COLAR DE PORCOS

COLAR DE PORCOS

Chico da Horta era sujeito criado no mato. Medo de pouca coisa ou coisa nenhuma. Muito mais instinto que pensamento, Chico trabalhava, comia, bebia e dormia. Não era dado a questionamentos sobre vida, morte, sociedade e outras tantas considerações desimportantes. Chico não era triste ou feliz, vivia apenas. “E tava bom demais”, na opinião dele. Não era sujeito feio, a barba escondia algum traço menos estético. O cabelo revolto e a altura impressionavam as mulheres das redondezas, Muitos pais o aprovariam como genro. O bicho era bruto no serviço, não tinha preguiça e não reclamava. Por mais de uma vez foi assediado, aqui e ali, em conversa de casamento, mas sempre escapava com um “não tô querendo agora, não”. E foi vivendo assim até conhecer Izaura. Não se pode dizer que Chico se apaixonou perdidamente, ele não tinha essa configuração. Gostou dela como quando gostava de uma vaca leiteira, uma carroça bonita ou um cachorrinho filhote. Nessa época, Izaura atendia pelo nome de Rita Flor e trabalhava no cabaré da Dª Esmeralda.

Rita Flor, bonita, morena, mestiça de índio e branco. Olhos bem rasgadinhos que lhe davam chaves de misteriosa invocação. Tinha as curvas certas no lugares adequados e gostava de usar vestidos de chita, o que no seu corpo pareciam seda de qualidade. Ao contrário das colegas da noite, falava pouco, não distribuía risos e gargalhadas por atacado. Bebia minimamente e sempre batizando o drink só para garantir uma renda extra, pois era parte do negócio. Rita Flor gostava de novelas e revistas sobre artistas de novelas. Sabia tudo daquele mundo e só ia para a labuta depois do episódio na televisão encerrado. Ela tinha gostado do Chico da Horta desde a primeira vez que ficaram juntos. Ele não era carinhoso ou charmoso, mas tinha firmeza, isso a agradava. Não nutria esperança na vida, sabia que envelheceria ali naquele meio, talvez tivesse um filho ou dois e quando já não desse lucro seria dispensada. Não pensava muito nisso, não havia motivo para se angustiar agora e as novelas estavam tão boas que nem lhe davam vontade de assistir o futuro.

Numa noite dessas, tão normal como as outras, quente e recheado com as vozes dos grilos do outro lado da janela, depois da função com Chico, ele perguntou, ainda deitados os dois, sentindo a brisa vinda do ventilador ao lado da cama:

- Quer ir morar comigo, Rita? – disse olhando para o telhado e suas ripas de madeira.

Ela pensou um tempo para responder laconicamente:

- Quero sim.

Chico da Horta nem fingiu um sorriso. Levantou e se vestiu. Colocou o dinheiro combinado no lugar onde sempre deixava na penteadeira, perto do espelho e dos perfumes dela. Foi até à porta e antes de sair falou:

- Amanhã à tarde venho buscar você. Arruma suas coisas, Rita.

- Tá bom, Chico. Vou esperar – ela respondeu enquanto também se vestia - e Chico... – chamou antes dele ir embora.

- O quê? – perguntou sem se virar.

- Meu nome é Izaura – disse revelando timidez.

- Até amanhã, então, Izaura – e saiu.

Sozinhas no quarto simples, Rita Flor e Izaura se abraçaram naquele instante e uma também se despediu da outra, as duas agradecidas por se separarem. Parecia história de novela na cabeça delas. Rita Flor, mais desenxabida nessas coisas da vida estava até feliz, Izaura não sabia o que pensar direito. Foi um adeus de amigas que se gostam, mas possuem destinos diferentes. Rita Flor decidiu que não ia mais atender ninguém e Izaura foi ajeitar sua mala.

Seis meses depois e tudo já estava ajeitado para todos. Izaura e Chico viviam suas vidas, as moças casadoiras que se sentiram rejeitadas encontraram outros rapazes para cevar e o trabalho de Chico só aumentava, o que lhe garantia certo conforto financeiro. Gostava de chegar e encontrar a janta pronta, o quarto arrumado, a casa limpa e cheirosa e, claro, a cama quentinha nas noites que se amontoavam uma após a outra. Um dia, Chico da Horta até se pegou pensando que era feliz. E foi nesse dia mesmo que resolveu passar no boteco para jogar conversa fora, matar uma pinguinha e tentar uma sinuca.

