Na alegria e na doença: Diário da força de um amor

 
Quando conheci Clara e Almir percebi que formavam um casal incrível.
Tinham uma sintonia que é difícil resguardar após tantos anos de convivência. Ela com cinqüenta e tantos e ele as vésperas de completar sessenta e alguns.

Andavam de mãos dadas e namoravam como se o tempo não tivesse passado. Brigavam como   qualquer   dupla coabitando a mesma casa. No entanto percebia-se que sempre alguém cedia e a balança se equilibrava.

Caminhavam todos os dias, tinham amigos por toda cidade, participavam  de festas e reuniões.
Nunca estavam parados ou reclamando da vida, pelo contrário, todo dia inventavam alguma coisa para fazer.

Simpáticos e divertidos, foram meus primeiros amigos quando decidi deixar a cidade grande e vir morar no interior.
Com eles aprendi a sair de casa cedinho e ir até a
padaria tomar café da manhã. Exatamente.
Café com leite e pão recém saído do forno no local
é mais gostoso. Sempre aparece um e outro para puxar um papo e de repente vira um café comunitário com todo mundo falando e rindo.

Gostava de escutar as ‘’histórias das antigas’’ de Almir. Quando tomar um uísque com os colegas da repartição na sexta após o expediente, servia para relaxar e decidir o programa. Independente de qualquer coisa, terminar a noite jantando no restaurante  Capella na Lapa já havia se tornado um hábito. Sagrado. Todos se encontravam para contar as novas e tomar a saideira.

Ele sabia onde comer bem  em qualquer lugar da cidade. Contava com saudades do bife do Lamas, do bacalhau do Amarelinho, dos sanduíches de lombinho com abacaxi do Cervantes... E da comidinha alemã do Bar Brasil. E se algum outro ficou de fora a culpa é da minha memória.
Não que estes lugares não existam mais, eles estão em plena atividade. Só não são mais freqüentados pelos amigos de Almir. Grupo animado que aos poucos foi sumindo  e perdendo contato. Destas reuniões ele sentia saudades, a comida deliciosa era pretexto para falar dos assuntos da época.

 Ele descrevia os ternos, sapatos e lojas com um precisão incrível...Contava que as irmãs brigando para engomar as camisas que ele usava no dia a dia. Ser boêmio tinha suas regras, era preciso ter estilo.
E ser elegante significava muito mais que usar roupas da moda.

Imaginava a gafieira Estudantina repleta de casais girando ao som das bandas e cantores que deixaram saudades. Almir sempre falava no Rei da Voz, Francisco Alves, na beleza de Wilza Carla e em como Aracy de Almeida cantava divinamente. E o tradicional Bola Preta? Este clube que ainda é sucesso todo carnaval, cobre as ruas do Rio de Janeiro  formando um mar de foliões em preto e branco. O cordão do Bola Preta era uma referência do genuíno carnaval e sempre lembrado com saudades na voz de Almir.

Foi em um baile que ele conheceu Clara, linda e orgulhosa. Fingindo não dar a mínima para os galanteios:

- Venci no cansaço.  De tanto me humilhar esta mulher caiu de amores por mim. Olha só...Ate hoje é apaixonada...Não me dá um pingo de sossego...Me ama loucamente- Almir adorava contar a forma como haviam se conhecido e a dificuldade para conquistar a companheira.

Clara esclarecia que não tinha sido bem assim...Na verdade ele vivia rodeado de belas mulheres e fazia o maior sucesso onde chegava. Foi apenas o velho truque de ignorar e esperar o resultado.
Eles formavam um casal que sempre soube  se divertir. Tomaram muitos porres juntos, viveram uma época incrível  e passaram seus apertos também...Porque na vida nem tudo são flores, mas tinham recordações engraçadas e felizes.

Eu adoro o Rio antigo e  escutar as versões de Almir sobre fatos históricos era um caso à parte: Floreios em enxertos criativos eram típicos e o caso rendia...Simplesmente me deliciava com tudo e o que menos importava no final era a verdade.

O dia amanheceu mais triste quando soube que Almir havia tido um AVC e estava hospitalizado em estado grave. Clara era a imagem da dor e desespero. Tinham tanto em comum...Ela não imaginava a vida sem o companheiro de sempre.
Foram semanas angustiantes e cada pequena melhora era celebrada com muito carinho. Todos torciam para que Almir driblasse a doença e partisse para a vitória.

 Clara sempre acreditou na força de vontade do marido. Sofreu, chorou, escondeu a dor e embarcou na luta pela recuperação dos movimentos e todas as complicações que restaram.

Ontem após quatro meses vi os dois em um restaurante. Ele ainda não movimenta o braço direito,  mas está indo muito bem com o esquerdo. As vezes tropeça, todavia, está caminhando devagar...e para alegria geral, continua contando suas histórias com a mesma graça.

Penso em outras pessoas que como Almir, foram felizes em suas recuperações e tantas outras que ainda penam com graves seqüelas. Cada um tem uma história diferente e não há como fazer comparações. Mas com certeza o amor e carinho neste caso, foram peças fundamentais.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 29/03/2009
Reeditado em 29/03/2009
Código do texto: T1512693
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