NEM TUDO QUE RELUZ É OURO!

*Por Herick Limoni

O final de semana na roça tinha sido muito bom, como sempre. Também como sempre voltamos com as energias renovadas e prontos para mais uma semana de trabalho. Também como sempre o carro voltou imundo. Às vezes de poeira, às vezes de lama, a depender da meteorologia. Dessa vez, em razão do forte calor e da ausência de chuva, muita poeira.

No sábado seguinte, como costumo fazer em tais situações, levei o carro para lavar (por causa do trabalho não me é possível levá-lo durante a semana). De fato não me importo tanto com a sujeira externa, mas a interna me incomoda bastante. E dessa vez havia um motivo a mais: na quarta-feira seguinte comemoraria meu aniversário de casamento, e levaria minha esposa para jantar (não poderia sair, nessa ocasião, com o carro sujo). Deixei-o lá por volta das 09:00 horas e voltei para casa. Por volta das 17:00 horas ele me foi entregue, muito limpo e cheiroso, como sempre! O Leandro nunca brincou em serviço.

Durante o trajeto para o trabalho, na segunda-feira, algum componente frouxo no carro produzia um barulho irritante. Tentei, em vão, descobrir de onde vinha. Na volta para casa foi o mesmo martírio, com aquele nheco-nheco dos infernos! Além de tirar minha atenção, o ruído estridente também tirou o meu bom humor. Na terça-feira o sofrimento se repetiu, mas, dessa vez, cheguei em casa decidido a dar cabo daquele incômodo. Mal estacionei o carro na garagem e pus-me a vasculhar, canto por canto, todo o interior do veículo, a fim de verificar se havia alguma peça ou compartimento solto. Após cerca de duas horas, EUREKA! A tampa do porta-luvas estava com um dos parafusos frouxos, fazendo-a bater quando o carro estava em movimento. Uma chave de fenda, daquelas com ímã na ponta, e dois minutos depois, voilá, o problema estava resolvido – aqui vai um conselho: se tiver que comprar uma chave de fenda, melhor adquirir dessas com ímã na ponta, pois facilita sobremaneira o trabalho e evita o dissabor de ter que ficar procurando o parafuso que caiu. Dormi tranquilo aquela noite, com a doce sensação de dever cumprido, aquela sensação de quem fez o que tinha que ser feito, sem delegar, sem postergar.

Acordamos cedo na manhã seguinte. Trocamos felicitações, juras de amor e carinhos, cientes de que a noite prometia bons momentos. Saí para trabalhar no horário habitual. O dia transcorreu maravilhosamente bem – a atmosfera nesses dias costuma ficar mais leve, os astros se alinham e o universo conspira a favor dos que amam. Fui e voltei sem escutar um ruído sequer no interior do veículo, a não ser o da rádio, que, frequentemente, reproduzia músicas românticas. Cheguei em casa por volta das 18:30 horas, como de costume. Minha esposa estava especialmente linda naquela noite, com um vestido preto, um pouco acima dos joelhos, e uma sandália também preta com detalhes dourados, combinando com os anéis, brincos e pulseira também dourados. Ela sempre me surpreende nessas ocasiões. A reserva estava marcada para as 20:00 horas. Tomei um banho rápido, arrumei-me e saímos.

Ao sentar-se no banco do carro, algo a incomodou. Era a chave de fenda que eu havia esquecido. Pegou-a e colocou-a no porta-objetos da porta do passageiro. Pedi a ela que quando chegássemos em casa não se esquecesse de pegar a ferramenta, a fim de que eu a guardasse, posteriormente, na caixa apropriada. Estava tudo perfeito durante o jantar. Boa comida, boa bebida, boa música e ótima companhia. Namoramos tal como fazíamos no início do relacionamento. Dançamos bastante, algo que sempre gostamos de fazer. Por volta das 22:30 horas pedi a conta. Pagamos, deixamos uma gorjeta generosa para o solícito garçom e fomos embora. Cerca de 30 minutos depois, chegamos em casa.

Tão logo estacionei, ela abriu a porta para descer, esquecendo-se do que eu havia lhe pedido ao sair – certamente as fartas doses de vinho contribuíram para a amnésia momentânea - momento em que a lembrei de pegar a chave de fenda. Antes não a tivesse lembrado. Assim que retirou a ferramenta do local em que se encontrava, veio junto, agarrado à sua ponta magnética, um objeto circular, em forma de anel, na cor dourada. Tal como um He-man furioso, ergueu a chave e vociferou:

- O QUÊ SIGNIFICA ISSO?

- Isso o quê?

- ISSO, disse ela me mostrando a ferramenta.

- Uma chave de fenda, respondi.

- Não se faça de idiota.

