A Mais Pura Forma de Amor - IX

-Ah! Água quente! –O vampiro comemorou empolgado enquanto girava mais a torneira do chuveiro, já despido. –Eu não agüentava mais aquele rio gelado!

-Você dizia não sentir frio, e se não fosse por aquele rio gelado, não teria água quente aí... –O lobisomem comentou com seu tão típico mal-humor, encostando-se à porta, querendo esperar que Carlo tomasse banho para poder então finalmente tomar o seu. Tinham comprado sabonete, xampu, tesoura e lâmina de barbear, além de algumas roupas novas com aquele dinheiro ilícito que Carlo adquirira, e estavam agora hospedados em uma modesta pousada.

Como era cego, Águia imaginou que não teria problema esperar lá, até porque ele tinha medo de aventurar-se pelo quarto, que mesmo sendo minúsculo, já tinha lhe rendido dois tropeços – e isso porque os únicos móveis lá eram uma cômoda, uma cadeira e uma cama de casal.

De casal, pois não havia outro quarto disponível.

E como era de costume, Águia não levou em consideração o espírito brincalhão de Carlo, e por isso tomou um susto ao ser puxado repentinamente para debaixo do jato de água morna.

-Doido!

-Deixa de ser chato e aproveita essa água! –O vampiro respondeu rindo um pouco.

-Minhas roupas! –O Garou exclamou revoltado, querendo esconder sua vergonha por estar em um box apertado junto de homem –ou quase isso-, sendo que este segundo encontrava-se nu. E como as coisas conseguem sempre ficar um pouco pior, sentiu as ágeis mãos do menor –as quais o vampiro comprovou serem ainda mais ágeis do que o lobisomem se lembrava- começarem a despir-lhe a camiseta.

-Deixa de ser besta, cara. Roupa seca! ‘Bora, deixa eu te ajudar a tomar banho, até porque acho que você não conseguir fazer a barba direito. –Falou cínico, passando a mão pelo queixo do outro, e logo deixando-a descer displicentemente pelo pescoço.

Aquele simples toque foi mais do que suficiente para provocar um arrepio no forte corpo daquele lobisomem, e quando este sentiu que suas calças estavam prestes a ser retiradas, afastou-se rapidamente com a face corada.

-Eu posso tomar meu banho sozinho. –Disse ríspido, já saído do box.

Mas novamente foi puxado por Carlo.

-Deixa de besteira, cara. Pra quê isso agora? Eu já não te dei banho antes?

-Eu estava desacordado ou incapacitado.

-E o que isso muda?

-Muda o fato de que agora não existe motivo para você me dar banho.

-Preciso de motivos para te ajudar, cara? Deixa de frescura que eu vou esfregar suas costas... –Falou manhoso, com um tom sedutor que provavelmente apenas os vampiros detinham, enquanto passava suavemente sua mão pela linha da coluna do outro, provocando-lhe mais arrepios.

O garou hesitou, mas viu que era difícil resistir, especialmente quando lhe faltava argumentos convincentes. Da mesma maneira, não podia negar que era agradável sentir o toque do outro. Geralmente, ninguém se aproximava dele, e muito menos o tocava. Todos pareciam ter nojo dele e provavelmente era esse o motivo para que o toque carinhoso e morno de Carlo, cujas mãos haviam adquirido a mesma temperatura da água que os banhava, ser-lhe tão reconfortante.

E foi com mais arrepios que o garou sentiu uma espoja percorrer suas costas, perfumada com um sabonete que detinha o agradável aroma de alguma madeira, a qual ele estava inebriado demais para identificar. Não tinha com negar, adorava tudo em Carlo. Seu carinho, sua delicadeza, sua atenção.

Permitiu-se finalmente relaxar os ombros e a mente, sentindo os longos e magros dedos de Carlo massageando de maneira deveras agradável sua pele.

E enquanto pensava no quão grato deveria ser a Mãe Gaia por quer lhe mandado tão maravilhoso presente, tão magníficos olhos que serviam-lhe de guia em meio à escuridão, deu-se conta que as mãos do vampiro não mais se empenhavam em suas costas, mas sim em tirar suas calças.

Deixaria passar normalmente, pois como Carlo argumentara antes, já havia lhe dado banho. E, além disso, o que teria demais em sua nudez sendo que eram ambos homens?

Nada, é claro, se não fosse pela forma como o vampiro tirava suas roupas. Era algo intencionalmente provocante, e por isso o lobisomem quase se desesperou ao sentir as mãos de Carlo apalpando suas partes íntimas, enquanto o corpo dele roçava ao seu por trás, criando uma situação claramente erótica.

E como sentir um membro se encostando na sua bunda era algo completamente novo para ele, Águia imediatamente se afastou. Seus olhos, embora cegos, estava arregalados, combinando com a face corada adornada pelo espanto.

-O que você pensa que ta fazendo?

-Você sabe o que eu tô fazendo... –Carlo falou de maneira sensual, mais uma vez se aproximando do lobisomem, o qual, extremamente envergonhado, direcionou-se outra vez para fora do box.