Sentada em frente à televisão, enquanto seu homem não chegava, Izaura tinha os olhos cheios de água. O casal da trama havia brigado, briga feia por causa de ciúme. Izaura não suportava a ingratidão dele. Era tudo mentira e ela tinha vontade era de contar, até mesmo tinha enviado uma carta lá para emissora esclarecendo tudo, mas ao que parece, a carta não chegou e se chegou, ele não acreditou. Agora estavam os dois ali, um apaixonado pelo outro, mas enganados pelo destino e prontos para estragarem suas vidas. Izaura sofria.

Lá no bar, Chico da Horta arrotava valentia, animado pelas pingas derrubadas peito adentro.

- Não tem um pra ganhar de mim aqui na mesa de sinuca – e dizia e repetia – não tem, não tem.

Os demais freqüentadores gozavam o momento, pois era raro ver o amigo falante daquele jeito. Estranharam a atitude, mas queriam mesmo era testemunhar a desordem. Lugar bom para se ter amigos não é no boteco, onde a maioria é vazia com seus copos cheios nas mãos.

- Eu ganho de você – alguém falou repentinamente, trazendo silêncio.

- Quem ganha de mim? Quem falou? – perguntou Chico encarando todos.

- Eu – respondeu um rapaz se levantando e indo em direção à mesa.

A gargalhada foi geral e o motivo era simples. O finório que se apresentava era Tito Lambrusco, filho do coronel Tito, dono de uma das maiores fazendas do estado e outras tantas. O jovem estudava medicina na capital e de tempos em tempos aparecia na cidadezinha para uma prosa, joguinho de cartas, visitar as meninas e se mostrar.

- O dinheiro é seu, coronézinho – falou Chico reconhecendo o almofadinha – perder ele é direito seu também.

Todos riram, inclusive o jovem em suas calças de linho branco, camisa clara e sapatos pretos. Cabelo e bigode escovados e brilhantinados.

- Vamos ver, então, quem ganha de quem - respondeu Tito.

Mesas e cadeiras afastadas, abrindo espaço para os espectadores. Copos preenchidos. Os mais animados foram chamar outros companheiros. Seria um evento. Chico da Horta contra Tito Lambrusco.

Apesar de meio bronco, Chico era inocente e boa praça lá no fundo. Ele, em momento algum percebera a troca de olhares entre o doutorzinho e seus amigos mais chegados. Só queria jogar, se divertir e ir embora.

- Vai ser na melhor de três – anunciou Chico – e jogo castigado, combinado doutor?

- Combinado, Chico e pode me chamar de Tito, afinal temos muito em comum – respondeu o jovem olhando para seus amigos que não esconderam o riso.

O homem, outra vez, não percebeu a coisa e enquanto ajeitava as peças do jogo na mesa, virou mais um copo de aguardente, para dar sorte.

- Pode começar, doutor – autorizou Chico – os patos na frente – disse usando o velho jargão da disputa.

Tito Lambrusco não se fez ofendido e iniciou a partida com forte tacada espalhando no campo todas as possíveis condições de vitória.

Sinuca é jogo estranho. Às vezes, mais vale defender que encaçapar. Tem muito de estratégia e habilidade. É preciso montar um caminho, assim como se borda um tapete e no final obter o resultado. O jogo castigado, como ficou definido, consiste em penalizar quem erra a jogada.

Longe desse rebuliço, Izaura, depois do fim da novela foi preparar o jantar de Chico a ajeitar as coisas para o almoço do sábado. Ele queria feijoada e alguns ingredientes estavam na geladeira, precisava descongelar para o dia seguinte. Com muito gosto, Izaura separava as partes do porco que iriam dar mais gosto ao feijão preto junto com alho e laranja. Pés, joelhos, orelhas,toucinho. Ela também gostava desse prato dos escravos, como um dia lhe contaram lá na casa da Dª Esmeralda. “Credo”, ela pensou. Não gostava de relembrar as coisas daquele tempo de quenga. Era passado e se Deus a ajudasse, jamais voltaria a se encontrar com Rita Flor. Uma rajada fria encontrou o vestido de chita de Izaura que a fez se arrepiar sentindo um agouro ruim:

- Cadê, Chico, meu Pai? O homem não é de demorar assim – ela se disse.

