A Última Ratio

- Quantos a virem se atrevessem eu derrubaria por qualquer um de vocês! - o nosso avô tripudiara-nos (porque nada de concreto o ensejou, senão o ego inflamável de pai que usufruia) com sangue nos olhos, assim também o desembocara não haver usado ele colírio aquele dia, de manhã.

- Ó! – gloriáramo-lo; modestamente, e ponto, pois havia-nos ele mesmo disciplinado que, em hipótese alguma (naturalmente que ele não fazia noção do que lhe incorreria na injusta hora superveniente, mas vá lá) incitássemos à violência, arguindo nunca dela resultar bem nenhum ao espírito, como a paz.

"Quantos já não o disseram!”, fora o que me resultou pensar por ser deveras o mais letrado do lar, em replicando o sermão que, na verdade, compunha-nos a praxe.

Éramos, sem delonga, seis netos distribuídos no entorno da mesa retangular de mármore, e outros dois sendo nosso avô e nossa avó, que nos pregavam a síntese moralista pé lá, pé cá na História.

Morávamos por diversas razões, dentre as quais eram maiores o acaso e o valor em conta do aluguel, em um casarão amplíssimo, na Rua Bela Vista. A cidade não voga mencionar: o que estou a assinalar ocorre em todas; a rua tem o nome sabido por voluptuária.

À ocasião repetitiva que se já distinguiu acima, acudira-me de ímpeto uma vontade de ausentar-me dali - alguém a mim compreenderia? talvez jovens? - e o fiz logo, sem, para tanto, sequer hesitar. As fontes religiosa e moral não me despertavam como antes a curiosidade, tampouco contraia-me grandes afeições. Àquela altura imputava aos seus adeptos, no plano do pensamento, a condição quando muito de meras respostas sociais ambulantes, fusiformes e hipócritas. Mas enfim, até o momento que eu havia saído, pois saira, nada alcançou impedi-los de prosear.

O corredor da casa era comprido.

Uma academia ficava à esquerda de quem se lhe partisse ao exterior. Fizera-o. Da porta, eu a vi a um ângulo muito próximo de zero com relação a sua fachada. O casarão nosso lhe era vizinho. Qualquer relógio devia marcar o giro das nove e pouco. E o som ruidoso que daquela em diante alastrasse galgava a casa de fora a fora (inclusive, uma vizinha tinha vindo resmungar na presença de alguns de nós, netos, o igual feito vexaminoso aos nossos avós).

Cogitara sobre o caso tantas vezes quantas ele exumou, quais sejam, todos os dias, salvo aos domingos - mas se duvidasse...

Evidentemente que eu fugira da conversa em família não julgando esta acertar seus discursos. Quer eu quisesse ou não, julgava-me superior nesse sentido. Desapercebia, com isso, por míseros surtos de vaidade, que se tratavam de superiores naturais, em que pese nos haverem lecionado dia após dia para, depois somente, chegarmos onde havíamos chegado: uns luxavam a vida debruçados sobre os livros, outros faziam-no, quando não a destilarem num ginásio, cerrando e descerrando os dedos nas cordas dum violão. Intercalávamos um vício e outro comendo à brasileira.

Ainda estava na porta quando o chefe da família ele próprio percebera-me o deslexo e apatia - disséra-me isso pouco mais tarde, mas lhe adianto - e oportunamente pôs-se a minha retaguarda. Não podia eu notá-lo ainda, todavia estava sendo vijiado. Cerca de cinco minutos para frente, na tentativa de volver-me para o endógeno da casa fui pego pelo braço por meu avô que me agilizara a volta e me envolveu no seu abraço fremente sei lá por quanto tempo. Uma energia que só podia ser divina nos impeliu ao pranto. Falo por mim, não pudera não chorar, tamanho foi o que me cingiu. Experimentáramos daquele momento o ápice quando pensei em como seria o abraço de uma cobra e, em seguida, o seu fim. Rumára-me então o olhar por entre a fenda que se expandiu ao afastarmo-nos os corpos um do outro até o chão. E não é demais eu afirmar que o vira inteiro como um buraco, nem mesmo dizer que neste eu já me encontrei a cair. Na queda, imprimira-se à minha vista como que a cortina de cuja matéria se desenvolveu o preto do espaço remanescente além da atmosfera que nos resolve. Vê-se-lhe o sem-fim no início qual o seu verso.

O meu corpo, vale ressaltar, ao todo, sentira-o anestesiado quando do abraço já. No início, senti, na catarse do aconchego, como que o meu renascimento; naquela atualidade, apesar de eu poder sentir significativamente mais os membros, sofri uma nova carga emocional, uma defaunação das borboletas azuis para as quais meu estômago foi sempre morada. De normal a partir dali me aparecera somente a queixa prisca que a mim toda a vida fizera: o fato de que as ideias sobrepujavam ao meu comando, confundindo-me o saber, quer seja no quarto versejando, ou, como o estava vivendo, em queda livre.

Quizera falar, e não consegui, pois sentira agonizar-me por dentro, e a minha boca pude senti-la a ponto de transbordar, não de espumosa saliva, mas de palavras. Chamo a isto, diga-se de passagem, de poética da ironia, através da qual se força o descabido translado da poesia do respectivo trono existencial para a vassalagem da moral imperialista e anexos.

Dores agudas eu padecera quando avistei, imenso de longe, uma fulminância.

- É o fim!

O Zé Luquinha
Enviado por O Zé Luquinha em 10/05/2018
Reeditado em 22/05/2018
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