VOCÊ SERIA CAPAZ DE AMAR ASSIM? (conto extraído romance ESMERALDA OU TURMALINA, da autora, ainda não publicado.

Doçura, luz, amplitude, eu mergulhado na profundidade azul dos seus olhos que parecia colorir o mar de mais azul, de maior paz. Procurei algo que os anuviasse, uma tristeza disfarçada, um desencanto... Busca inútil. Maísa Paraplégica há quatro anos, a pobre moça tinha dificuldades. Estranhamente era a moça mais alegre que eu conhecera, conseguia rir-se das situações fora de seu controle. Maísa escrevia poemas, pintava lindos quadros a óleo. Poetisa e artista-nata.

Eu, enquanto médico-residente em um hospital da rede particular, conheci Maísa. Na época, acometida por pneumonia, encontrei-a internada. Via-a por muitos dias. Conquistou-nos a todos por sua graça e beleza. Cativo de sua amizade, não mais pude abster-me de vê-la, de sorrir com ela.

A moça tivera muitos amigos, no entanto, sua deficiência a restringiu, impedindo que os acompanhasse em suas manifestações juvenis. Vivia em uma linda casa, em companhia da mãe, num lugar nobre da cidade.

Vejo o mar e a contemplo, naquela longínqua tarde de primavera... Que força sobrenatural confere a ela tamanha alegria e suavidade? Justo ela que tanto perdeu e nem parece dar-se conta. Difícil separa-me dela. Um breve período, a mim, parece-me uma eternidade.

Seus olhos sorriem antes de o sorriso aflorar seus lábios e, suas mãos, apertando às minhas, falam de saudade antes que seus lábios pronunciem uma única palavra.

Certa vez fui ao seu encontro, feliz ao revê-la. Naquele dia, um quê de tristeza substituiu a alegria que eu, normalmente sentia ao cruzar àqueles portões que já denunciavam a sua proximidade. Ao avistá-la, percebi que algo errado acontecera. Maísa estendeu-me os braços, buscando no meu abraço conforto e proteção. Sua mãe encontra-se enferma e com pouca chance de recuperação. Fazendo o meu papel amigo, confortei-a. Como médico prometi inteirar-me da situação real de sua genitora. Afastei-me dela e a levei comigo em pensamentos. Eu vira lágrimas borbulharem daqueles imensos olhos azuis. Ainda assim, senti a sua força num momento tão angustiante. Maísa perdeu a mãe. Um duro golpe. Mas, a fé sempre fora o seu cajado.

O tempo passou...Crescia em mim a admiração por aquela frágil/forte criatura. Passado um tempo, fui para o Japão, especializar-me. Doeu separar-me de Maísa. Ela deu-me forças para que partisse, prometeu-me ficar bem e que nos falaríamos, trocaríamos correspondências, e, finalmente disse que o tempo haveria de passar logo, que breve nos encontraríamos.

Foi preciso distanciar-me fisicamente de minha amiga, para que eu compreendesse que a amava. Mesmo compreendendo, nada falei e conversamos como bons amigos, a milhas e milhas e milhas de distância. Eu me conformava ouvindo a sua voz ao telefone ao mesmo tempo em que me preocupava com o meu regresso. O que seria olhar Maísa com outros olhos que não os de amizade? Como esconder um sentimento que eu descobrira forte e latente? Como declarar o meu amor a um anjo?

Eu sempre soube que Maíra tinha um sonho. Mas, eu desconhecia o seu enredo. Falou-me enquanto eu estive ausente. No entanto, por carta ou telefone, nega-se a dizer-me do que se tratava. Ainda que eu insistisse, negava colocar-me a par de seus projetos. Dir-me-ia quando eu prometesse abraçar com ela a sua causa.

Seus olhos novamente se refletindo nos meus, era tudo que eu sonhava. Mais um tempo de saudade e outra vez eu cruzei os portões de sua casa. Mais alguns passos e nos reencontraríamos. Com intensa emoção eu podia pressentir os seus dedos entrelaçados aos meus, enquanto a sua boca continua muda pela emoção do nosso reencontro. Meu coração faltava sair do peito, ao antever o sorriso em seus olhos. Encontrei-a palpitante e nosso abraço pareceu-me não precisar ser desfeito, nunca. Silenciosamente eu palpitei de amor. Conversamos horas intermináveis. A tarde se fez noite.

