214 - MOFADO DE GUARDADO...

Maria do Rosário, moça bonita, olhar inquieto, seus cabelos eram tão negros que neles respingava o sol, gostava de vestidos longos, rendados, estava apaixonada, a sombra do seu olhar sempre apontava para um rapaz cheio de predicados que gostava muito de tocar uma viola, estavam apaixonados, mas era uma paixão represada, não declarada, mas tudo tem o seu momento, tudo tem o seu dia!

O violeiro respirou fundo!

O momento é agora ou nunca!

Escudou na coragem e no atrevimento, a passos largos alcançou a moça na entrada de sua casa, afobado, gaguejando, suando, ele lhe mostrou o seu coração por inteiro, disse que ela era a mulher mais linda que seus olhos já vira, que dormia sonhando fascinado por ela, gostaria tanto que ela fosse a sua namorada, ela abriu o seu sorriso como uma flor se abre aos primeiros raios do sol!

No meu silêncio eu sempre te amei e esperava ansiosamente por este momento!

Combinaram que no baile que haveria na casa dela no final da semana anunciariam a todos que estavam enamorados, ela jurou que dançaria a noite toda somente com ele!

Encantou o rapaz!

Mas o boato do namoro de boca em boca avançou por todas aquelas veredas, no fim todos já sabiam o que iria acontecer no próximo sábado.

A moça afobada retirou dos seus guardados retalhos de tecidos, rendas e linhas, com ajuda da sua mãe confeccionaram um belo vestido rendado, um tanto longo, de leves decotes, que foi devidamente engomado, passado, guardado, que também ficou esperando pelo baile.

O sábado chegou, com ele o tão desejado baile, o rapaz se arrumou, vestiu a sua melhor roupa, derramou perfume por todo o seu corpo, queria agradar, selou o seu cavalo, pegou a sua viola!

Anoitecia!

Partiu!

O capão de mato era mal assombrado, mais mal assombrado ficou depois do que aconteceu nesta noite.

O rapaz montado no seu cavalo galopando ligeiro adentrou no capão de mato, quando do meio daquela escuridão medonha uma lingueta de fogo do longo cano de uma arma avançou na direção do peito do rapaz, no impacto da bala ele contorcia, resfolegava, rangia os dentes, mal se sustinha em cima do cavalo agarrado no cabeçote do arreio!

Mas foi o segundo tiro arrancou de vez o ultimo vestígio de vida daquele corpo, arqueando pro lado foi tombando lentamente, do arreio desgarrando, um filete de sangue já escorria pelo canto da sua boca, agarrado na viola estatelou no chão.

O cavalo sozinho desembestou estrada a fora!

Das profundezas das trevas um vulto apareceu, com o cano da sua arma remexeu naquele corpo procurando por algum sinal de vida!

O vento uivava por entre as ramagens, sinfonia triste parecendo contristar com o acontecido!

Passado o dia do enterro do rapaz, a moça enfurnou no seu quarto, queria ficar sozinha não queria que a vissem chorando, pra matar o tempo começou a tricotar, tricotar, tricotar...

O vestido que seria usado no baile guardado ficou, esquecido em canto qualquer do seu guarda roupas.

Nesse ínterim o filho de um fazendeiro vizinho começou a frequentar a casa da moça com tanta frequência que não conseguiu mais disfarçar as suas intenções!

Pediu aos pais da moça permissão para namorar a Maria do Rosário!

Retrucaram!

Que a decisão final caberia unicamente a ela.

Mas a moça se mostrava irredutível, não dava qualquer oportunidade ao pretendente, alguma coisa dentro de si repugnava aquele rapaz.

Certa noite o rapaz ao passar pelo capão de mato onde ocorrera o assassinato a caminho da casa da Maria do Rosário, teve a impressão que alguém estava sentado num tronco de uma árvore caída!

Não era impressão!

Um vulto envolto por uma névoa brilhante se destacava naquela escuridão!

Seus cabelos arrepiaram, o coração martelava na boca, mais apavorado ficou quando ouviu claramente o trinado melodioso de uma viola, o som avançou contra ele, desesperado esporou o cavalo com tamanha violência que feriu o animal, chegando na casa da moça, suado, gaguejando, pediu um copo d’água, a muito custo conseguiu explicar o acontecido!

Os pais da moça aventaram a possibilidade de ser o espírito do rapaz assassinado que ainda estava preso naquele capão de mato, dizem que pessoa assassinada na traição demora pra descobrir que morreu, continua a vagar pelos lugares conhecidos como que nada tivesse acontecido.

Na varanda a moça com uma calma angelical continuava a tricotar e a balançar em sua cadeira de descanso ignorando completamente o pretendente.

Ao se despedir, o pai da moça perguntou se ele precisava de uma companhia para atravessar os arvoredos, ele retrucou que não precisava não, que não tinha medo de pessoas mortas, medo mesmo ele tinha era de pessoas vivas!

Montou no seu cavalo, despediu, aprumou pelo estradão, ao passar pelo capão de mato o som da viola chegou até os seus ouvidos, por mais que seu cavalo galopasse na pressa ligeira para se afastar do local mais o som o perseguia, estremecia nos seus ouvidos.

Chegando em sua casa tremia dos pés à cabeça, contou para seus pais do acontecido, sua mãe sugeriu que ele rezasse para aquela alma penada que na certa ainda não tinha desgarrado deste mundo.

Estava com tanto medo que foi dormir com o lampião aceso, mas isto não foi o bastante para espantar o fantasma com a sua viola, apavorado o rapaz contorcia, tremia, se sentia encurralado na sua cama, cobria a cabeça com o cobertor na esperança de se livrar daquele som, mas o som persistiu pela noite adentro, não conseguiu dormir, o assombração passou a persegui-lo dia e noite.

