A noite cai.

Novo dia se levanta, no berro do boi; no galo que canta, na galinha que cacareja. É hora de pesar a boiada.
Com o dia chegado, começa a jornada de boi rumo ao calvário. Cavalos e cavaleiros conduzem a boiada ao corredor da morte. Revés da sorte. Boi de corte paga com sua própria carne cada quilo de pasto que comeu.
Avante, Mimoso!
Vai Pimenta-de-mico.
Bonito... Boi de bico!...
Capenga! Anacoluto!...
Pega o passo, molega!...
A meninada espia o gado passar.
A mulher se põe na janela e a imagem revela um corpo pela metade, como em foto três por quatro; um vaqueiro abre a cancela. Xandão sopra o berrante. A boiada segue o compasso, no passo do vaqueiro.
Adiante, Onofre assume a guia, e João Velho o coice.
Turíbio Soberbo não gostou da pessoa de João Velho na retaguarda. Pururuca e Dino também não, por conta disso, o projeto da fazenda de peixe-leiteiro teria que ficar para outra oportunidade.
Guardou, no entanto, a pergunta de seu parceiro.
— Vai criar baleia?
E a resposta que deu, sem perceber: ‘Boto.’
— Não estou vendo Boto-cor-de-rosa. — disse João Velho, julgando que a conversa dos vaqueiros era sobre o reprodutor rufião, que Generoso resolvera mandar para o abate.
— O Boto está perto de boi Matreiro. Nunca gostou mesmo de vaca. Só cheira. Outro touro é que cobre e faz a cria. E sentencia. “Objeto de aposta...o patrão recebeu gato por lebre.”
—Teve tramoia: o candidato de Generoso ganhou jogando com carta suja. Onde já se viu atravessar jipe na ponte, para os eleitores do adversário, não chegarem a tempo de votar? A mando de quem, uma pessoa retirou o cabo da bobina e enfiou no bolso, para recolocar no jipe quando lhe conviesse?
— Não sei. Meu patrão não é disso. O jipe dele estava cedido para ajudar na campanha de Sebastião. Foi um parente de Durão quem aplicou esse golpe. Ainda assim, dava tempo para o eleitor puxar a pé. Eram duas léguas, apenas.
— Àquela hora da tarde, dava. Dava pra chegar à noite em Juramento, e saber o resultado da eleição.
Dino olhou para João Velho e disparou um insulto.
— Você votou no defunto para ajudar o patrão a ganhar uma aposta.
— Sou homem pra isso não. Sebastião morreu, antes da eleição, mas a Lei garante ao partido a substituição do registro.
— Sem mudar a cédula, nem a foto do santinho?
— E dava tempo?
— Deixa a prosa para depois. Faz meses que a eleição acabou. A lida nossa agora é com o gado. Vaqueiro distraído, boi debandado, — disse Onofre. E a partir de então, prevaleceu o diálogo entre homem e boi no compasso do casco na pedra, pedra no casco; estrada, pedra, cascalho e aboio.
Alexandre Guedes apertou o cavalo nas esporas. Assumiu a guia. Tunico Oliveira apressou. Adiantou-se, e fez barreira na cabeceira da ponte de madeira do rio Verde.
— A ponte é estreita pode machucar o gado.
— Nem não. Boi sabe se cuidar. Desviar de buraco, ponta de pau, o que tiver pela frente. É mais fácil um cavalo se machucar do que um boi.
A boiada passa enfileirada como soldado em ordem de batalha e dali em diante, mais uma hora de marcha, Montes Claros é toda avistada.
Aponta a primeira cabeça de boi na entrada da cidade.
O gado passa em desfile; vira a cara em continência para a mulher que tem um menino nos braços.
Gente havia que fechava as portas com medo, e abria a janela, para ver a boiada passar.
Era muito boi.
Maximiano disse: ‘Lota dois trens. Capaz. ’ Veríssimo calcula por baixo: ‘Só lota um. Já reparou quantos vagões tem um trem?’
A marcha segue calcando o paralelepípedo da via urbana. Meninos correm gritando: “Olha a boiada de Juramento!”
— A boiada é do coronel Dólmen — disse um velho cego de um olho.
— Né não — diz outro velho, batendo com a ponta da bengala no meio-fio da calçada — É de Generoso, o maior fazendeiro de Juramento. Ele é dono de todas as terras de Campo Grande a Lama Preta. O gado deve ser dele. E aponta para a marca feita a ferro e fogo na anca esquerda dos animais, onde se lia: “Ge”
A boiada avança.
Distraído, o pavão de Walkiria vira pasta entre os casos dos bois. Ninguém cobra a conta. E o gado passa.
Passa boi. Passa boiada. Só saudade não passa.
