A arte do encontro

Houve um tempo em que não havia celular e os transeuntes caminhavam olhando para frente, se entreolhavam com facilidade e conversavam nas recepções de clínicas, nas paradas de ônibus e, até mesmo, dentro das conduções. Relembro um fato, perdido no passado não tão distante, que ocorreu dentro do ônibus quando eu estava indo para a escola. Duas pessoas de modos sociais distintos se encontravam sentados no mesmo banco do ônibus. Um deles, um idoso senhor, moreno claro, de barba branca bem-feita, careca, vestido com uma camisa clara bem-engomada, de mangas compridas e trazia um livro nas mãos. A outra pessoa era uma senhora de cor parda mais escura, aproximadamente quarenta anos, com vestimenta simples, cabelos e pele maltratados, que falava pelos cotovelos, com um timbre estridente:

“Ai meu Deus! Que calor! Este ônibus está um forno!

Olhou para o vizinho indagou: “O senhor tem horas?

Em seguida, sem dar tempo para a resposta,

“Não precisa nem dizer...eu já vi. O seu relógio mais parece um despertador de tão grande.”

O homem, calado, esboçou um sorriso sem graça. Ela continuou a falar:

“Sabe? Eu adoro conversar… conversando se faz amigos, não é?”

Então, o homem responde lendo o seu livro de provérbios que agora estava aberto:

“A vida é a arte do encontro, disse Vinícius de Moraes…. E, sobre o mesmo tema, Eli Behar escreveu assim... Quem tem um verdadeiro amigo pode afirmar que tem duas almas.” Concluiu o senhor, que demonstrava uma sabedoria imponente.

“Ele e o senhor estão certos. Meu nome é Corina.”

“Prazer” ... ele respondeu sem dizer o seu nome. Em seguida, ele pediu para segurar os livros de uma estudante que estava em pé e tentava se equilibrar das trepidações com apenas uma mão. Também pediu para segurar os embrulhos de uma outra moça que estava próxima dele. Corina cochichou ao seu ouvido:

“O senhor é cavalheiro, hein!...Ou está dando uma de conquistador?”

Ele respondeu:

“A bondade é a força do fraco”.

Depois de uns dez minutos, a moça agradeceu a gentileza e se dirigiu à catraca do ônibus para pagar a passagem. Corina de novo, aproximou-se do parceiro de banco e sussurrou:

“Talvez ela pague a passagem do senhor.

Outro provérbio como resposta:

“O prêmio de uma boa ação é tê-la praticado, já dizia Seneca.”

“Estou muito suada porque o que eu fiz hoje nem burro-de-carga teria feito.” Ela falou despretensiosamente.

“O hoje vale por dois amanhãs, frase de Francis Guarlis.

“Espere, o senhor aprendeu todas estas frases? Que inteligência!”

Corina, atenta ao movimento dos passageiros dentro do ônibus, começou uma confusão com uma jovem que tinha o dinheiro incompleto para passagem e teve que descer sem pagar. Ela iniciou uma zombaria, sugerindo que a jovem era caloteira. Quase as duas se agarravam em luta corporal. Neste momento, o senhor virou-se para Corina e disse:

“Se o falador chegasse a compreender o quanto é insuportável, passaria a viver calado... frase de Alberto Montahão”.

Corina perdeu a paciência e gritou:

“Olha aqui, seu velho gagá, vá para baixa-da-égua!

Sem se alterar, o vizinho disse:

“E não há espelho que melhor reflita a imagem do homem do que a suas próprias palavras... já dizia Luis Vives.”

Ambos se calaram por um tempo. Mas a viagem era longa e a mulher, matraca como ela era, não suportou o silêncio:

“O senhor me desculpa? Eu estava de cabeça quente. Depois que eu gritei com o senhor, caí na realidade e me veio um arrependimento. Acho que foi porque o senhor ficou calmo e não se zangou comigo...”

“A verdadeira tranquilidade nos é dada pela razão...Sêneca.”

O silêncio prevaleceu entre os dois e estava sendo quebrado apenas pelo barulho do ônibus. Os demais passageiros também resolveram poupar saliva, exceto Corina:

“Para onde o senhor está indo?

Neste momento o senhor se aprontava para deixar o ônibus e respondeu:

“Eu vou para casa...cada um em sua casa e Deus na de todos!”

Ela vibrou:

“Essa eu gostei! Foi bonito. Quem disse?”

“É um adagio popular, minha senhora.”

“Vixe, que cara de nome esquisito!

O calmo senhor fez um ar de riso, educadamente levantou-se e se despediu com um balanço lento da cabeça.

Corina, quando o viu se afastar, virou-se para uma passageira que estava no banco detrás, piscou um dos olhos e com um tom de brincadeira, disse:

“Já vai é tarde! Antes tarde do que nunca! Dizia minha finada avó”. Alguns indignados, outros seguravam os sorrisos.

Se fosse hoje, talvez não aconteceria este relato, porque muitos não teriam escutado a dona Corina. Hoje vive-se hipnotizado, todos olham para as próprias mãos de onde se aponta um instrumento luminoso encantador chamado celular e, às vezes, para piorar a situação de isolamento social, ainda há fones tapando os ouvidos!

Julio Augusto
Enviado por Julio Augusto em 01/12/2023
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