Saudade viaja nas dobras do tempo
Volteia nos mesmos circuitos, e reconstrói
cenários na imaginação.


Absorta em seus pensamentos, Corina revia episódios como se a vida fosse uma película cinematográfica rodada em câmera acelerada.
Lágrimas escorriam no canto dos olhos.
Chora não, Vó!
A avó baixa as vistas, mergulha nas rodilhas do tempo e deixa escapar a voz como um gemido.
Saudade, minha filha!Campo Grande guarda as melhores lembranças que tenho de mim.
Respirou fundo.
Meu Paraíso Perdido oferecia o melhor espetáculo que meus olhos já viram:o gado pastando na manga, a vaca parida no curral, leitõezinhos mamando, e o vento assoviando no canavial.
Por acréscimo a vida no campo ainda lhe dava: brisa amena, noite pequena e moda de viola, derramada em ramalhetes musicais na varanda da casa. Saudade também, Corina tinha do cheiro de terra molhada, da coalhada escorrida, escorrendo numa bola de pano, da meninada brincando no terreiro e da fogueira acesa em homenagem a São João.
Faz tanto tempo...
A lua ainda era menina. Havia mel na boca da noite, no soalho, no chão, no agasalho. Tudo respirava amor, doce orvalho derramado no coração.
Nas noites de lua clara, a peonada se reunia no alpendre para ouvir estórias que Generoso contava, e as músicas que ele cantava ao som de sua viola. Naquele tempo chovia, o sol se escondia semanas a fio. O rio transbordava. Os meninos se banhavam nas águas barrentas, com as vergonhas de fora. Não tinham maldade. A infância era ingênua e bela como as flores que as crianças colhiam para enfeitar o presépio de Natal.
Velhos tempos!
Corina ainda se recorda do momento em que Onofre chegou à fazenda.
Naquele dia, o sol já punha o olho de fora, quando Nhá Santa deu pela falta do menino. Nhá deixou o dia acabar de amanhecer. Tomou caminho. Seguiu pegadas de um par de alpargatas rotas, que passaram por ali, no cantar do galo. Não podia fazer muita coisa àquela hora, porque o dono do rastro deveria estar longe!
Órfão de pai morto em acidente, durante uma vaquejada na fazenda do coronel Domenico, Onofre já era órfão de mãe, morta no parto de seu primogênito.Ele mesmo, Onofre.
A criança escapou.
Não atendeu ao chamado, quando a morte bateu à sua porta, nos primeiros dias de vida.
A morte, bem, a morte foi condescendente com Onofre, mas levou a mãe dele no momento do parto.
Nhá Santa cuidou de Onofre e aquele menino desmilinguido vingou. Cresceu. Tornou-se forte e assumiu ainda novo, a profissão de vaqueiro aprendida com o pai adotivo.
Não fazia mais sentido para a mãe continuar como agregada do coronel Domenico, depois do desaparecimento de Onofre. Onofre era o filho que ela não teve, e agora ele estava derramado no mundo. Por certo, conheceria um novo mundo, ou um velho mundo sem porteira.Não há fronteira. Limite algum para um solteiro longe dos pais. Saiu de casa, o rapaz perde os freios. E sem receio ou medo algum, enfrenta a vida. Pende para o bem ou para o mal. Tanto faz. Mas nem sempre é bom. Tudo tem que ter regra. Até água, se beber demais, afoga. Sufoca. Mata.
Nhá tentou vender ao patrão meia dúzia de galinhas e uma porca sem crias, mas, de nada valeu seu argumento:
Os bichinhos já estão acostumados aqui, coronel...
Não compro por preço algum!
Vendeu em Pau d’Óleo, tudo que tinha por alguns vinténs de cobre e seguiu a estrada carroçável, sem saber para aonde ia. Talvez n’alguma fazenda, encontrasse pistas do filho.
Bom-dia doutor!
Bom-dia! A que devo a honra de receber uma visita nas primeiras horas da manhã?
Sou Onofre do Borá.
O Borá não é tão longe daqui. Conheces o coronel Domênico?
Trabalhei para o coronel Dólmen até ontem.
Qual foi a desavença?
Com ele, nenhuma! Mas desentendi com minha mãe de criação.
Deve procurar um padre. Aqui não tem confessionário.
As feições do coronel Generoso tomaram ar de riso.
Não é coisa de rir, doutor. Viajei pedaço de noite, pra chegar aqui. Não tenho pai, nem mãe. Aprendi a arte de vaqueiro com um tio na fazenda do Coronel. Já me acho na idade de tomar rumo na vida. Tenho dezessete anos!
