O louco

- Entra no carro, filho da puta.

Caralho. Tô sendo assaltado. Mas também, Porto Alegre. Alguma coisa me dizia que mais cedo ou mais tarde ia acontecer comigo. Aqui já aconteceu com todo mundo. Ainda essa semana atiraram de 12 em uma guria que estudava odonto na UFRGS. Abriram um rombo na cabeça dela. Dezenove anos. Numa ruazinha ali perto da Ramiro. Acabaram não roubando nada. Mas mataram. Hoje tá muito calor. Porto Alegre é a casa do inferno em janeiro. E tá muito violenta. Depois que os bala na cara chegaram, matam por qualquer coisa. Bom mesmo era quando o Paulão comandava do Morro da Tuca. Tem alguém com uma arma encostada nas minhas costas. Deve ser alguém dos bala. Será que ninguém tá vendo? Um calor interno toma conta de mim.

- Segue caminhando e não faz mais nada. Tu vai entrar naquele carro que tá estacionado.

Parece que conheço essa voz. Um português limpo. Voz de corretor de imóveis. Penso na minha carteira. Levo a mão levemente ao bolso de trás. Ela tá ali. Eu sempre tive medo de perder a carteira. Dá uma burocracia da porra se isso acontece. Cancelar cartão. O cartão demora pra vir. Dar parte na polícia. É uma merda. Perder o celular também é uma merda. Certamente me levarão para uma agência bancária e farão eu sacar uma grana. Já ouvi falar de assaltos assim. Mas estou seguro. Dizem que o medo é mito mais uma ansiedade. Vou sacar todo o dinheiro do mundo se precisar. Vou ser simpático com o assaltante. É essa a conduta mais correta nessas situações. Putz. Tem alguém sentado ao volante do carro. São dois. Esse não me olha. Parece tímido. Jeito de pai de família. É mais gordo. Eu não gosto de gordos. Entro no banco de trás. Hoje meu dia foi uma merda. Não que tenha sido ruim, mas foi igual a todos. Monótono. Mais do mesmo. Planilha, processos, café e duas cagadas. Como é bom cagar remunerado. Todo dia é igual. Ao menos tem a Carlinha. Uma gata. Só de ver ela pra lá e pra cá o cara se anima. Tem uma bunda.. e é gente fina pra caramba. Tirando a Carlinha, tudo uma merda. Mas eu gosto. Quer dizer, suponho que gosto. Fazem sete anos que trabalho ali. Um escritório metido a importante. Mas são uns chinelos. Me pagam mal, são uns boçais. Mas ao menos me deram emprego assim que me formei. Não tá fácil ser advogado. Chuta uma moita sai vários. Hoje em dia todo mundo é advogado. O cara que me trouxe ao carro está sentado comigo no banco de trás. Pega com força meu braço. Caralho! Ele tá me vendando. Me desespero. Pergunto o que tá acontecendo e ele me manda calar a boca, o motorista apenas dirige. Não consigo ver mais nada. Começo a gritar desesperadamente, na esperança de ser ouvido lá fora. Doce ilusão. Os vidros estão fechados e o ar condicionado tá congelando. Lá fora deve estar fazendo mais de quarenta graus. Vi na tv que esse é o pior verão dos últimos mil anos. Nem existia Porto Alegre há mil anos. Sei lá.

- Acelera esse carro, porra. Diz o assaltante do banco de trás.

- Calma Vinícius, tu já tá se passando.

Vinicius. E isso é nome de sequestrador? A voz do motorista é fina. Não muito, mas fina. Uma voz doce. Sotaque bem porto-alegrense. Daqueles cara gente boa. Eu tô sendo sequestrado. Meu Deus. Sequestrado? Vão me matar. Certo que vão me matar. Grito mais alto. A arma está encostada nas minhas costelas. Agito meu corpo todo. Dou socos e chutes. Acerto Vinícius. Ele parece brabo. Penso que acabei de fazer merda. Ele me amordaça. Coloca um pano na minha boca. Usa da força.

- Meu Deus, Vinícius. O que tu tá fazendo, cara? Grita o motorista.

- Cala a boca, Tunico. Dirige e cala a tua boca. Não fui contratado pra tomar chute. Só estou revidando o que ele fez.

O trânsito parece engarrafado. Tá tudo parado. Também, são cinco e meia da tarde. Nesse horário deve ter mais de quinhentos mil carros andando na cidade. Tranca tudo. Queira ver quando chove. Tento me acalmar. Não consigo. Eles vão me matar. Me agito. É mais forte do que eu. Grito, mesmo com esse pano na boca. Ninguém me ouve. Porra. Hoje é meu aniversário. 40 anos. Não ia fazer nada. Mas sei lá, ia tomar uma cerveja com a Tina. Brincar com o Francisco. Francisco é meu filho. Oito anos já. O tempo passa muito rápido. Tô velho. Cheio de pés de galinha. Já sofri por isso. Agora foda-se. Eu e a Tina estamos juntos há 12 anos. Ela é foda pra caralho. Bonita e inteligente. Sagaz. Mas chata. Chata pra caralho. Brigamos muito, mas nos amamos. Muito. Ela é uma guria massa.

- Se tu não parar nós vamos te matar, filho da puta.

Eles vão me levar pra Restinga. Não falaram isso ainda, mas imagino que sim. Atirar em mim, queimar meu corpo. Tipo o filme do Bope. No dia em que eu completaria 40 anos. Vou virar filme. Policial. Penso no meu filho, na minha mulher. Penso na minha mãe. Quero minha vida de volta, mesmo monótona. Pensando bem minha vida é boa. Vários amigos. Grito. Começo a chorar. Sinto um líquido quente escorrer nas minhas pernas. Estou me urinando. De medo. Agora estou todo cagado de medo. Literalmente. Me sinto constrangido. Humilhado. Não consigo parar de chorar. Eles parecem nervosos. Sempre me disseram que é muito perigoso quando o bandido fica nervoso. É mais fácil dele te matar. Por isso é recomendável que sejamos assaltados por profissionais experientes.

- Anda com esse carro, Tunico.

- Só se eu voar. Tá tudo parado. Não tá vendo?

Já devem fazer uns 40 minutos que estamos nessa. Na real, me fudi. Choro desesperadamente. Quero meu filho. Quero a Carlinha.

- Estamos chegando. Diz o motorista.

Estou todo cagado. E mijado. Que sensação horrível. Vou morrer daqui uns minutos. Porto Alegre tá mesmo violenta. Desço do carro. Estou vendado e amordaçado. Agora os assaltantes estão mais sensíveis. Parecem pessoas boas. Há muito barulho de carro na rua. Vozes. Tiram minha venda. Dos olhos e da boca. Não consigo enxergar direto. Leio a placa “Bar Pedrine”. Olho pra frente. Estou na rua Lima e Silva. Conheço bem a região. Bares, mendigos. As pessoas gritam “Surpresa”. São muitas. Minhas vistas começam a desembaçar. Conheço aquelas pessoas. É a Tina. O Agenor. O Bunda. O Juninho. Meu chefe. Algumas fazem cara de espanto quando me veem. Outras um sorriso sem jeito. Me sinto numa lata de lixo. De um sequestro, estou na minha festa de aniversário. Supresa. Mijado e cagado. Minhas vistas ficam cada vez mais escuras. Acho que vou desmaiar. O Pedrinho e o Anderson dão risada. São mesmo uns filhos da puta. Depois disso, enlouqueci. Síndrome do Pânico. Esquizofrenia. Transtorno de personalidade. Seis diferentes CIDs. Depois desse susto, o mundo me vomitou.