História de certo casarão solitário

Pois pode acreditar que dou meu veredicto de que é uma história verídica...

Antigamente, quando as ruas da cidade ainda eram em barro e os grandes pés de algaroba tomavam conta dos terreiros e faziam sombra nas calçadas, onde as pessoas no fim da tarde colocavam suas cadeiras para aproveitar o suave vento que aos poucos esfriava o tão quente dia, acendiam seus cachimbos, ligavam seus rádios de pilha, debulhavam o feijão recém-chegado da roça em longas cantorias e as mulheres mais velhas catavam piolhos nas crianças passando-lhes o óleo do coco e o pente de arraia... Quanta reclamação! Quanta gritaria... Reuniam-se os vizinhos a saudar quem passava e em dedinhos de prosa, passavam a limpo a correria do dia. Do outro lado do rio que corta a cidade existia um grande casarão que os mais antigos chamavam de casarão solitário. Monumento austero, construído em pedra rústica, grandes janelas, largas portas de madeira grossa e em volta alpendres. Um antigo casarão com sótão, sobrado, um jardim esquecido e por trás enormes carnaúbas. Ninguém podia se aproximar de lá e isso aguçava a curiosidade dos mais afoitos, os mistérios que rodeavam aquela tão estranha família.

Esse casarão pertencia a um casal de grandes bens. A mulher branca, mais tão branca que parecia ter sido feita do próprio leite, ares de sinhazinha, belos vestidos e bons modos, os cabelos sempre bem penteados apesar dos olhos mortos, já o homem preto que só vendo para crer. Mãos compridas e calejadas, roupas modestas, porém sempre bem limpas. Criatura rude e de poucas palavras muito disposto ao trabalho braçal. O que se sabe é que ele tinha sido um antigo trabalhador das terras do pai de sua senhora, apaixonaram-se e resolveram fugir para viver esse grande amor proibido terminantemente pelos pais dela, um antigo e poderoso fazendeiro dono de mais da metade da cidade de Cruz de Cosmo.

Sabendo da fuga dos dois, o fazendeiro esbravejou, soltou o verbo em cólera por tamanha decepção pela desfeita da filha, uma injúria, uma afronta, um agravo que lhe fazia doer o coração, mas nada fez para impedir. Em contra partida, a mulher do fazendeiro, tal senhora portuguesa, olhos grandes, arregalados, dura, rosto seco e comprido, o cabelo preso em coque com frisos e gestos comedidos embora os dedos da mão direita não parasse de repetir as passadas das contas do terço como se tivesse a rezar constantemente. Beata fervorosa, devota de São Cipriano, rezadeira de homens e bichos, amaldiçoou a filha e o negro fujão, em perjuras, jogando-lhes pragas até a última geração por eles dois postos em vida. Que o útero emborcasse, que o leite dos seios secasse e que a dor do parto fosse pior que as dores de Eva no Paraíso depois do pecado original.

Dizem as más línguas que essa mulher era tão poderosa em suas preces que nesse dia, um vento forte, mais tão forte se alevantou junto uma tempestade de poeira tão aterrorizante que foi três dias e três luas para parar. Morte de cabras leiteiras e vacas em dias de parir; vou de pássaros sem saber onde pousar e um encontro inesperado do sol e da lua fazendo a terra toda escura por mais de 72 horas. No mesmo instante, a sinhazinha que já carregava na barriga o fruto do amor proibido, foi acometida de uma hemorragia que só vendo para crer o sangue que se misturava a roupa molhada, descendo pelas pernas e tornando vermelha a terra que por hora assentavam. Eram tão altos os gritos de dor que chegava a fazer pena em quem passava e ouvia-a gritar. Gritos que se misturavam aos grunhidos do rasga mortalha que nesse instante passava por cima do casal que se abrigara debaixo de uma oiticica encontrada no caminho.

Choro e dor e praga e maldição e nascimento marcaram o início da tortuosa vida desses dois infelizes. Não sabiam os fazendeiros que o pobre infeliz empregado de sua fazenda encontrara uma botija que guardara todo o tempo até ter a certeza do amor de sua amada. Botija cheia de jóias valiosas, um tesouro incalculável: anéis, pulseiras, braceletes, moedas de ouro que o avô do homem aparecendo em sonho lhe fez sair de casa em silêncio, a meia-noite, para cavar um buraco tão fundo e encontrar a tal botija, só vindo a usar o tesouro encontrado quando encontrasse a mulher dona do seu coração se não o encanto se desfazia. Veio parar por aqui, comprou a terra do outro lado do rio e ali fez vida. Plantou, colheu e isolou toda sua família do convívio de todos, fora o padre, ninguém era mais bem vindo a sua casa. Do primeiro filho, mais 12 vieram, um total de 13 filhos, coitados, todos vítimas da maldição da sogra. Quando não, com pés tortos parecendo a caipora, caroços nas costas, corcundas, um papa-figo e um lobisomem.