Desentendeu também com seu tio?
Meu tio morreu. Era marido de Nhá Santa. Nhá acabou de me criar. Mas ontem, levei sete lapadas de relho ensebado. E fugi de casa. Aguento isso mais não, seu Generoso. Já sou homem pra enfrentar a vida. Qualquer serviço me serve.
Justino Batista Generoso era um homem de alegrar-se com os que se alegram e também sofrer com os que choram. Então, pra não chorar na frente da visita,disfarçou seu sentimento, virando o rosto e pensou: ‘Sete lapadas de relho ensebado, apresentadas como argumento, numa entrevista de emprego!...’
Teve vontade de rir. E de chorar.
Nunca zombara da desgraça alheia, mas naquela hora, podia ser que não controlasse o riso. O riso que vem depois do choro, pois, no ano de 1932, ele mesmo tinha levado do pai, sete chibatadas com vergalho de touro. E fugiu de casa com a roupa do corpo. No bolso, uma ponta de dinheiro. Pouca. E nada mais.
Generoso entristeceu.
O pomo de adão subiu e desceu. E por três vezes sucessivas, segurou o choro.
Com meio sorriso, sufocou as lágrimas e se recompôs.
Amanhã, você escolhe um cavalo e os arreios. Temos uma rês debandada. Agora, vá descansar com os outros vaqueiros. Tomar intimidade com a fazenda. O almoço é às dez da manhã.
O almoço foi servido numa grande mesa com doze lugares. Mas só os solteiros tomavam boia na casa do patrão, os demais, cada um tinha sua casa, mulher e filhos. Filhos estes, afilhados do fazendeiro e de sua esposa Corina.
À tardinha, Onofre correu as vistas na pastagem fronteira à sede da fazenda. Viu no alto de um cupinzeiro, uma coruja que vigiava suas crias escondidas na toca. Sentiu falta do pai, mas, sequer, pai ele conhecera, pois quando o pai morreu Onofre ainda estava na barriga da mãe.
Não se conteve.
Como ficar parando, diante do espetáculo da natureza! O cheiro adocicado do capinzal o chamava para um passeio nas mangas.
Foi.
Abriu a cancela que dividia o pátio da fazenda. Avançou. Venceu obstáculos, abriu colchetes que separam o bezerreiro do gado graúdo. Seus olhos se deleitaram com as imagens que via. Muito gado!
Adiante, valente quero-quero passa em voo rasante sobre a cabeça do vaqueiro. Era hora de parar com as andanças a pé. Nas mangas, uma touceira qualquer de capim, pode esconder perigosa serpente. De repente, seus olhos se encantam com o curral de tiras de aroeira. Nele, dez vacas leiteiras, apartadas das crias, guardam nas tetas a coalhada e o queijo consumidos na fazenda. Mas, gado de corte é a atividade principal de Generoso. Quase mil cabeças pastavam nas mangas, enormes, a se perderem de vista.
A tarde declina pálida.
Perde o vermelhidão e toma cor roxeada como moribundo nos últimos suspiros. Sonolento, o sol inclinou a cabeça sobre o travesseiro das montanhas e a lua derramou luz prateada no terreiro. Logo, os vaqueiros chegaram para ouvir Generoso tocar viola. Euzébia serviu chá com biscoito, e quando o relógio de parede derramou nove estrelas no compasso da noite, as visitas bateram em retirada. Os solteiros armaram suas redes nos esteios da oficina de farinha e acariciados pela brisa fresca da noite, dormiram numa casa sem paredes.
O galo cantou.
Mal rompeu a primeira aurora, a vaqueirama se apresentou de prontidão. Despreocupados, os meninos ainda dormiam o segundo sono que vem depois da primeira urinada na rede.
Vaqueiro Onofre esfrega os olhos e escolhe um cavalo desbotado que cochilava à beirada da cerca. João Velho matutou: ‘O meninote conhece! Esse cavalinho é o melhor da fazenda pra golpear boi arisco. Tem menos arranco que um grande, mas logo toma dianteira. ’
Tá na hora da onça beber água — disse João Velho.
Vaqueiros e fazendeiro seguiram a batida.
Boi fugidio afastava a betônica-brava com o peito, e a triturava nos cascos, abrindo passagem estreita. No batedor, só se via o lombo do boi, que mais parece uma bruaca galopante.
