A Mais Pura Forma de Amor - IV

Estava escuro, muito escuro.

O escuro deveria ser algo comum para ele, ou pelo menos seria esse o pensamento lógico de alguém que nunca conseguira ver o mundo da mesma maneira que Águia costumava ver. Para o Garou cego, o mundo era repleto de forças e luzes invisíveis, mas não menos belas do que as que uma íris sadia conseguiria ver.

Mas tudo isso havia repentinamente sumido, e por isso aquele Filho de Gaia estava se sentindo muito assustado.

-Oh, Irmã Lua, iluminai meu caminho... –Pediu novamente na língua dos antigos, deitado no chão enquanto se banhava com os raios prateados que se desprendiam da lua quase cheia. –Não me deixeis mais no escuro...

-Mas foi você mesmo quem tirou seu olhos... –A acusação veio na forma de um leve sussurro animado e risonho.

Tratava-se de um pequeno espírito do vento que voava ao redor de Águia, dando várias piruetas e giros pelo ar, parecendo muito empenhado em se fazer notar, ou talvez até mesmo irritar o Garou. Ele era perceptivelmente muito inquieto, incapaz de ficar parado um segundo que fosse.

-Do que você está falando? –O lobisomem perguntou já sem muita paciência.

-Eu? Falar? Nãooo... –Ele dizia de maneira cínica e brincalhona, tentando parecer sério. –Eu não falo! Eu só trago notícias, sons e cheiros...

-E eu não pedi por nada disso. Eu apenas quero luz, e o vento não traz a luz. –Respondeu mal-humorado.

-Ah... Mas eu tenho notícias! Notícias sobre os olhos da águia! Eles estavam na direção de onde eu vim... Confusos, vagando, coitados... Fechados! Tão tristes quanto a águia que os perdeu... E você sabe, não sabe? A águia não consegue ver a luz sem seus olhos... Uma águia não é nada sem os olhos!

-É? Pois esta ‘águia’ aqui está mais do que acostumada a ser cega.

-Bem... Azar o dela, então... –O Sílfide resmungou baixinho e voou para bem perto da orelha do Garou. –De qualquer maneira, eu trago outras coisas... –Sussurrou como se fosse um grande segredo, e nesse exato momento um uivo foi ouvido, ao mesmo tempo em que uma forte corrente de ar trouxe ao aguçado olfato de Águia um forte cheiro de lobo.

-Exatamente da direção de onde eu vim... –O espírito comentou. –Será que o vento vai guiar a águia enquanto ela estiver sem seus olhos?

O Garou se levantou de supetão.

Uma matilha fazendo ronda, com certeza. Aquilo certamente representava a destruição imediata de qualquer vampiro encontrado.

-A águia vai deixar que destruam seus olhos? –O espírito perguntou manhoso, antes de seguir seu caminho e voar parar longe.

Águia colocou a mão sobre o peito, sentindo que ele batia demasiadamente acelerado, já imaginando o que aconteceria se –quando- achassem Carlo.

Mas bem, ele havia avisado, não havia? Ele já havia sido bondoso até demais com uma cria da Wyrm. Mais bondoso do que deveria. Aquela criatura amaldiçoado tinha mais era que perecer por entre as garras dos guardiões da Wyld.

Era assim que deveria ser. Eles eram inimigos naturais, afinal...

Sentou-se, procurando se acalmar, pensando no quão absurda era a aflição que o tomava. Tocou sua perna, desejando saber como ela estava. Ainda doía muito, e o ferimento ainda não havia fechado pelo jeito... Era Carlo quem estava tratando dele...

-Meus olhos? Francamente... –Sussurrou ao vento, desejando que o mesmo levasse de sua mente aqueles pensamentos absurdos.

Mas o vento apenas lhe trouxe mais do cheiro dos Garou que rondavam a região.

***

Estava farto.

Aquele negócio de ser escorraçado onde quer que fosse era um saco. Não podia ficar na sua cidade natal, ou o Príncipe metido a Hitler lhe matava. Não podia ficar no mato, ou o lobisomem metido a Capitão Planeta lhe matava.