Até que, da última vez que a mulher engravidou conta todos que, que a mulher devota de Santa Bárbara, ele puxando a religião dos antepassados, chegado a um toque de tambor, devoto de Iansã, prometeram, cada um em sua crença que, livres da maldição, construiriam uma torre em casa e manteria ali para o resto da vida o novo fruto como oferecimentos a santa, ou sei lá o nome que se diga. E assim aconteceu. Nascendo uma filha normal, diferente dos outros filhos, enquanto vivia os primeiros dias no convívio de todos, o pai, trabalhou duro durante um ano, de dia e de noite para construir aquela imensa torre em casa. A partir do primeiro ano de vida, a menina batizada com o nome de Rute foi enfurnada e de lá nunca mais sairia. Passaram dezoito anos e ninguém nunca que viu tal criatura, o que se sabia por alguns que assuntava era que tinha se transformado numa linda moça, mas tão linda que parecia princesa de conto de fada. Cabelos compridos e cacheados, pele morena, mãos delicadas e bem torneadas, corpo perfeito, meiga, doce. A moça passava os dias lendo e fazendo bonecas de pano presa em seu quarto sem conhecer a luz do dia nem o escuro da noite.

Certo dia apareceu por essas bandas um jovem padre, mais muito jovem mesmo que viria a substituir o já caduco vigário Virgílio, mais que vigário! Senhor das letras, das ciências e sabedor do nome de todos os cristãos por aqui nascidos e batizados por ele. Esse rapaz franzino, fala mansa, todo vigor de uma juventude, passou logo a freqüentar o casarão temido por todos e dizem as más línguas que esse padre jovem quando viu pela primeira vez a bela Rute, seus olhos brilharam tanto que mais pareciam duas tochas de fogo. Amor à primeira vista, como se diz nos romances.

Em uma das visitas, aproveitando a ausência do dono da casa e a convalescença da branca senhora, adiantou-se logo em visitar a bela dama, ansioso em vê-la, abusando da liberdade que lhe convinha e levou-a a sair do quanto sem o consentimento de ninguém para ver a luz do sol como era seu desejo. A pobre donzela sem estear desceu lentamente as escadarias da torre em que vivia e por debaixo da porta avistava uma forte claridade que já te emocionava os olhos, quando aos poucos, lentamente, o jovem padre abria-lhe a porta de acesso a um mundo até então desconhecido pela jovem. Quando a bela Rute caminhou, atravessou a porta que lhe separava do mundo desconhecido, respirou um ar diferente, sentiu a claridade do sol confundida com o escuro de seus olhos, uma coisa estranha passou a tomar conta do seu corpo que nem se quer sabia explicar o que estava acontecendo, quando de longe, um grito de reprovação estalava no ar, um agouro toado em não, gritado com todas as forças de um pulmão do velho pai devoto e fervoroso com suas crenças, mas de nada adiantou tamanho esforço, pois no mesmo instante, um raio vindo sabe lá de onde, confundindo-se com o eco do grito do pai, acertou em cheio o meio da testa da jovem menina bela moça, como sem explicação, abriu-lhe uma figura estranha, algo parecido com um olho tridimensional que a fez desfalecer nos braços do jovem padre amante. Esse ato ensandeceu o pobre rapaz que disparado em uma carreira, saiu a pinotear por terras adentro, rasgando-lhe a batina e chicoteando a si mesmo, que passaram a chamá-lo de cavalo de xangô e em noite de lua cheia, tem que ouça os rinchados do homem-cavalo próximo ao canto que a jovem Rute fora enterrada. Neste mesmo local, uma espécie rara de xiquexique nasceu aflorando uma rosa de formato de estrela multicolorida que se fecha durante o dia e abre durante a noite.

Já seus pais, sem saber o que fazer, fecharam a casa e partiram, não se sabe para onde e a casa permanece aí, aos olhos dos curiosos que buscam entender o porquê de tão trágicas histórias de vida.

Só sei que dou fé, quem quiser que acredite quem não quiser que não acredite, mas se quiser comprovação, em noite de lua cheia, vá à beira do rio, ande para trás, faça a oração do pai nosso aos avessos e tenha coragem e espere para ver o que acontece, depois, querendo, pode me contar que dou meu veredicto de verdade.