Inicialmente não entendi o motivo da agressividade, mas quando a luz interna refletiu-se como um farol naquele objeto metálico, percebi que a noite de comemoração estava ali terminada. Confuso, confessei-lhe que não fazia a mínima ideia do que se tratava, de quem era o tal anel e o porquê dele se encontrar no interior do meu carro. Obviamente que ela não acreditou, apesar de todo amor que lhe tenho e de nunca ter-lhe dado motivos para desconfiar de mim. Ela então, esmiuçando com dificuldade a inscrição que havia no interior do anel, vociferou novamente:

- QUEM É CLÁUDIA???

- Não sei.

- COMO NÃO SABE? ENTÃO APARECE UMA ALIANÇA NO SEU CARRO E VOCÊ NÃO SABE DE QUEM É? ESTÁ ESCRITO OTÁRIA NA MINHA TESTA?

- Não sei.

- NÃO SABE DE QUEM É OU NÃO SABE SE ESTÁ ESCRITO OTÁRIA NA MINHA TESTA?

- Não sei de quem é.

- AH, TÁ! ENTÃO ESSA MERDA APARECEU AQUI DO NADA? ELA NASCEU AQUI, POR ACASO?

- Não faço a menor ideia.

Tal como um Sócrates contemporâneo (com a enorme diferença de que eu não tinha argumento capaz de convencê-la de que estava falando a verdade), fiquei ali, imóvel, à espera do seu julgamento e da minha dose fatal de sicuta. Como eu de fato não sabia e percebendo que não adiantaria nada tentar explicar, calei-me, ao contrário do grande filósofo. Ela jogou a aliança no porta-objetos do console central e desembarcou, irada.

Meu silêncio enfureceu-a ainda mais, mas permitia-me tentar buscar na memória algum conhecido cuja esposa se chamasse Cláudia. Por mais que tentasse, não conseguia lembrar-me de ninguém. Tentei rememorar as pessoas que estiveram comigo no carro nos últimos dias, mas de nada adiantou, pois todas eram conhecidas e ninguém era casado com alguém com aquele nome. Perguntei aos amigos nos grupos de WhatsApp, e nada! Naquela noite dormitei no sofá, pois a tentativa de me lembrar só me permitiu cochilar quando o dia já amanhecia. E dormi no sofá também nas noites seguintes, tal como um cão abandonado pelo dono. Por mais que tentasse fazer minha esposa enxergar a verdade - que consistia no fato de eu não saber de quem era aquela maldita aliança - estava ela irredutível, certa de que eu havia quebrado o juramento feito no altar.

Durante os dias que se seguiram fiz questão de deixar o anel onde ela o havia largado, e sempre quando ia ou voltava do trabalho, mirava-o no console central do carro, na vã esperança de que ele me desse alguma pista sobre quem seria aquela pessoa que, por algum descuido ou esquecimento, havia acabado com nossa noite em comemoração ao aniversário de casamento. Mas ela permanecia lá, brilhante, fria e muda. Assim como uma pessoa que está passando por algum problema de difícil resolução, eu não conseguia pensar em outra coisa, e aquela pergunta ficava martelando em minha cabeça: Quem é Cláudia?...Quem é Cláudia?...Quem é Cláudia?

Passados mais alguns dias, deixei meu carro para lavar novamente. Quando Leandro o trouxe de volta, entregou-o a mim agradecendo:

- Muito obrigado por ter guardado a aliança pra mim. Minha semana foi um verdadeiro caos, porque a Cláudia ficava me infernizando por não saber onde ela estava. E o pior é que ficou me acusando de tê-la tirado, por algum motivo escuso, e por isso a havia perdido. Que se não a tivesse tirado e blá, blá, blá….

Naquele instante, o alívio tomou conta de ambos. Foi como se tirássemos uma tonelada de peso das costas. Confidenciou-me, em seguida, que retirou a aliança do dedo porque iria passar um produto químico que poderia danificá-la, mas que, em razão de toda a confusão com a esposa, não conseguia se lembrar disso. Mas que quando a viu no console, tudo veio à memória. De fato, a tensão causada em momentos de estresse limitam a nossa capacidade de raciocínio. Não fosse assim, minha esposa e eu teríamos percebido que uma aliança com nome de mulher muito provavelmente teria sido perdida pelo marido, e não o contrário.

No fim das contas e com as coisas devidamente esclarecidas, eu e Leandro demos boas e longas risadas, afinal de contas, nossos casamentos estavam novamente a salvo. E aproveitando o clima amistoso e descontraído em que nos encontrávamos, sentenciei:

- Se você tivesse comprado uma aliança em ouro, pelo menos a minha dor de cabeça teria sido evitada.

*Mestre e Bacharel em Administração de Empresas, escritor amador e entusiasta da literatura.

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