Ele não tinha culpa de ter virado o que virou, oras!

E resmungando baixinho ele seguia sem saber a direção. Na verdade, ele nunca havia sido escoteiro. Seus conhecimentos de primeiros-socorros vinham apenas de experiências pessoais dolorosas, e por isso as estrelas não lhe serviam como guias, e portanto seu destino seria até onde seus pés pudessem lhe levar até o amanhecer.

Há algum tempo atrás, ele tinha essa mania. Ele vagava sem rumo pelas noites da cidade. Aquela tranquilidade costumava acalmar seu coração e fazer com que as iminentes lágrimas desistissem de rolar.

Mas desde sua transformação que a calmaria da noite deixara de lhe ser reconfortante, enchendo-o então de terror. E a cada passo solitário que era dado, era como se a falta de rumo lhe levasse diretamente à sua própria destruição.

-Merda! –Praguejou alto, assustando algumas aves que dormiam nos galhos das arvores acima de si.

Estava cansado.

Não fisicamente, é claro... Um cadáver ambulante não haveria de se cansar por uma mera caminhada...

Não... Seu cansaço era puramente emocional. Estava desde a noite anterior caminhando sem direção, sem encontrar nada, uma cidade ou um animal que fosse para aplacar sua fome. Nada de Humanos e nada de ‘Flik’s, e com esse pensamento em mente que Carlo se arrependeu por dizer a Águia que os animais não lhe eram suficientes.

E aquele lobisomem era tão bom em capturar animais...

Sentou-se no chão e olhou ao seu redor, desejando fortemente que um lindo coelho branquinho pulasse no seu colo.

E perdido em seus devaneios, Carlo chegou a abrir um sorriso ao notar alguns dos arbustos próximos a si se moverem.

Mas sua animação foi logo substituída por um aterrorizante calafrio que velozmente desceu sua espinha, espalhando por todo seu corpo uma tensão desagradável, embora já conhecida. Os pêlos da sua nuca se eriçaram, e ele se levantou imediatamente, cada músculo já contraído, à postos para uma fuga.

Uma reação automática, a mesma que tivera quando se deparou com Águia pela primeira vez.

Por trás dos arbustos pularam três lobos. Seus olhos tinham um brilho carmesim, o qual deixava claro que não detinham intenções nada amigáveis. A pelagem deles era marrom, com alguns tufos avermelhados. Se Carlo entendesse de Garous, compreenderia que se tratavam de Garras Vermelhas, e compreenderia ainda melhor o motivo daqueles lobos o olharem de forma tão faminta: Eles adoravam matar humanos, e então devorá-los.

Eles não permaneceram muito tempo naquela forma. Logo entraram em Crinos, transformando-se então em bestas assustadoras de quase dois metros de altura – pouco menores que Águia, quando assumia a mesma forma.

-É um vampiro! –O menor deles grunhiu em um tom quase que ininteligível, de tão grave e animalesco.

Aquela informação pareceu surpreender um pouco os dois demais, mas logo a empolgação que antecedia a carnificina evoluiu para um terrível e profundo ódio que parecia se espalhar em ondas. Os olhos deles pareceram ainda mais cheios daquele brilho assustador e daquele poderoso intento assassino.

O maior deles, que parecia ser o líder, foi o primeiro a avançar contra Carlo, o qual, apesar de sua agilidade nata, não conseguiu desviar totalmente do golpe dele, e acabou com três cortes profundos –e dolorosos- no braço direito.

Definitivamente, seria impossível enfrentar aqueles monstros, e por isso sua única alternativa seria correr.

Correr, era essa a sua especialidade.

Desde criança ele corria, principalmente para escapar dos constantes maus-tratos e abusos do seu padrasto. Não adiantava gritar ou pedir ajuda para a sua mãe, pois ela, sempre alcoolizada, jamais o defendia. Apenas o culpava e o espancava. Sua única alternativa era mesmo correr, o mais rápidos que pudesse, para o mais longe que pudesse.