Naquele gramado verde, os oponentes se mediam entre tacadas e gracejos ainda na primeira partida. Ficou evidente para os assistentes que o doutorzinho não era bobo no jogo. Havia pressionado Chico várias vezes e tinha matado bolas que pareciam difíceis. O valor da aposta em dinheiro foi alta, coisa de um mês de salário do trabalhador por partida, mas Chico estava com a bolsa cheia e ainda ajudado pela pinga não teve receio. Apostou sem nem se preocupar. Ao final de quarenta minutos, entre idas e vindas, Chico da Horta ganhou a primeira batalha. Tito Lambrusco fez questão de pagar imediatamente ao outro. Contou as notas para todos verem e passou às mãos do adversário, mas antes de soltá-las, desafiou:

- Ora, ora... então você me ganhou. Não seria mais divertido se a gente dobrasse a aposta para a segunda partida – ele soltou a arenga como se fosse nada e tomou um gole de cerveja.

Chico da horta pensou um pouco. Seu instinto dizia para não aceitar. Esse truque era velho. O sujeito perde a primeira de propósito só para ganhar mais depois. Mas Chico sentia que se recusasse sairia humilhado dali. E para ajudar na decisão, ouviu um companheiro perguntando:

- Tá com medo, Chico da Horta ?

Por um instante, o salão do boteco se fechou sobre Chico, o engolindo. As lâmpadas que mal iluminavam o ambiente pareceram diminuir mais. Trancado em si, lembrou do pai o fustigando por não querer entrar no rio. “Tá com medo, fio duma égua?”, disse-lhe o pai. Aquele mundão de água o assustava terrivelmente. As comadres de sua mãe diziam sempre que havia um monstro naquelas águas e que não era para deixar os filhos entrarem ali, pois seriam levados para o inferno. “Tá com medo, fio duma égua?”, dessa vez a pergunta do pai veio na ponta do chicote que lambeu suas pernas e o fez pular da canoa. O contato com o frio do rio lhe tirou o tino. Estava barrenta e toda vez que afundava não enxergava direito. Tentava gritar, mas engolia o grito e litros de água. Quando abaixou mais uma vez além da curta linha de respiração na água, sentiu que caía num fosso, viu uma figura estranha avançando para si. A coisa parecia gente, mas tinha cauda de peixe, os braços eram finos e as orelhas muito grandes. Os olhos. Os olhos daquilo eram enormes na cabeça e totalmente pretos. Desesperado tentou chutar a criatura que pareceu lhe dizer “Chico, não tenha medo”. Num instante depois, ele estava na margem, longe da canoa e do seu pai. Por um tempo ficou deitado, recuperando o fôlego, não queria chamar o velho ainda. Ele estava de costas procurando e gritava desesperado “Chico, Chico, meu fiho “. Ao levantar a cabeça, Chico viu os olhos pretos mergulhando devagar naquele mundaréu marrom. “Pai”, ele gritou, “Tô aqui”. O homem se virou e por um breve momento pareceu ter envelhecido dez anos. Aquilo confortou o menino.

- E então, Chico, como fica? – pressionou o rapaz com o taco

na mão.

- Tá dobrado – os gritos foram contagiantes.

Izaura começava a ficar preocupada. Os últimos meses foram de uma realidade quase utópica para ela. Nem em seus melhores sonhos imaginara que teria casa, um homem seu, alguém para cuidar dela e não somente aproveitar do seu corpo. Como era bom poder dormir cedo e não ter que ficar aturando as conversas enfadonhas e melancólicas dos bêbados que freqüentavam o cabaré. Havia dias em que corria a tomar banho quando se lembrava das coisas que fizera naquele quarto vermelho. Por duas ou três vezes encontrou suas ex-colegas de infortúnio na feira, mas a raiva que sentiu nelas a impediu de se aproximar. Ela entendia, pois agiu do mesmo modo com outras meninas que haviam saído da vida. Raiva, inveja, desgosto. Iria passar com o tempo, ela sabia. Mas agora, Izaura estava preocupada com Chico. E se ele tivesse se cansado dela? E se ele estivesse lá no cabaré agora mesmo? Não, ela não suportaria voltar. Tudo isso acontecia na mente de Izaura enquanto temperava a carne suína para o almoço seguinte. Sim, havia um almoço no dia seguinte. Ela se alegrou um pouco e passou as mãos sobre a própria barriga, carinhosamente.

A segunda partida da aposta acontecia de forma totalmente diferente da primeira. Quem não tivesse presenciado o dote do doutorzinho, diria que ele nunca havia pegado num taco a vida toda. Errava as jogadas mais fáceis, não se defendia, espirrava o taco a toda hora. Como Chico da Horta não tinha nada com isso, ia matando todas e encerrou a queda com quase um capote em cima do outro.

