Nestor.
 
Quando pequeno, o cachorro já era grande, o corpo todo preto, as pontas das patas eram de cor morrom bem fechado, lembrava terra molhada, a ponta do focinho, sobre os olhos uma pequena mancha e debaixo do queixo também da mesma cor das pontinhas das patas.

Olavinho, o dono do cachorro, morava sozinho, assim diziam os vizinhos, mas ele sempre dizia que não morava sozinho, pensava ele, sou eu meu cão e Deus.

Todos os dias pela manhã, passeava com o cachorro, para não deixar o bicho estressado, apesar da casa ter um quintal muito grande, ainda assim acreditava que, era um passeio pelas ruas próximas da casa que deixaria o cão sempre calmo.

O tempo passou, passou até que um dia, Olavinho se deu conta que seu cachorro estava quase de sua altura, muito forte e pesado. Isto não lhe assustou, pois, o cão era muito dócil, andava sempre com a cabeça erguida, apesar de manter a boca sempre aberta, suas presas de cima sempre estavam escondidas por debaixo da pele do beiço.

A vizinha do lado direito, não cansava de repetir, como pode um rapaz tão bonzinho, às vezes dizia que ele era uma uva de tão doce, com um cão deste tamanho! Toda a vizinhança falava a boca miúda, sobre o cão; esse bicho é cria do demo. O cão sempre encarava as pessoas que lhe olhavam, mas sempre, sempre se mantinha calmo como o dono.

O vizinho da esquerda sempre confessava: todas as vezes que olho para o animal do Olavinho, vejo o demônio, esse cão nunca late! Ainda vai aprontar uma desgraça, que Deus me tenha longe daqui!

A vizinha que ficava de frente para a casa de Olavinho, era uma negra muito gorda e risonha, apesar da dificuldade para andar, todas as manhãs caminhava até um sacolão que ficava a cinco quadras da casa. Passos lentos e cadenciados, sempre manquitolando devido ao peso. O peso do corpo dela estava entre 150 a 200 quilos.

Dona Lucrécia, a vizinha da frente, tinha dez filhos, um a cada ano. Quando chegou no décimo, disse ao marido: Agora chega, basta, já pari demais! Senhor Dorivaldo Bastos, marido de dona Lucrécia, era um senhor muito baixo, magro absurdamente, sua tez branca como leite realçava até demais quando estava ao lado da esposa. Ele era eletricista, só trabalhava e saia de casa com seu paletó de cor verde água e sapato bico fino.

Lucrécia, a vizinha, era tão risonha como explosiva com seu temperamento, educava os filhos com poucas palavras, quando precisava repetir uma ordem, junto ia uma chibatada, Lucrécia tinha uma tira de uma câmara de ar dobrada de caminhão, sempre ao alcance das mãos.

Alvinho, seu filho de dez anos de idade levou duas borrachadas na vida de sua mãe, a primeira foi quando estava sentado ao pé da mangueira de costas para a porta dos fundos casa. Lucrécia lhe deu a chibatada bem caprichada, junto foi uma recomendação: engole o choro, isso é só para você saber o que acontece com quem me desobedece.

Vinte anos depois dessa borrachada, Alvinho tinha o chicote de borracha pendurado na parede de sua casa como se fosse um troféu, acreditava como dois mais dois são quatro que, só se tornou um doutor reconhecido devido aquela borrachada quando menino.

Dona Lucrécia era manicure, pedecure e às vezes se aventurava a cortar o cabelo das clientes menos exigentes e mais corajosas. Clotildes, era sua cliente fiel como um cão, só fazia as unhas com Lucrécia. Clotildes sempre confidenciava seus segredinhos para Lucrécia, as aventuras de Clotildes eram de estremecer qualquer vivente, verdadeiros pesadelos que, quem os sonhasse cairia da cama.

Clotildes era vista pela vizinhança de Lucrécia como uma madame metida a besta, sempre de salto alto, saia de couro extremamente justa que ia até os joelhos, meia calça de cor fumê, as blusas eram sempre de cores muito fortes e decotadas, nariz pequeno e muito fino, olhos grandes, lábios carnudos, volumosos e sempre com batom vermelho, pele cor de jambo.

Era sempre assim, a vizinhança se arrepiava toda quando a madame, tida como metida a besta, aparecia para fazer as unhas, com todo seu charme, sua volúpia e com seu cachorrinho debaixo do braço, um poodle pequenininho, que latia para todos que olhavam para sua dona ou para ele, a inveja escorria pelos cantos das bocas das mulheres como veneno numa baba elástica e viscosa.

Numa quarta-feira, sem avisar com antecedência, Clotildes foi até a casa de Lucrécia no seu chevette de cor amarelo para fazer as unhas. Tinha um compromisso inesperado, não podia faltar de maneira nenhuma, deus me livre, perde essa boquinha, ela falava em pensamentos. Avistou Lucrécia voltando do sacolão, com várias sacolinhas penduradas nos braços e alguns pacotes nas mãos.

Quando a manicure viu sua cliente, o sangue lhe subiu pela cabeça, perua besta, pensou na tira de borracha, segurou o rosnado e elucubrou: o que essa mulher quer aqui sem agendar, em pensamento disparou alguns insultos, mas se conteve, afinal era a sua melhor cliente, sempre pagava em dinheiro vivo mais uma gorjeta, lembrou à tempo!

Olavinho saiu de sua casa com seu cachorro para passear neste momento, Lucrécia e Clotildes olharam para o cão de Olavinho ao mesmo tempo, Olavinho olhou para as duas, extático ficou a admirar a madame. Biduzinho, o poodle da madame, num repelão, se desvencilhou dos braços de Clotildes e correu na direção de Nestor, o cão de Olavinho.

Não houve latidos nem rosnados de cachorros, antes que Biduzinho percebesse qualquer movimento de Nestor, o cão de Olavinho, abocanhou toda a cabeça de Biduzinho, com as duas patas dianteiras, Nestor segurou o corpo de Biduzinho e arrancou a cabeça do poodle.  

Alvinho, aquele que no futuro seria um respeitado médico graças a borrachada que levou da mãe ao pé da mangueira, saiu em disparada de sua casa, foi até Nestor, alisou as orelhas dele, depois alisou por debaixo do queixo e por fim, meteu a mão dentro da boca de Nestor, tirou a cabeça de Biduzinho.

Colocou a cabecinha de Biduzinho no chão e deu uma bicuda, a cabeça do cachorrinho voou longe, enquanto a cabeça voava, alvinho dava uma sonora gargalhada, que foi cortada pela segunda borrachada que levou em toda a sua vida de sua mãe.

Clotildes desfaleceu no asfalto quente, a saia, mais justa que o necessário, descosturou quando uma perna bateu firme no chão quente. O prolongamento da perna direita do joelho até a cintura ficou toda exposta, a meia calça desfiou, mas, próximo ao joelho rasgou.

Nestor lambeu os beiços até sair todo o sangue de Biduzinho, depois lambeu onde alvinho havia levado uma chicotada e em seguida, deitou ao lado de Olavinho com o queixo no chão, com os olhos fixos em dona Lucrécia.