Durante sua pré-adolescência, continuou correndo. Sempre se via obrigada a fugir dos valentões da escola, que inconformados com os dois dólares e com o miserável sanduíche de loja de conveniência, decidiam punir-lhe. Humilhavam-lhe, agrediam-lhe.

Um pouco mais velho, teve que correr da polícia algumas vezes. Na maioria das vezes nem era por causa do pequeno envolvimento com drogas que ele tivera. O que mais pesava mesmo era o fato dele ser descendente latino, morador de bairro pobre e prostituto de esquina. Era o mesmo que pedir para ser preso.

Quando virou vampiro, pensou que a sua maldição pelo menos poupar-lhe-ia de seguir correndo, de ter que fugir. Com sua nova força, ele pensou que poderia encarar qualquer desafio.

Ledo engano.

Logo viu-se constantemente escorraçado, perseguido e caçado. As noites não lhe eram seguras, e por isso sua única alternativa era mesmo correr. Correr sempre, sem olhar para trás.

Uma pena que aquela velocidade sobre-humana não era exclusividade do vampiro, e os Garou não tardaram a ir em seu encalço. Um deles até mudou para a forma lupina, a fim de se tornar ainda mais veloz, e era esse o que estava mais próximo de capturar-lhe.

Carlo já podia praticamente sentir os dentes dele rasgando sua pele, mas não olhava para trás, apenas corria, sem se importar com os galhos das árvores que lhe batiam e chegavam a lhe cortar.

O cheiro do sangue dele se espalhando pelo ar pareceu deixar os lobisomens ainda mais animados em sua caçada. E foi com muito pesar que Carlo constatou que daquela vez não conseguiria se safar correndo.

Parou de repente e se virou, esquivando-se agilmente da primeira mordida que lhe fora desferida.

Nunca praticara nenhum arte marcial, mas a vida nas ruas, apesar de dura, era uma ótima professora.. E apesar de não deter alguma técnica correta, conseguiu acertar um belo chute bem no focinho do desgraçado.

Uma pena que seus músculos nunca haviam se mostrado como armas valorosas, e além disso, o poder de seu sangue –o qual era fraco, diga-se de passagem- mostrou-se insuficiente quando comparado com a devastadora e natural brutalidade daquela fera.

E por isso o único efeito que seu chute teve foi deixar aquele lobisomem ainda mais furioso, fazendo-o soltar um rosnado profundo e repleto de ódio. Ele assumiu então novamente a sua forma de combate. Não esperaria por seus dois companheiros. Não, a diversão seria só dele. Iria acabar com aquele vampiro sozinho.

Deixou seus passos mais lentos, não tinha pressa. Os outros dois, que haviam insistido em permanecer na forma crinos, provavelmente demorariam para alcançar-lhes. Aquela presa era só sua, e por isso seus olhos brilhavam em um carmesim profundo e perverso.

O vampiro olhou para o céu. Queria ver a lua antes de morrer completamente, mas a densa copa das árvores não lhe permitia.

O lobisomem se aproximou ainda mais.

Uma patada.

Precisava apenas de uma patada bem dada, e suas afiadas garras desfigurariam a cara daquele vampiro, e dariam fim à sua miserável e maldita existência.

Uma patada apenas, e tudo estaria acabado para o pobre Caittf.

Uma patada.

Uma patada que acertou em cheio o peito de Águia, cortando-lhe sem dó, dando origem a mais cicatrizes para o já tão marcado corpo daquele Garou.

Com uma velocidade e um salto que desafiavam o machucado em sua perna, Águia conseguiu não apenas alcançá-los, mas ainda defender com seu próprio corpo a frágil face de Carlo das poderosas unhas do outro.

Era a primeira vez em toda sua vida que Carlo era defendido.

E era a primeira vez em toda sua vida que Água se arriscava deliberadamente para proteger alguém.

E provavelmente era por isso que aqueles dois estavam tendo grandes dificuldades para entender porque Águia estava fazendo aquilo.

Ryoko
Enviado por Ryoko em 11/02/2010
Código do texto: T2081455
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