Me pegou de boca aberta

Se eu tiver mentindo, se eu tiver mentindo, quero que apareça agorinha uma rasga mortalha e carregue minha alma de pescador pra dentro da boca de um sapo e costure com um fio branco de cabelo da minha veia, né minha veia?

Eu sei, sei que você perdeu seu único dente, está com a boca amarrada com esse pano, mas seus olhos de urubu atrás de carniça já dizem tudo.

É assim, quarenta e tantos anos juntinhos, entre aperreios e farturas, minha veia é assim mesmo comigo, é desse jeitinho que ela cuida de mim todos esses anos, com esses olhos de urubu atrás de carniça.

Pois bem, como ia dizendo, acordei com uma dor nos espinhaços que só Nosso Senhor Jesus Cristo e sua mãe, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro seriam capazes de dizer como foi uma dor arretada dessa, mas acordei, fui assim me arrastando pelos cantos, minha veia de butucas arregaladas, esses olhos de urubu atrás de carniça, espiando para mim, com a boca escangotada de tanta dor de dente, pedindo por tudo que eu ajudasse a ela naquele momento de auguras.

Pronto, eu com dor; ela, também, o que me restava fazer? Rezar? Me ajoelhar e... Mas como, se meus espinhaços estavam com aquela dor infeliz também?

Vi que o sol ainda estava por nascer, mas o galo Zé mesmo assim começou uma cantoria, uma cantoria tão agorenta, parecida com o canto da morte entoado aqui dentro do quarto.

Do nada, pois num é que a vela que estava apagada, do nada, acendeu. Mais ligeiro que um raio de Santa Bárbara e um trovão de São Jerônimo, meu espinhaço fez treco, voltou pro lugar, minha veia, com os olhos de urubu atrás de carniça, deu um espirro, mais um espirro tão estrondoso que o dente doído escapuliu de dentro da boca escangotada, passou raspando no pau de minha venta, saiu pelo buraco da fechadura da porta do quarto, eu corri, minha veia veio atrás, o dente atravessou a sala de casa, foi pra cozinha, eu e minha veia no pé da carreira atrás, o danado do dente passou por debaixo da porta da cozinha, eu e minha veia tiramos a tramela da porta numa ligeireza só, quando chegamos no quintal, o dente tinha dado ordem à enxada pra cavar um buraco, ele se enterrou dentro e pois num é que nasceu um pé de dente gigante, tão gigante que nossos olhos não alcançaram o tamanho do monstro.

A enxada se transformou numa grande águia voadora, pegou eu e minha veia e levou lá pra cima da tal árvore de dente gigante. Mas era tanto dente, tanto dente que a gente se sentia dentro de uma boca de um gigante. Chegando lá em cima, meus olhos não acreditaram no que estavam vendo. Era tanto brilho, tantas moedas de ouro, tantos anéis, tantas pulseiras castiçais, pretos, panelas, garfos e colheres que minha veia, com os olhos de urubu ambicioso, inventou, na desconfiança de que só acreditaria se provasse. Pegou uma moeda, uma lindeza de moeda dourada, brilhante, apetitosa e sapecou na boca escangotada, deu uma mordida tão gananciosa, mais tão cheia de ganância que foi só a continha: machucou o último dente careado que tinha na boca. Se ninguém esperar, a danada assoprou um grito tão medonho, mas tão medonho que viemos bolando lá de cima, numa fração de segundos de um raio a mil quilômetros por segundo, numa velocidade descontrolada, voltando pra trás, fechamos a porta da cozinha, colocamos a tramela, atravessamos a sala, passamos por dentro do buraco da fechadura, dentro do quarto, pra cima da cama, eu com uma dor nos espinhaços, minha veia com uma dor de dente tão grande, mas tão grande que eu assustado só vi quando a vela se apagou de supetão, eu, de susto, caí da cama, lasquei o quengo no chão, minha veia abriu o berreiro, arregalou tanto os olhos de urubu atrás de carniça que o dente que estava doendo escapulir e ela engoliu o danado com um goto de saliva dado sem esperar.

Pense numa noite aperreada, num foi minha veia? A coitada nem pode responder, está aí com esse pano amarrado porque coloquei umas folhinhas de hortelã pra ver se sara mais rápido.

Enquanto isso,fica ela aí, esperando uma dor de barriga pra ver se se livra logo desse dente amaldiçoado. Eu inté dei um chá de boldo a ela prá ver se ajuda.

Se eu tiver mentindo, se eu tiver mentindo, eu quero, eu quero... Pera aí, minha veia, figa do dente pobre! Me pegou mesmo de boca aberta.

Entrou de boca adentro,

saiu de dente a fora...

Termino por aqui essa minha história!

Marcus Vinicius