Para todos os efeitos, a coisa estava findada. Se era melhor de três e Chico havia ganho duas, acabou-se o que era doce. Todos pensavam assim. O jovem filho do coronel, pagou sua dívida sorrindo. Chico da Horta não zombou do perdedor, até agradeceu a diversão, pagou sua conta e a bebida de alguns e se despedia quando foi interpelado novamente pelo outro.

- Então, Chico – começou o rapaz puxando uma cadeira e sentando-se bem em frente à porta por onde ela passaria para sair.

- Então o quê, seu moço? – respondeu Chico com sorriso na boca meio escondida na barba cheia.

- Então que eu queria jogar mais partida – revelou.

- Chega, né não? Bebemos, jogamos, foi bom, mas tudo tem hora pra acabar.

- Até entendo, Chico, mas faço uma proposta que ninguém recusaria.

Aquilo deixou o homem curioso. Já estava ali mesmo. Havia recebido um bom dinheiro que o deixaria tranqüilo por algum tempo. Custava nada escutar o almofadinha. Os outros estavam calados, prestando atenção.

- Então, diga lá, doutorzinho, o não você já tem, vamos ver que proposta é essa – retrucou Chico sem nenhuma preocupação.

- É o seguinte: A gente joga mais uma partida. Se eu perder, pago a você dez vezes o valor que você ganhou – disse de forma bastante séria.

Chico da Horta estatelou os olhos. Dez vezes mais? Dava até para comprar um pedaço de chão e plantar para ele mesmo. Ser dono e não empregado, mas no meio da animação ele se lembrou da conseqüência.

- E se eu perder, doutor? Não tenho esse dinheiro para pagar, então a resposta é não – falou dando o caso por enterrado, tencionando ir embora mesmo.

- E quem disse que quero seu dinheiro – respondeu o jovem.

Os amigos do estudante de medicina acercaram-se dele fazendo uma espécie de escudo de proteção. Muita gente notou isso. Eles também levaram a mãos para perto do cós das calças como se prontos para sacarem algo dali se fosse preciso.

- Diga lá, então, Tito e deixe de fuleragem, homem – Chico disparou fazendo graça.

Tito Lambrusco passou os dedos pelo bigode, olhou bem calmo para Chico e disse:

- Se você perder ... quero passar uma noite com Rita Flor, a mulher mais quente que já tive debaixo de mim e que você roubou do cabaré da Esmeralda.

O que sucedeu depois dessas palavras foi um estrondo só. Gritos indignados partiram de todas as direções. Alguns ameaçaram agredir o rapazinho, mas o círculo dos amigos em volta dele impediram qualquer coisa mais grave. Durante muitos minutos a algazarra foi intensa, tanto que ninguém havia percebido que somente Chico da Horta estava calado. Branco como vela de defunto, mas mudo. Quando a situação se arrefeceu, ouviram a voz do Chico respondendo ao jovem. Uma voz diferente, profunda, vinda de onde ninguém gostaria de ir:

- Apostado, sujeito.

Só isso ele disse e se encaminhou para a mesa. Pegou o taco que havia jogado antes e passou o giz azul na ponta, ajeitou as peças no veludo, colocou o bolão branco na posição e sem hesitação deu início à partida, espalhando tudo pela mesa. Olhando para o almofadinha, perguntou:

- Vai jogar ou pagar?

Os amigos de Chico estavam perplexos. Ele havia apostado a mulher. “Que tipo de homem faz isso?”, pensavam, mas a cachaça e a curiosidade foram maiores que quaisquer escrúpulos e agora só desejavam conhecer o final da trama.

Um tanto ressabiado, Tito Lambrusco foi para a mesa, ainda acompanhado de perto dos seus guarda-costas. Porém, olhando para o outro, percebeu que a coisa era pra valer, só tinha que jogar e ganhar para se apossar do prêmio.

E jogou. Jogou muito. Chico nem parecia se importar. Não conseguia acertar o básico das regras do Castigado. Por três vezes errou sua própria esfera, o que somente acelerava o desfecho da questão. Parecia que desejava terminar logo com aquilo.

Não deu outra, Tito ganhou facilmente. E quando a última caçapa engoliu o último ponto, os tacos foram cruzados em cima da mesa. Havia silêncio mortal. Chico da Horta apontou a saída e disse:

- Vamos, você ganhou e vou pagar a aposta. Venham todos como testemunhas – ordenou e uma pequena multidão saiu do bar em direção à casa do Chico que ia na frente guiando a tropa, seguido não de tão perto pelo doutorzinho. O dono do boteco fechou as portas e correu a acompanhar a procissão.