Mas como àquele vampiro faltava muito bom-senso, o louco segurou Águia pelo braço, impedindo-o de sair, deixando-o ainda mais acuado.

-Vai fugir, é? –Perguntou provocativo, mesmo sabendo em seu âmago que aquela provocação era algo extremamente perigoso. Mas o fato era que não poderia deixar aquela oportunidade passar.

Não mesmo.

Mas Águia, por mais encantador que fosse aos olhos de Carlo, ainda tinha dentro de si o espírito de um lobo. E por causa desse espírito, Águia guardava em sua alma a ferocidade e a selvageria, e como é sabido por todo aqueles detentores de bom-senso, não é nada aconselhável provocar um animal selvagem. Uma pena que aquele vampiro não se enquadrava na descrição.

O Filho de Gaia, que com seus crimes e pecados havia compreendido a importância de manter a calma, independente da situação, procurou dentro de si a serenidade, e nada respondeu. Apenas mais uma vez tentou se afastar, ainda contendo sua força. Não queria machucar Carlo, por mais tolo e inconveniente que ele estivesse sendo.

-Tá com medo de tomar banho comigo, é? –O vampiro insistiu em suas arriscada atitude, ainda se empenhando em manter Águia naquele box consigo.

-Por que eu teria medo? –O garou perguntou tão calmamente quanto pôde, vendo que aquele vampiro podia ser bem impertinente às vezes –ou quase sempre.

E Carlo, com sua natural falta de noção –ou quem sabe, amor pelo perigo- mais uma vez o puxou para si, novamente colando os dois corpos molhados, para então sussurrar de forma terrivelmente provocante bem rente à orelha do outro.

-Porque você saber que eu vou te devorar... –Terminou sua infeliz fala com uma lambida.

E o que aconteceu em seguida se deu em apenas dois segundos.

Porque, como Garou são criaturas extremamente orgulhosas, e porque Impuros guardam dentro de si uma fúria gigantesca e quase indomável, Águia não teve sequer um milésimo de segundo para impedir-se de fazer aquilo.

Com um único movimento, soltou-se dos braços daquele fraco amaldiçoado, e com outro, já na sua monstruosa e incrivelmente poderosa forma crinos, empurrou Carlo contra a parede.

O sangue escorreu pele peito do vampiro, fruto das garras afiadas; assim como pela sua nuca, resultado do corte na cabeça originado pelo revestimento cerâmico da parede, agora quebrado.

-Idiota! –O vampiro resmungou em dor, levantando-se lentamente, vítima de uma desagradável e nauseante tontura. Aquele baque havia sido realmente forte.

-Desculpe-me, Carlo, mas eu acho que você está me julgando mal... –Águia respondeu pausadamente, esforçando-se para recuperar a calma e voltar à forma hominídea.

-Não... Não estou... Você é mesmo um idiota.

-Não venha me culpar! –O garou replicou irritado. -Eu não tinha te dado permissão para essas... Essas coisas...

-Ah, claro... Deixa eu ver... O cara me beija, me pede para não ir embora, para nunca sair do lado dele, me acompanha até um lugar que ele não gosta, divide um quarto com cama de casal comigo, e deixa eu esfregar as costas dele, ah nós dois pelado, é claro! Nossa, não sei de onde eu tirei a idéia de que ele queria transar comigo... –Carlo cuspiu aquelas palavras, repleto de raiva e sarcasmo.

-O fato de eu ter carinho por ti e te querer ao meu lado não quer dizer que eu seja gay. Isso são coisas de companheiros, e é isso o que nós somos, ao que me consta. –Águia falou pausadamente, ainda em sua batalha interna para manter-se calmo.

-Quer dizer que você tinha o costume de beijar seus companheiros? –O vampiro provocou, observando o rubor na face daquele Filho de Gaia.

-Claro que não! Eu estava falando da amizade, droga!

-Então, o que foi aquele nosso beijo, heim?

-Foi apenas um equívoco.

-Hum... Um equívoco, é? –Carlo ponderou, aparentando não ter gostado nada daquela resposta. –Então acho que ter te salvo, ter sido salvo por você, ter passado minhas noites com você naquela maldita floresta e ter te admirado todo esse tempo... Ter tomado teu sangue, ter cuidado de ti... Ter te beijado... Tudo isso foi um equívoco, afinal... É Águia, você é um cego mesmo. –O vampiro quis encerrar aquela conversa. Seu tom era magoado, e por seus passos, o lobisomem notou que ele se direcionava à porta.

-Aonde você ta indo?

-Acabar com a merda do equívoco!

-Deixa de ser infantil, Carlo! –Deu dois passos, e como suas pernas eram bem maiores, logo se encontrava bem atrás do vampiro, segurando fortemente o braço dele.

-Infantil!? –Revoltou-se, e tentou tirar seu braço das mãos do outro. –Infantil é você, que não tem maturidade para entender o que sente!

-Quem você pensa é para achar que sabe o que eu sinto?