Despedi-me de Maísa e saí, após ter prometido que a levaria, no dia seguinte, logo cedo, para sentir o mar. A moça prometeu inteirar-me dos seus sonhos e da maneira que eu efetivamente poderia contribuir para realizá-lo. Aquela noite, passei-a quase insone. Pela manhã, estávamos os dois. Eu, novamente me perdia na contemplação de três azuis: o azul intenso do céu, o calmo azul do mar e o azul dos olhos de Maísa que sempre pareciam contemplar apenas o infinito. Nesse momento eu pensava como podia conservar-se tão serena uma jovem depois de tantas perdas?. Fui surpreendido por Maísa, perdido em meus pensamentos. Maísa sugeria que eu a levasse a um determinado lugar, indicado por ela, onde eu começaria a entender a sua vontade e vocação.

Ao chegarmos, surpreendi-me. Acabamos de adentrar a um velho casarão que abrigava um orfanato. Todas as pessoas presentes acercaram-se de nós. As crianças rodearam-na e cobriram-na de beijos, flores e versos. A felicidade transbordava nos rostinhos inocentes dos pequenos órfãos. No fim da tarde, ao nos retirarmos, Maísa, enfim, inteirou-me de seus projetos.

Maísa começou revelando-me que aquele casarão pertencera à sua tia-avó, que generosamente emprestara àquela entidade filantrópica. Que, após o falecimento da proprietária, os herdeiros diretos, exigiam o imóvel, ameaçando, inclusive, reavê-lo judicialmente, se preciso fosse. Maísa terminou dizendo que Deus lhe havia dado muito e que se sentia no dever de dividir com aqueles que nada tinham. Continuou dizendo-me que achava a sua casa muito grande ainda mais que se tornara, por força do destino, a única moradora. Depois de seu discurso cristão e humanitário, explicou-me de que modo eu me encaixaria, se assim eu o quisesse, aos seus projetos, vida afora.

Maísa queria transformar a sua linda casa ladeada por imensos jardins em um orfanato. Prestaria assistência àquelas crianças com risco de não terem para onde irem, se precisassem sair do casarão e abriria as portas para qualquer criança que precisasse do amparo de um lar, propiciando-lhes uma vida digna. Assim, preparar-lhes o caminho, sedimentando a fé e a esperança em seus pequeninos corações.

Maísa acreditava que, com todos os cuidados e no tempo propício, as crianças abrigadas transformar-se-iam em cidadãos responsáveis e poderiam enfrentar a vida em melhores condições.

Maísa falava, falava...Quanto mais ela expunha suas idéias e ideais, mais eu me convencia de que eu amava a um anjo.

Finalmente, colocou-me a par do meu papel em grandiosa obra, dizendo-me que o seu sonho só se tornaria realidade se eu comungasse de suas idéias. Naquele instante, a sua causa se fez nossa.

Não posso dizer que não enfrentamos muitas dificuldades. O sorriso de Maísa, sua força e sua fé, fizeram com que vencêssemos, paulatinamente, cada obstáculo.

Eu, dividia-me entre o meu trabalho no Hospital e o atendimento ao Orfanato e, com a ajuda de Deus, houve uma triplificação de nossas forças.

Gerações se sucederem sob o nosso atendimento. Houve aquelas que ao se tornarem adultas seguiram melhor preparadas o seu caminho. Muitas ficaram conosco e abraçaram o nosso ideal em retribuição ao carinho que lhes foi dado.

Quanto a mim, calei o meu amor de homem por aquela mulher. Em contrapartida, deixei fluir o amor de amigo e irmão.

Ainda que espiritualmente nos amássemos, fomos, Maísa e eu, pais de todas as nossas crianças. Penso que teria que assim ser. Estaria escrito em algum lugar que esse seria o nosso relacionamento.

Maísa se foi deste mundo há alguns anos. Eu tenho fé de revê-la. Outra vez hei de perder-me na contemplação daqueles olhos azuis bem comparados a um doce rasgo de mar.