O berrante cadencia o passo
O boi faz a estrada
Evem a boiada do Gorutuba
Suando o ribeiro que bebeu
A pastagem vem na carne:
Uma tonelada em cada boi
Tira o pé do chão, Diamante!...
Afasta, Pimenta-de-mico...
Sai, Angico!...
Ê boi, ê boi...
Ê boi bom cara pintada
Ê boi, ê boi...
Ê boi bom, pega a estrada...
Vai Samburá!
Sai, Boto-cor-de-rosa...
Avante, Ouro fino...
Arreda, Caxangá!...
Sai da frente, menino!
Que a boiada vai passar.
Bôooi!
O berrante cadencia o passo.
O boi faz estrada.
Ê boi... ê boi... ê boi bom cara pintada.
Ê boi, ê boi... Ê boi bom, pega a estrada.
Bôooi...
A boiada segue rumo ao curral da ferrovia. Lança pedras com os cascos na calçada, e vai apressada para a morte. Sorte de boi. Pesado na balança cada arroba é fatiada em quilo e ainda se diz que aquilo é caro. É caro, quando a carne é fraca. Também é caro o ovo da galinha. Ela põe dezenas deles e em paga, ganha o milho, e o abraço apertado do galo. O galo nica, beija e bica a cabeça da galinha. Depois ela vai ao ninho, chocar ovos. Criar a pintainhada e defendê-la do gavião. Medroso, o galo se esconde, como muitos maridos, atrás da mulher. Até Adão se escondeu. E pecou. E quando Adão pecou, até os animais pecaram.
Vaqueiro João trocava ideia com seus botões: “Quando Adão pecou, até os animais pegaram.” Seria justo que na remissão dos pecados, também os animais fossem alcançados pela graça do perdão. Qual o pecado de boi Pacato? Até no nome ele é manso.
Eh, vida de gado!...
Marcada para morrer,a boiada cortou a estrada velha de Juramento a Montes Claros, e naquele mesmo dia, embarca lotando muitos vagões do trem.
Duas malas de dinheiro o fazendeiro leva pra casa.
Depois da paga, vaqueiros vão à farra, endinheirados, beber cachaça e vadiar com mulheres no cabaré de Montes Claros.
Naquele dia, Cláudio Manuel Constâncio, o Pururuca, fora preso numa batida policial de bordel. E pouco lhe valeu dizer que era vaqueiro do coronel Generoso. A carta precatória, recebida de outra comarca, estava na mão de um soldadinho franzino que envergava uma farda cáqui, meio cor de terra, quase chumbo. Também de nada valeu a intervenção da dona do “Marimbondinho.”
— Este homem é vaqueiro de uma grande fazenda no Juramento. Não faz mal a ninguém. Só a ele mesmo.
— Faz não? — disse o soldadinho de chumbo. Agora preso, Pururuca não fará mais fazer mal a ninguém. Vai cumprir pena e depois será solto, mas quem está preso debaixo de sete palmos, e não sai mais de lá é Zé Pilão.
Pururuca não reagiu. Nem seus companheiros se opuseram à revista policial de praxe. E, embora Turíbio Soberbo tenha sentido o gosto de sangue na garganta, ficou parado como uma estátua de sal.
A ronda policial noturna se foi levando o prisioneiro.E quando o dia amanheceu,Turíbio e Dinotério tomaram condução para São Francisco, com a intenção de por em prática o projeto de criar peixe-leiteiro nas águas do rio que deu nome à cidade.
A ideia não vingou, pois, criar peixe em cativeiro, naquele tempo, figurava apenas na mente de dois sonhadores.
Os demais vaqueiros de Campo Grande, deram novo destino à sua vida: alguns se mudaram para Juramento, outros, Montes Claros. Pai Luís morreu de tristeza.
Melhor destino teve o vaqueiro Alexandre Gudes, o Xandão, que, deitado no velho catre de uma pensão de periferia, sonhava. E em seu sonho, uma voz lhe dizia: “Vou fazer de ti um vaqueiro de almas debandadas.”
— Já sou velho, Senhor. Minhas forças minguaram como o leite da vaca em ano de estiagem.
— Recobrarás as forças. Dar-te-ei de volta, a esposa de tua juventude e colocarei minhas palavras nos teus lábios. Agora vá. Anuncia-me e muitas almas, antes, mergulhadas nas profundezas do abismo serão resgatadas e alcançarão o céu.
Acordou.
Imediatamente, Alexandre Gudes levantou-se, pagou a conta e dirigiu-se à estação ferroviária, levando consigo um baú de saudades dos tempos em que fora vaqueiro na fazenda Campo Grande em Minas Gerais.

 
Adalberto Lima
Trecho do livro "Estrela que o vento soprou" em editoração.
Enviado por Adalberto Lima em 19/04/2020