-É... Eu não sou ninguém, né? Sou só um otário que pensou que representava algo para um otário maior ainda, mas eu tava errado! Mas que saber? Vou embora! Ah! E antes que eu me esqueça, foda-se! –Gritou, tentando, em vão, tirar seu braço da mão do Garou.

O silêncio veio então, pesado, deixando a atmosfera extremamente densa e desagradável.

-Desculpe-me... –O Garou sussurrou e um tom sofrido. –Eu não queria te machucar, nem te ofender...

-Mas o fez com louvor! Agora me solta!

-Eu não vou te soltar, Carlo.

-Por que não?!

-Porque eu preciso de você, você sabe disso.

-Ah, é? Pois não pareceu ainda agora, quando você me arrebentou.

-Foi sem querer, você sabe... Eu perdi a calma... Não esperava que você fizesse... Aquilo...

-E eu tenho que pagar pela sua falta de controle e sinceridade consigo mesmo? Francamente, Águia! Você já é grandinho o suficiente para encarar algo assim com um pouco de maturidade! –Falou em raiva, mais uma vez puxando seu braço, querendo se libertar.

Mais uma vez em vão.

-Me desculpa, Carlo, eu tô pedindo!

-E um pedido de desculpa vai concertar as coisas?

Águia ficou em silêncio. Não sabia o que responder, e talvez por isso, lentamente, sua mão foi perdendo as forças, até finalmente soltar o braço do vampiro.

Mas Carlo não se moveu de onde estava. Algo o impedia, e o mais provável era que fossem os olhos de Águia, os quais aparentavam prestes a derramar lágrimas, criando uma situação jamais imaginada pelo vampiro, o qual não conseguiu não se apiedar.

Mas ele era um vampiro, e vampiros, assim como garous, assim como humanos, assim como quase qualquer um, tinham uma boa dose de orgulho, e por isso, ele conseguiu forças para andar até a porta.

E como sua audição era excelente, Carlo chegou a escutar o som de uma lágrima, singela e triste, caindo sobre o assoalho. Não teve coragem de olhar. Sabia que desmoronaria caso visse Águia, aquele que mais parecia uma fortaleza, chorando diante de si. Sua mão direita tocou a maçaneta, e a apertou com força, abrindo lentamente a porta.

O rangido agudo das dobradiças enferrujadas mais pareceu uma faca adentrando os ouvidos de Águia, e logo em seguida, perfurando diretamente seu coração. Ele sentia como se estivessem arrancando seus olhos de si, e de fato estavam.

O Filho de Gaia fechou fortemente os olhos, querendo segurar outra vergonhosa lágrima. E eis o som de passos foi ouvido, um após o outro, leves, em sua direção, ao seu lado, e depois, para trás de si.

Águia abriu os olhos, e mesmo sem enxergar nada, virou-se para a direção na qual Carlo seguira. Pelo barulho de molas, ele havia se deitado na cama.

-Você... Não vai mais...? –Perguntou incerto e esperançoso. Sua expressão era confusa, mas aliviada.

-Eu tô pelado, não dá para eu sair assim. –O vampiro respondeu com uma voz que misturava cinismo e sadismo.

-Obrigado... –O lobisomem sussurrou.

-Não fique pensando que eu te perdoei.

Águia permaneceu em silêncio.

-Quem sabe eu te perdoe... –Falou com descaso, pegando o controle remoto e ligando a televisão. -Esse corte no meu peito pelo jeito vai demorar para sarar, acho bom que você saiba fazer curativos.

O Garou abaixou a cabeça. Não tinha mesmo nada para dizer. Seguiu para o banheiro, a fim de terminar seu banho, o qual foi bem demorado. Ele ficou pensando durante um bom tempo porque estava sendo tão difícil conviver com aquele vampiro.

“Porque ele é um vampiro, seu idiota...” –Chegou à conclusão certa após um tempo, e então fechou a torneira, puxando uma toalha e começando a secar seus cabelos. Estavam muito compridos, e Carlo havia dito que os cortaria. Passou a mão por seu rosto, sentido a aspereza de sua barba. E eis que por fim seus dedos pousaram sobre seus lábios, e por um momento ele pode sentir sobre eles a maciez dos lábios de Carlo.

Estava mesmo sendo um idiota por querer negar o que sentia.

-Carlo... –Chamou baixinho, da porta do banheiro.

O vampiro, que fingia entreter-se assistindo televisão, sequer se dignou a responder. Sentiu um leve cheiro de sangue, mas sua irritação era tamanha que nem aquilo parecia ser capaz de lhe animar. Estava de estômago cheio, mesmo.

-Carlo... –O lobisomem insistiu.

-Quê é? –Perguntou em tom impaciente, olhando de esgueira para o lobisomem. O queixo dele sangrava.

-Me ajuda a fazer a barba?

O vampiro desligou a televisão e deu um pequeno sorriso.

“Francamente...” –Pensou ainda irritado, mas no fundo um pouco feliz, já andando em direção ao banheiro.

Ryoko
Enviado por Ryoko em 06/04/2010
Código do texto: T2181659
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.