Izaura estava no sofá tentando fazer crochê. Ajudava a passar o tempo aquele exercício com agulhas e barbante. Um ponto, outro ponto, amarra, dá a volta e começa de novo. Era uma criação maravilhosa. Entretida nisso havia se acalmado e aguardava seu homem chegar. Ao longe ela ouviu um som que foi aumentando de volume aos poucos. Assemelhava-se a pessoas, muitas pessoas, caminhando. Mas quem seria a essa hora da noite? O barulho só cresceu até ela constatar que estava vindo da frente da casa, foi quando ouviu a voz do seu homem gritando:

- Rita Flor, venha aqui.

Izaura sentiu as pernas faltarem. Ele nunca a havia chamado por esse nome desde o dia em que lhe propôs morarem juntos. O que aconteceu? Ela não queria sair, mas ouviu novamente o chamado e de modo a não dar oportunidade de desobediência. Devagar, quase se arrastando, Izaura foi até a porta da sala e a abriu devagar. A sua frente, dezenas de pessoas na rua. Chico da Horta na frente, no portãozinho do jardim, a seu lado um rapaz bem vestido que a olhava sem nenhum pudor. Ela se lembrou dele. O fazendeirinho, aprendiz de médico, que a procurava sempre no cabaré. Izaura tremia tanto que o crochê esquecido em suas mãos balançavam contra as agulhas. “O que será de mim, meu Deus?”

Chico da Horta atravessou o portãozinho, colocou-se ao lado da mulher e perguntou bem alto:

- Qual o seu nome?

Ela não entendia, estava confusa, assustada. O doutorzinho gritou:

- Que bobagem é essa, Chico. É a Rita Flor e quero receber a aposta agora.

- Cala essa boca imunda, sujeito, antes que eu a feche para sempre – respondeu Chico. Nesse momento, ouvindo o tom de voz, os amigos guarda-costas de Tito afastaram-se dele muito discretamente.

- Diga seu nome, meu amor – falou Chico para a mulher.

Olhando nos olhos daquele homem, surpresa por ter sido chamada tão docemente, compreendeu. Desviou o olhar para esquina mais distante de sua casa e viu Rita Flor acenando com a mão e um lenço branco como se dissesse adeus. A mulher de Chico da Horta voltou a encarar a multidão e em especial o rapazinho e disse:

- Izaura. Eu sou Izaura.

Chico da Horta a abraçou e pediu-lhe alguma coisa. Ela entrou, enquanto isso, se dirigiu ao doutorzinho:

- O senhor entendeu? Não há nenhuma Rita Flor aqui. Pode ir embora.

As faces do jovem aprendiz de medicina se inflamaram:

- Eu exijo ser pago. Ganhei a partida e quero meu prêmio. Essa rapariga sempre vai ser quenga, não importa o nome que use – ele gritava e saliva escorria pelo queixo.

Izaura reapareceu trazendo um embrulho que entregou a Chico da Horta.

- Segurem esse janotazinho – ordenou de maneira indiscutível.

Não foi preciso dizer duas vezes, diversas mãos avançaram sobre o moço. Seus cupinchas fugiram. Chico da Horta se aproximou do rapaz e mostrou o presente dado por Izaura há pouco.

- Você não vai sair sem seu prêmio, doutorzinho.

O rapaz se debatia, mas as mãos calejadas do trabalho duro que o seguravam nem se mexeram. E amarraram seus braços para trás. Chico da Horta rasgou-lhe a camisa com as próprias mãos. Cortou-lhe o cinto das calças com a faca que trazia sempre consigo, deixando-o apenas de calção de baixo. E então pendurou no pescoço do insolente o objeto que tinha prometido.

Costuradas pelo barbante, as partes do porco que seriam ingredientes da feijoada de sábado formavam um bizarro colar. Joelho, orelhas, pés, bem dispostos harmonicamente em fila se penduravam no pescoço branco do doutor e escorriam seus líquidos e água pelo peito, o que fez o rapaz vomitar, dando novo colorido ao enfeite.

A turma abriu um corredor e fez o arrogante doutor passar por ele, seminu, com as mãos presas às costas, incitando-o a correr o mais rápido que pudesse, pois se o pegassem acrescentariam outras partes ao colar. Partes dele, bem explicado.

Tito Lambrusco correu como louco por toda a cidade enquanto seus perseguidores gritavam logo atrás para todos verem.

Abraçados, Chico da Horta e Izaura entraram. O jantar estava pronto.

FIM

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 01/05/2020
Reeditado em 31/03/2021
Código do texto: T6934619
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