo às inquietações, dúvidas e incertezas a persistirem em suas tormentas, à conta de receios tidos como vãos, diante a si se denunciava a verdade nua e crua.

...debruçada, alheia, redigia

enamorada em demasia

malbaratando cuidados”...

Alheia, distraída na redação, não deu pela presença atenta, enamorada em demasia malbaratando cuidados, sonhando de olhos abertos, vivendo em frenesi seu romance. Assim a encontrava, a esposa, embevecida, demonstrando há tempos comportamentos estranhos, evasivos e furtivos. A mente bailava em sonhos com outro alguém.

“...presença furtiva insana,

tinto de sangue o papel

nas mãos do açougueiro”...

Insana presença, alucinado, bruscamente retirando o bilhete das mãos desprevenidas, tingindo de sangue o papel suspeito, nas mãos do açougueiro, vindo de sua função, mal crendo no que lia e via...tudo real em suas suspeitas.

"...depunha a missiva

clandestina paixão

denunciadas juras”...

Nada mais havia a esconder. Todos os fios da meada esclarecidos, naquilo que não queria crer se materializava. Não mais o benefício da dúvida, enfrentava a sua cruel verdade.

“...nem palavras em defesa

inegáveis evidências

o marido e a infiel”...

Depunha em linhas caprichadas, rescendendo o bilhete sutil aroma, a clandestina paixão por outro em denunciadas juras.

“...maculada honra

ultrajado lar

maledicências”...

Nos gestos atônitos daquele homem furibundo, a maculada honra no ultrajado lar, enxovalhado por um mar de maledicências das viperinas línguas do vulgo.

Pesadelo vivenciado, transtornado em suas reações, congesta visão do dementado.

“....visão congesta e rubra

fácies torpor e sofrer

recôndita marca da dor”...

Incrédula visão das reles artimanhas da pérfida, atitudes suspeitas, evasivas e fugas despropositadas, traição cobrando revides. Tingindo de negro o lago plácido de um lar acima de qualquer desventura.

“...incrédulos olhos atestam

reles artimanha perfídia

traição cobrando revides...

Nau revolta em mente malsã, instigada a cruéis castigos à torpe em insaciáveis martírios. Insuficiente matá-la, teria que sofrer aos poucos, supliciá-la, satisfazendo a sua alucinada desilusão.

“...a dor lavada vingada

abatida bovina rotina

na lâmina gesto certeiro...

A dor reclamando revides, tormentos indescritíveis, abatida seria como na rotina da carne bovina, na lâmina em gestos certeiros, garras fortes que retalham carnes e desossam animais, próprios de seu ofício. Para si reivindicava o reajuste moral com o extermínio da desleal.

“...garras fortes

retalham carnes

desossam animais...

O mutismo da ré ,indefesa e atônita, em cadavérica palidez mortal, diante ao assassino em cruel demência vingativa...derradeiros instantes, fatalidade iminente, vidas aflitas em trágico destino.

Acuada diante ao pavor, desfalecida e inerte, qual boneca, o corpo arfante junto ao peito do injuriado. Mistura de cheiros no avental rubro de sangue com a visão dos alvos seios, perfumadas lembranças, fortes e latentes. Voltas no tempo, emoções revividas, sentimentos controversos, a ira e a sedução . Vacila o executor

"...desfalecida inerte boneca

perfume embriaga e exala

o desejado corpo da amada...

O insultado de alma doente hesita em sua revanche, recua indeciso. Duelo íntimo: a complacência contrapondo-se à gana insana, reclamando bestial satisfação. Parece vencido a contemplar aquele corpo desfalecido, como um cordeiro a ser imolado, sem atinar se a deseja ou vinga-se daquela mulher, prostrada ao deslinde fatídico. A honra ultrajada cobrando a morte, o desejo reforçando a vida.

“...derradeiros instantes

fatalidade iminente

vidas em aflitos enredos...

Como se de si perdera as forças alimentadas no furor. A fúria dividida pelo temor dos próprios atos, ódio contido, ponderações íntimas a paralisar a tragédia anunciada. Instantes confusos, ferido homem humilhado, menino de colo carente.

“...faíscas emoções presentes

lembranças fortes latentes

vacila o executor clemente...

Condoído de si mesmo ou da adúltera, transcendendo de si a própria dor, a fita e repousa seu olhar marejado em pranto, lágrimas convulsas, rende-se o traído, deixa a arma que empunhava para a execução inglória de sua vingança. E a olha, enternecido, embora ressentido, um suspiro de desejo, resquícios de carinhos devotados à amada.

Tendo-a entre os braços, já não mais a vítima de sua vindita, mas a fêmea tão querida, a desperta suave, depondo-a sobre o leito.

“...o insultado chaga aberta

rechaça revanches anseia

desejoso de seu amor...

Dando-se conta da situação dos fatos, voltando a si do breve delíquio, em instinto de sobrevivência, entrega-se resoluta às carícias do traído. Amam-se esquecidos dos traumas reprimidos, postergando para o futuro o fel da desconfiança

“...ódio contido ajoelhado

ferido homem humilhado

menino de colo carente...

Arquitetam planos, revivem sensações esquecidas, prelibam venturas, sonham juntos com um novo recomeçar. Sopram as brasas de um fogo enfraquecido exaurido no tempo, buscando, no clímax daqueles momentos inusitados, chamas a reviverem a frágil relação.

"...amam-se esquecidos

traumas reprimidos

futuro fel curtido...

Adormece lânguido e exausto, desmaiado em delírios febris, fortes tensões vividas pelo infausto. Ressonando em agitados haustos intermitentes, a vagar em sono solto e pesado. Animal vencido, domado, despojado de sua fúria, dorme profundo, extenuado. Touro na arena rendido.

Lépida toureira, na alva nudez sua arma, capa do torneio, levanta a matreira rediviva para, em breves palavras, reiniciar seu recado...

... que a aguarde o amante querido.

* texto selecionado para figurar na Antologia de Contos Seletos de Autores Nacionais Brasileiros, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, edição Agosto/2010