A reconstrução do novo, ou como era bonito seu sorriso

A reconstrução do novo, ou como era bonito seu sorriso. Assim foi. Assim aconteceu. Aconteceu de acontecer um acontecido que mexeu e tresmexeu com muita gente. Foi assim, sem nada especial, na verdade, nada especial, um casin assim, coisa simples, mas que mexeu com muita gente.

Lá nas bandas donde a onça não chega e saci cruza as pernas por riba do pescoço, foi lá, bem lá, longe, bem longe, que aconteceu o acontecido. E pois é, nunca mais nada foi o mesmo. As coisas ficaram diferentes. Estranho de muito estranhamento. Gato não miava, cachorro não latia. Galinha, galava. Galo, botava. Um ribuliço medonho. Teve gente que achou que era cão! Alguns era mesmo, de ruindade. O mundo parecia virado, des avesso, sabe? Do contrário. Num sei explicar, mas nada foi o mesmo.

A dona, a dona da budega, da budega do Osmar, quer dizer, se falava budega do Osmar, mas o Osmar era Antônio e Antônio não era dono. Esclarecido isso, que a budega do Osmar que era Antônio e que não era dono, então, esclarecido isso, a dona da budega, a dona mesmo, dona Tonha, costuma deixar dizer, quer dizer, oferecer, pro santo da cidade, todo domingo, um almoço. Não um almoço com arroz e feijão só não. Era fartura. Tinha muito arroz e muito feijão, isso tinha sim, mas tinha torresmo, macaxeira, carne seca, muita carne seca, enfim, tinha tanta coisa, mas tanta mesmo, que falavam que com toda aquela comilança, o santo ia ter fazer promessa, pra outro santo, pra imagrecer. Seu Donato, um véi muito astuto, falava que o santo estava tão obeso que invés de ser o santo do obséquio ao amigo, ia passar para santo do por obséquio, amigo, come mais não. Falava e ria e peidava. De modo que o sujeito era chamado de o Buzina. Ele não gostava, não.

Então, voltando ao assunto.

O acontecido aconteceu num dia de chuva. Era um dia nunca visto antes. Tudo escureceu. Tudo ficou noite. Raios estouravam tão forte que o padre, o padre Bento, sim ele mesmo, o padre já lembrado noutras histórias. Pois foi. Chovia tanto que a rua parecia mar, mesmo pra eu que nunca vi o mar, achei igualzinho o mar: tudo cheio de água. Eu não vi, mas correu às soltas, é, na boca das pessoas, eu não vi, mas correu às soltas que até peixe foi visto no meio das água.

Aconteceu o acontecido. Estranho de muito estranhamento foi Doninha, filha de Januário, o coveiro, ele próprio já enterrado, que disse que nas água também se viu um peixe-mulher. Claro que ninguém deu crendice! Imaginar um troço desse, peixe -mulher, é coisa de maluco, de doido mesmo, falou o prefeito, sim o prefeito, ele mesmo, que um pouco mais jovem foi morar numa clínica de cabeça, um negócio chamado clínica psiquiatra. Eu não sei bem o que é isso, clínica psiquiatra, mas o prefeito disse que peixe -mulher é coisa de doido, e doido ele entendia, completava a sentença. O estranhamento não durou muito, somente o tempo das águas abaixar. Demorou 4 dias, um diluvo, segundo a opinião do professor. O professor era professor não porque sabia ensinar as contas, as letras. Era professor porque sabia tudo, mais que tudo, da roça. O homem sabia o tempo da florada, da colheita. Sabia que planta era boa, qual fazia mal. Era mesmo um professor. Então, se o professor falou que foi um diluvo, foi.