Agora só visitava a casa da moça aos domingos e durante o dia, mas o assombração com sua viola não saia do seu pensamento, aquele som implacável estava deixando-o enlouquecido, sonhava acordado com o rapaz que assassinara, não tinha um só minuto de descanso, não tinha um só canto do seu pensamento que o fantasma não estivesse ali tocando a sua viola, estava sendo possuído, dominado pelo assombração.

Certa vez ao visitar a casa da Maria do Rosário num movimento brusco, inesperado se colocou de pé no meio da sala parecendo possuído pelo demônio, fazia caretas, contorcia, mastigava, fungava, com uma voz completamente alterada, rouca, pastosa, gritava:

- Apareça maldito, eu já ti matei uma vez, quero te matar novamente!

E a moça calmamente balançava em sua cadeira de descanso, tricotava como se nada de anormal estivesse acontecendo.

Assim que ele voltou a si quiseram saber quem era o rapaz que disse que assassinara, a que ele respondeu que não se lembrava ter afirmado tal coisa, sorrateiramente se despediu, partiu.

Correu nos olhares das pessoas uma leve desconfiança que fora ele o assassino do namorado da Maria do Rosário, desconfiança esta que foi avolumando a cada crise que o acometia, certa ocasião chegou a sacar de um revolver, apontava a arma para todos os lados na esperança de matar aquele fantasma que tanto o atazanava.

Foi preciso de muita destreza e força das pessoas presentes para desarmarem o rapaz que a cada dia dava sinais que estava perdendo a razão.

E o fantasma do rapaz assassinado incorporou na sua vida, dia e noite a pingar na sua mente lembranças do assassinato, emagrecia a olhos vistos, gritava ou melhor urrava a todo momento, pedia pelo amor de Deus que aquela alma penada lhe desse um momento de sossego, paz, foi quando seus pais preocupados com seu lamentável estado de saúde o levaram a um médico amigo da família, ele examinando o rapaz não lhe foi difícil concluir que ele tinha enlouquecido ou estava enlouquecendo!

Sugeriu que para evitar alguma tragédia que o internassem em um hospício para que fosse submetido a um tratamento mais severo.

Mesmo contrariados os pais do rapaz concordaram que seria melhor pra todos que ele fosse enviado a um manicômio onde teria um acompanhamento diário de médicos e enfermeiras.

O rapaz matutou, pediu ao seu pai que o levasse até a casa da Maria do Rosário, queria se despedir dela, assim foi, chegando na casa dela sem a menor cerimônia, se ajoelhou aos seus pés, esta imaginou que ele iria mais uma vez implorar para que ela fosse a sua namorada, mas para seu espanto quando ele abriu a boca, foi como que estivesse se confessando diante do padre da paróquia:

- Meu amor, me perdoa eu destruí a vida do seu namorado, destruí a sua vida, a minha também, me perdoa estava cego de ciúmes diante da possibilidade de perder você para sempre, estava e ainda estou perdidamente apaixonado por você, eu matei na esperança de ter você somente para mim, agora estou partindo para o sanatório e pressinto que nunca mais verei os seus olhos.

Esta é uma viagem que ao meu ver só tem ida, vou levar você no meu coração, nos dias meus de solidão a sua imagem será a minha alegria e a minha tristeza, alegria porque te amo demais, tristeza porque te magoei assassinando o seu grande amor, nesta batalha não há um vencedor, todos nós perdemos!

Adeus...

A moça correu para ao seu quarto, começou a chorar não pela partida da rapaz, mas pelas lembranças daquele que fora seu único amor, surpreendendo a todos voltou para a varanda de sua casa, em sua cadeira de descanso começou a balançar e a tricotar.

E o tempo foi passando, a moça envelhecendo, sempre em sua cadeira de balanço, tricotando, não há de ver que em um baile que aconteceu na sua casa, a moça procurou por algo que estava completamente esquecido, demorou para encontrar, mas encontrou, era aquele vestido hoje mofado de guardado que ainda esperava pelo baile, ela se arrumou, aprumou diante do espelho, tinha envelhecido, mas ainda era bela, se ajeitou dentro daquele vestido, apareceu no baile toda sorridente, alguns rapazes a convidaram para dançar ao que ela sempre retrucava!

Que tinha prometido ao seu amor todas as danças daquela noite...

Estava enlouquecendo...

Voltou para a varanda da casa, se pôs a dançar sozinha, rodopiava e cantarolava, fazia gestos como que estava sendo conduzida na dança por alguém, a sua voz suave ecoava:

- Meu amor porque você demorou tanto?

Por onde você andou?

Poderia ter-me mandado um bilhete contando onde você estava, a sua ausência me deu tantas preocupações, mas isto não mais importa, o que importa agora é que você está junto a mim, nunca mais irá me abandonar.

E fez um breve silêncio, ouviram um baque, acudiram, ela estava caída no chão, já estava morta, usando o seu vestido mofado de guardado ela foi enterrada, tinha no rosto um cálido sorriso, na certa morreu feliz nos braços do seu amado naquela dança tão aguardada e tão sonhada...

Ah! A casa da Maria do Rosário ficou mal assombrada, era um constante bater de portas, janelas, barulho de uma cadeira de balanço, ouvia os passos ritmados de um casal dançando, mas o que mais assustava era o som dilacerante de uma viola estremecendo as madrugadas...

Ah! E o que aconteceu com o assassino? Enlouqueceu de vez, terminou seus dias enfiado em uma camisa de força, desesperado passou a morder na sua língua, morreu afogado no seu próprio sangue...

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 29/08/2017
Reeditado em 30/08/2018
Código do texto: T6098787
Classificação de conteúdo: seguro