SÓFIA

Sófia estava ali prostrada naquela posição torturante: a mulher estava assim há horas. Todas em seu redor se questionavam: “Valia a pena toda aquela penitência?”.

Algumas outras, que por ali passeavam, até pensavam em inclinar-se e pergunta-lhe o porquê de tanta dor. Mas, a mulher destinadamente continuava daquele jeito: os joelhos dobrados na areia, todo o tronco apoiado sobre as pernas e o rosto enfurnado por entre os braços totalmente estendidos.

As outras estavam angustiadas. Mas, somente uma, na roda, tomou a iniciativa. Mas, logo foi rechaçada pelo braço e o dedo em riste de Sófia. Ufa! A mulher mesmo daquele jeito observava tudo e ele –

o mar – observava todas.

Há algum tempo, Sófia enamorara-se por aquele homem de sorriso vasto, roupa fina, palavras adocicadas, andar firme e elegante... Um rapazola encantador! E dentre todas daquela turma ele a escolheu pra namorar. Parecia obra do destino. Sófia sempre acreditou que tudo aconteceria daquela maneira: do jeito que conhecera o seu príncipe encantado.

Aquele corpo já dava sinais de cansaço: o suor que escorria e enfarinhava os seus cabelos na areia da praia, que lavava todo seu rosto. O seu vestido rodado estava marejado daquele martírio. Então, o corpo dela vagarosamente foi ficando de pé: inclinou o tronco, limpou toda a máscara de areia, passou a mão por sobre os longos cabelos e soberbamente caminhou até a beira do mar – e todas, em cortejo, rodeavam-na... amparavam-na! Sem nenhum toque! E, Sófia ficou com o mar até o ventre. Olhou pro céu como quem contasse todas as estrelas. Ergueu os braços e, obstinadamente, furou a primeira, a segunda... após a sétima onda a mulher desprendeu um berro abissal... mistura d’um lamento angustiante e uma represada sensação de liberdade, que lhe ecoou noite adentro e perpetuou-se por todas as praias: do Leblon ao posto do Leme.

Alberto era encantador... E, naquele verão em que a Cidade completava 400 anos conhecera a meiga e doce Sófia, que ele a um tempo pra frente chamaria, charmosamente, de Sóff. Era assim mesmo: uma mistura de sotaque francês com o luso de Lisboa. Era diferente e chique aquela pronúncia. Mas, Sófia se lá o porquê – desconfiou de seu conto de fada e logo-logo achou que Alberto era mais um galanteador de meia-pataca, que somente queria furar ondas com aquelas jovens mulheres, que se bronzeavam no Posto 11. Mas, aos poucos, foi se convencendo que aquele rapazola que não tirava os olhos dela: era especial! E, entre um mergulho e outro, Alberto – que mais tarde, intimamente, seria chamado de Albertinho – tomou coragem...

Após, aquele angustiante urro, Sófia esgotada desmaiou nos braços de outras... E, antes que o refluxo das ondas a acolhesse... Foi arrastada por todas as amigas. Seu corpo desenhou na areia todo o seu sofrimento. Exausto e estendido, ele começava a chamar por Alberto. E, numa frenética pulsação ela trovejou: ”Iemanjá! Rainha dos Mares! liberte-me de todo este infortúnio”. Imediatamente, aquele corpo descontrolado voltou a desfalecer...

Alberto sorriu e, delicadamente, se ofereceu para passar o Coopertone no corpo daquela que seria sua Sóff. E assim fê-lo. As outras a olhavam... Não com inveja. Mas, positivamente torciam por aquele romance. Afinal, aquele era o desabrochar de tudo para os pombinhos! E, entre um gole de limonada e uma abocanhada em um Geneal... Um toque, outro afago... O primeiro beijo!

As outras, atônitas, não compreendiam a ausência de Alberto, naquela última noite do ano! Já que aqueles dois namorados: era um só! Parecia unha e carne! As amigas, os vizinhos, as famílias só tinham elogios pra aqueles dois. E, por onde passeavam as recomendações eram as mesmas:

- Quando vai ser...? Quero um pedaço de bolo!

E, nada da presença de Alberto. Mas o mar revolto, agora, avançava sobre o corpo de Sófia. Já passavam das 23 horas e 57 minutos! As cantorias, preces, pedidos e oferendas começavam encobrir toda a areia da praia. Agora, os atabaques e tambores entoavam um ritmo doce e alucinante. À noite e o barulho das ondas deixavam o mar enigmático... O aroma das flores e a incineração das ervas e velas tornavam o ar inebriante, insinuando que a chegada de um novo ano seria longa e dolorosa pra umas e célere... Gratificante com outras. Entretanto, nem as cantorias, nem o destronar das ondas conseguiam trazer aquela triste mulher pra festa... Mas, o mar revoltoso primeiro banhou seus pés e insistentemente a água marinha lavou todo aquele corpo atormentado e fê-lo despertar, ficar rígido e outra vez dirigir-se ao mar. As amigas sequer tiveram tempo ou disposição para interromper aquele encontro. Sófia era assim: obstinada! Mas, aquela decisão – para todas – parecia não ser somente sua... E isto fez com que as outras tentassem conter Sófia...

Foi um tímido beijo. Um daqueles roubado! Que dali para diante misturou-se às matinês do Cinema Mira-Mar, aos passeios de mãos dadas nas calçadas da Princesinha do Mar, às festinhas-americanas ao som de Bossa Nova... Ron Merino com Coca-Cola e as danças de rostinhos colados...

O foguetório anunciava a hora-grande e o mar turbulento respondia-lhe: ora trazia flores, ora trazia velas. E, as vagas num ballet shakespeariano convidavam Sófia a não mais chorar. As outras pressentindo algum revertério - de joelhos - oravam ao Pai e batiam cabeça aos filhos-de-santo! Porém, aquela mulher destinadamente banhava-se... Agora, ela e ele deleitavam-se... Seus fartos seios flutuavam! Todo seu corpo já pertencia ao mar e ela mergulhou num abraço profundo...

E, pela manhã, o mar – em calmaria – vagarosamente despiu Sófia: na primeira marola devolveu o vestido rodado... Em outra o espartilho e o porta-seios... A calça de rendinha. E, na derradeira marola trouxe o corpo de Alberto.

GuimarãesCampos
Enviado por GuimarãesCampos em 02/07/2010
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