Foi despois desse acontecido, do diluvo, do dia que a rua parecia mar, que outro acontecido aconteceu, outro estranhamento estranho, tão estranho, que a viúva do seu Januário, o coveiro, ela, coitada, resolveu que não queira mais vive. Resolveu que estava cansada dessa vida, então, resolveu que não queira mais vive. No dia que resolveu isso, o prefeito declarou luto. Dona Nona, a viúva, era gente muito das boa. Ajudava na igreja, pra escola doava, todo, mês, os produtos de limpeza. Fazia visita no hospital até pra gente que nem parente era. Dona Nona era muito boa. Então todo mundo concordou que o prefeito deu dia de luto. Dona Nona foi velada no salão da igreja. Inté teve uma discussão: o padre queria velar na igreja, o prefeito, na prefeitura, o vereador, presidente da câmara municipal, queria velar na câmara. Sabido é: dona Nona não ia ficar sem lugar pra despedida, isso não, gente não faltava pra querer velar, inté a madame Flor do Campo, ninguém sabe o nome, só conhecem como Flor do Campo. É a madame das meninas da casa especial, é!, a casa donde só vai autoridade, o prefeito, o juiz, o promotor; chegaram até dizer que inté o sacristão era visto lá, o padre, não, nunca ninguém disse que viu o padre, e se viu, não falou. Dizem que praga de padre pega. E foi, depois de muita conversa que ficou decidido: dona Nona ia ser velada no igreja, e foi. Esse acontecido foi tão importante que nunca um acontecido, nem no dia que o prefeito foi pego com a amante, dona..., é melhor deixar pra lá, que teve passeata pra tirar o prefeito. Pois sim, nem esse acontecido foi mais importante que a dona Nona. A igreja ficou lotada. Veio gente de outros lugares. Dona Nona era internacional, disse Josias, o filho bastardo do juiz. O nome dela era conhecido pra léguas da cidade, ela era internacional, repetia o bastardin, na linguagem do povo.

É verdade que o povo fala muito. O povo é esse retumbante megafone que fala aos quatro cantos e fala sem pensar de onde vem o que fala. Às vezes age como uma criança que espalha o que ouviu, não porque acredita, mas para ver o alcance da brincadeira.

Então, tudo aconteceu de o acontecido ter sido dessa maneira. Um rebuliço de feito e efeitos que ninguém mais sabia o início da história. Tudo retomou os trilhos, quer dizer, o seguimento do inusitado (gostei dessa palavra, por isso, uso desde que ouvi), o seguimento do inusitado ganhou outro personagem. Aconteceu com a chegada de Dom. Dom era um sujeito pra lá de feio e mais pra lá de carrancudo. Sempre de cara amarrada, de poucos amigos, sempre pronto pra uma briga, um risca faca. O sujeito era assim: um cara nascido pra briga, sem amigos. Era medonho. Quando ele passava, inté o ar parecia mudar de cheiro, sei lá, ficava um rebuliço esquisito de medonho . Qualquer conversa, brincadeira, a missa, tudo, quando ele passava, parava. O sujeito despertava calafrios de medo. Se dizia, até, e claro, longe dos ouvidos dele, que o fulano tinha tratado com o coisa ruim, o cramunhão, enfim, de tudo se dizia, nada se provava; o fato mesmo, o que interessa, é que no dia do acontecido, da chegada do risca faca, a cidade e as pessoas, quase que como proteção, passaram ficar mais tempo na igreja. O padre Bento, ele mesmo, rezava tanto que precisou pedir auxiliar. Nada foi do mesmo jeito. De modo que inté o prefeito transferiu a prefeitura pra Igreja, " pra ficar mais perto do povo". A câmara municipal pensou em pedir "impitiman" do prefeito. Falava que não podia transferir a prefeitura sem aprovação de lei. Mas, ela também foi pra igreja, e também não podia, então ficou calada.

Aconteceu de acontecer, sem explicação, sem anúncio, sem um nada de propaganda, que depois de três semanas, assim, do jeito que veio, foi, aconteceu de acontecer a cidade acordar diferente das três semanas quando chegou o fulano. A cidade acordou com os pássaros cantando, as galinhas cocoricando, as vacas mugindo. Inté o cavalo Felisberto, em homenagem ao médico querido da cidade, deu de relinchar. Aconteceu que Dom tinha saído da cidade. Boatos surgiram de todos os cantos, de todas as bocas. Versões saltavam como pipoca na panela. Mas o que todos concordavam era que a cidade ia voltar a ser o que era.

O prefeito, de olho na reeleição, não deixou por menos: anunciou que era preciso reconstruir a cidade, trazer de volta sua alegria, trazer de volta o sorriso nos rostos das moças, dos moços. Era preciso esquecer o que passou. Todos concordaram. Inté os bichos, a seu modo, deram vivas. Tudo voltou a ser como antes, sem por, sem tirar.