Generoso passa a mão no rabo da rês e puxa de lado. O arreio arrebenta, e a sela escorre pros vazios do cavalo. Com duas upas, o animal jogou o dono no chão. Onofre apertou a montaria nas esporas, levou a mão no sedenho do boi e puxou pra direita. Foi um tombo só.
Sangra o bicho, gritou o patrão.
Mato não! Agora sou o ‘padim’ deste boi.
E passou o laço no pescoço de Chuvisco, que o seguiu como um cordeiro.
O patrão se machucou? — quis saber o vaqueiro novato.
Nada grave. Mas não quero que Corina saiba da queda. Coisa de homem. Quando o marido cai do cavalo, a mulher não pode ver, nem saber que ele caiu.
Outros vaqueiros aproximaram-se mordendo os freios.
Pisoteado pelos cavalos, o chapéu de Generoso, mais parecia uma bosta de gado esparramada no chão.
O fazendeiro desamassou o chapéu e amarrou o barbicacho. Apertou a cilha, conferiu as rédeas, firmou-se no estribo esquerdo e montou novamente.
Teve vontade de ferir a barriga do cavalo Presidente com as rosetas da espora, mas não o fez. Olhou para Onofre que estava desmontado, segurando o boi bravo pelo cabresto.
Breve, teremos encontro marcado com uma pintada. Guarde suas forças, porque coragem, sei que você tem de sobra!
Turíbio Medonho aproxima-se fumando um cigarro de palha.
Quem derrubou o boi?
O vaqueiro novato.
Aquele paspalho, frangalho de gente mal empanada? Tem jeito de frangote que ainda mija nas calças!
Brinca não! O cabra é macho! Derrubou o boi na primeira apanhada. Agachado, grudado na sela feito chien em cabeça nêgo.
Tem mosqueiro rodando a sela da montaria dele.
Tem também um punhal na cintura. Fique esperto! Esse aí chegou pra botar ordem onde não tem. Já foi contratado pelo patrão. Logo vai mandar até em João Velho — disse outro vaqueiro.
Não meta meu nome em pendenga — acudiu João.
Nhô! Você já conhece o novato?
Presenciei, quando escolheu o cavalo. Tem futuro, o menino! Quero dizer, o rapaz.
Parece que tem mandinga! Derrubou, pôs cabresto e chamou o boi pelo nome. O boi arrepiou os pelos e ficou dócil como um gabiru rejeitado.
Arrenego! Deve ser pactuado com o cão.
O capiroto dá e tira.
Conheci um vaqueiro que nunca correu atrás de boi. Sacudia uma caixa de fósforos e o animal acompanhava como um cordeiro.
Quero ver pegar onça só sacudindo uma caixa de fósforos!
Onça? Melhor mudar o rumo da prosa.
Turíbio insiste no discurso desaprovado por Pururuca.
Dizem que na voçoroca do meio, tem coisa ruim lá dentro.
Deve ter onça!
E ossada de gente.
Isso é lenda!
Lenda? Cadê o corpo do vaqueiro do coronel Dólmen que nunca apareceu?
Deve estar enterrado n’alguma mesa de pedra de qualquer capão de mato. Aquilo foi crime encomendado. De onde já se viu a montaria voltar sozinha para casa?
A onça! A onça deve ter comido o vaqueiro.
História mal contada. Sei não!
As opiniões se divergem.
Duvido que ele mexa com doutor Generoso!
Coronel Generoso é homem bom, sem maldade.
Pois é por isso mesmo corre risco.
Generoso é bom. Dólmen, não presta!
Coronel Domênico nunca me vez mal. Acho covardia falar mal de um homem pelas costas.
Muita gente conhece o coronel Domênico pelo apelido e sabe quantos crimes ele arrasta nas costas. Aquele muquirana! Nega até um copo d’água.
É homem perigoso! Empregado fica velho de casa ele dá sumiço. Faz o acerto, paga tudo direitinho, depois o sujeito exala, desaparece sem deixar rastro. Dizem que desossa o defunto. Dá a carne para os cachorros e joga a ossada na voçoroca do meio.
Pururuca arrepia.
Tinha trauma de morte.
Morte de gente matada, não podia nem pensar!
Era só falar nessas coisas e à noite sofria pesadelos terríveis! E para livrar-se dessa tortura psicológica, mudou de assunto.
Será que vai ter matutagem na fazenda hoje?
Churrasco do boi Chuvisco? Aquele não! Foi dado para o vaqueiro novo. O vaqueiro agora é padrinho do boi e boi que tem padrinho, não vai para o abate. Morre de velho no pasto.
Era verdade.
Onofre tinha uma história com aquele boi.
Nos retiros de invernada, Chuvisco ia na cabeceira puxando o passo.
Parece que gostava da toada que o vaqueiro novato cantava:


Ê boi, ê boi
Ê boi bom cara pintada...
Ê boi, ê boi!
Ê boi bom, pega a estrada...


Boooi...


Os que ficaram em casa, aguardavam curiosos o resultado do campeio. E logo que a sede da fazenda ouviu a toda do vaqueiro, um menino abriu a porteira.
Onofre passou puxando o boi pelo cabresto.
O cheiro da betônica-brava estava nas vestes do vaqueiro, fortemente marcadas com o verde-musgo da folhagem. Também uma flor esbranquiçada, aqui ali aparecia grudada nas perneiras.
A fazenda Campo Grande vê chegar um a um, cada vaqueiro. Primeiro, Onofre e em seguida, o fazendeiro com o chapéu todo amassado, parecendo uma bosta de gado.
Aconteceu algo errado, meu dengo?
Não, Corina. Só meu chapéu foi atropelado.
E olhou para os vaqueiros, calados. Ninguém dava um pio.
Pururuca rio.
Generoso passou o rabo do olho.
Diz logo, abestalhado que o patrão caiu.
Ninguém segurou o riso.
Era preciso que essas coisas acontecessem. Melhor assim. Há qualquer momento,a mulher do fazendeiro ficaria sabendo da queda dele. Melhor não mentir.
Só não cai do cavalo, quem não monta nele — disse Generoso impondo no rosto um aspecto sisudo.
Chegou em uma hora boa, meu dengo. O almoço está na mesa.
Boi fugidio ficou por horas a fio amarrado no curral.
A corda amarrada ao pescoço, permitia-lhe ir ao cocho comer a sobra que o gado de leite deixara para trás.
Eh, vida de gado!...
Boi fugidio era inteiro, mas estava amarrado.
Eh, vida de gado!...
A tarde cai.
Antes de dormir, boi Chuvisco remói o que comeu durante o dia.
Novo dia se levanta no vaivém do nascer e pôr dos sol.
A vaca leiteira pasta na manga fronteira ao curral. Lambe o sal, sacudia a cauda e muge chamando a cria.
A aurora chega, quando o bezerro apartado berra, suplica, pedindo sua cota do leite guardado nas tetas da mãe.
Vai um dia, vem outro.
Mal descansa, e outra vez o sol se levanta sonolento no balde de leite do vaqueiro e vai dourando de luz planícies e montes. Novos horizontes despontam, revelando o grande espetáculo da natureza.
Com o dia amanhecido, Euzébia tange a galinha que bica comida na mesa. ‘Sai trem desgramado, vai quebrar a imagem do santo!'
À tardinha, pálidos raios do ocaso tocam o crepúsculo das lembranças. O coração de Corina pende e balança. Belos tempos em que a juventude lhe sorria, quando em noites de lua clara, a peonada se reunia no alpendre.
Feliz, a mulher do fazendeiro morria de paixão, ouvindo “Saudade de Mirabela”, que o marido, inventado de cantor, tocava na viola que Zé Coco fazia, com as próprias mãos, e um toco de canivete.
Naquele dia, Generoso Batista disse aos cafuçus: ‘Hoje não toco. ’ Foi quando Tunico Oliveira se manifestou recitando João Athayde, em pé de verso, guardado na memória desde a mocidade.


Dim, dão...Dim, dão...


João Grilo foi um cristão que nasceu antes do dia,
criou-se sem formosura, mas tinha sabedoria
e morreu depois da hora pelas artes que fazia...


Atalho o frango nêgo mole!
Não me interrompa, patrão! Ainda quero trastejar uma cantiga que assuntava pai imitando Leandro Gomes do Pombal.


Quando cachorro falava, gato falava também
Gato tinha uma bodega como hoje o homem tem
Onde vendia cachaça encostado ao armazém.


Com a balança armada para comprar cereais
E na bodega vendia bacalhau, açúcar e gás
Bolacha, café, manteiga, miudezas e tudo mais.


O peru vendia milho, o porco feijão e farinha
Com um cacho de banana, mais tarde o macaco vinha
Raposa também trazia um garajau de galinha.


Guariba vendia escova que fazia do bigode
Urubu vendia goma, porque tem de lavra e pode
A onça suçuarana vendia couro de bode.


A meninada ria.
Corina aplaudia, mas, naquela noite, Nhá Santa não serviu café nem chá.
Pairava no ar uma inquietação: meses a fio, o sol escaldante consumia a pastagem e bebia a água do rio.
O Saracura não corre mais; o Lambari secou, e rio Juramento fraqueja.
A serra outrora verde mostra-se agora acinzentada. Agonizante, a natureza freme e se contorce em clamores de morte. Fome e sede ameaçam o plantel de gado. Mas na casa do coronel tinha legume guardado em tonel de zinco.
Fartura regrada, mas tinha.
Na cozinha, flocos enegrecidos de picumã, ainda descem do teto, confundindo-se com a linguiça que defuma na fuligem do fogão a lenha.
O sertão chora.
***
Adalberto Lima
Fragmento de "A Última Estação."
Fase de enxugamento para publicar em 2021