O VELÓRIO

O VELÓRIO

A morte inesperada de Mário surpreendeu muito. Só não mais do que a quantidade expressiva de mulheres que choravam ao entorno do seu caixão.

Viúva e filhas se abalavam a cada entrada de uma nova rapariga.

Como pôde um homem tão distinto, discreto em suas colocações, pai presente, marido exemplar, ter feito isso com a família?

E agora? Todos sabendo. Ou será que já sabiam. A esposa é sempre a última!

No atestado de óbito, um atestado de traição. “Enfarto fulminante devido a esforço físico”.

Esposa e filhas, só souberam quando ele já estava no hospital. Morto. Quem o levou para os primeiros socorros não deixou nome. Só se sabia ser do sexo feminino. Uma amiga. Assim se identificou no cadastro. Não ficou para saber se ele tinha sobrevivido.

Qual delas, no velório, seria quem o socorreu?

O homem realmente sabia cativar. Tinha pelo menos cinco ali chorando bem perto. Quem mais, escondida no meio do velório, estaria entristecida com sua ida?

Uma coisa era certa. Elas sabiam uma das outras. Não houve “barraco”. Ou será que era só educação. Mas da existência da esposa, com certeza sabiam. Eram amantes domadas. O Mário sabia convencer.

Com certeza não deixou nenhuma delas na mão.

Com idade avançada, como dava conta?

Olhando para cada uma delas, não se conseguia saber qual era a da vez, quando morreu.

Vai ver nem veio. Ficou com medo de ser reconhecida. Vai que alguém a viu entrando no hospital com ele.

Pode ser…

Mas que decepção causou para as filhas. Um pai em tão alto grau de admiração. Como pode enganá-las tão cinicamente?

O choro já não era mais para ele. O choro era de raiva. O choro era de decepção. O choro era de vergonha.

A filha caçula foi perguntar para uma delas, a que mais alto se desesperava, o que ela era do pai. Pensou em deixá-la sem graça. Ainda se chorasse baixinho… Mas um choro daqueles? Pelo amor de Deus. Envergonhava até a mãe, que não conseguia sequer soltar mais nenhuma lágrima, tamanho foi o desgosto causado pelo morto.

A chorona não conseguiu fôlego para responder. A filha insistia. Ao lado dela, com a língua entre os dentes, gritava baixinho. – O que você era do meu pai? Perguntou à moça, que deveria ter sua idade, ou menos. Mantinha o olhar frontal para que ninguém percebesse que estava se reportando àquela menina. A guria aumentou o volume do choro, e saiu correndo.

– Bem. Melhor assim. Uma a menos para constranger.

A filha do meio, também já não chorava de verdade. Estava de braços com o marido. Esse tinha a cabeça baixa, mas os olhos bem abertos observando o movimento por cima dos óculos. A filha do falecido achou a atitude do marido suspeita.

Dando-lhe um apertão no muque, perguntou baixinho. Você sabia disso? Ele rapidamente negou. – Não. Não sabia de nada, não. Ela, esperta como só, refez a pergunta. -Não sabia do que, se nem lhe disse o que era? Ele se entregara. Sabia das puladas de cerca do sogro. A cidade toda sabia. Mas não podia contar. Ela acharia que ele também estaria na farra, como o pai. E ele era homem fiel. Não concordava com a atitude do sogro. Mas ficava em cima do muro. Nem contra o sogro, nem a favor da sogra.

A primogênita era a única que sofria de verdade. A mais querida. A mais amada. A mais admirada pelo pai. E também a que causava mais dó às irmãs. Não havia se casado. Nunca namorou. Tinha a moral recebida do pai, enraizada em suas entranhas. Para ele todas as mulheres não prestavam. As únicas damas eram sua mãe e sua esposa. Das filhas desconfiava. Elas queriam sair, ir para bailes, namorar… mas ele não deixava. Dizia que filha dele, mantinha no cabresto. As duas menores, conseguiram escapar da moral acirrada do pai. Mas a mais velha ouvia suas palavras como ordem. Não decepcionaria o pai. Não se casaria. Ficaria solteira para cuidar deles na velhice. Seria o orgulho do pai. Uma virgem para sempre.

A mais velha não percebia nada de anormal no velório. Não via com clareza, o que se mostrava, gritantemente, à sua frente. O pai a colocara numa redoma. Toda realidade que se apresentava, era filtrada. A que não se encaixava com os ensinamentos dele, era rejeitada. Feito jogo de encaixe, não serviu, peça fora. Via as moças chorando, e pensava. Como meu pai era querido. Tanta gente sofrendo pela sua morte. E em sintonia consigo mesma, de cabeça baixa, orava baixinho, pela alma tão pura do pai. – Oh, meu pai. Porque nos deixaste tão cedo. O senhor que sempre foi o esteio da nossa família. Homem mais que sagrado. Pai exemplar. Marido fiel. Que Deus o receba com as honras que merece.

A mãe teve que ser amparada. O genro segurou-a para que não caísse. E, apoiando-a nos braços, a levou para fora do salão, para que não presenciasse mais nada.

O velório prosseguia.

Estavam à espera do padre, para dar andamento ao enterro.

O vigário, conhecedor de tudo pelo confessionário, não poderia deixar escapar nada do falecido, que prejudicasse sua honra.

Sem saber por onde começar tentou usar palavras dúbias, para os que sabiam e os que não sabiam das impurezas do falecido. Palavras que aconchegariam família e amantes. E assim começou.

– Amigos, parentes, familiares e outros que aqui se encontram (referindo-se as amantes, que nem nome tinha, para identificá-las). Este homem foi muito amado por todos e todas que aqui estão (e pelas que aqui não estão também). Deu muita alegria a muitos e muitas, com sua passagem pela terra. Tudo o que fez, foi usar da democracia. A divisão era seu lema de vida. Dividia amor, alegria e comunhão por onde passava. Deixou sementes. Muitas sementes. Que hão de germinar aqui na terra. Gostava muito de agradar e de ajudar a todos e a todas que ele simpatizava. Espalhou amor. E como amou esse homem! Como foi amado também! Foi muito bom com todos e todas. E assim, dado a sua grandeza de alma e generosidade de homem, vamos rezar um Pai Nosso e dez Aves Maria, pelo espírito tão iluminado desse que se foi hoje. Ele nos deixa em completa perplexidade pelos seus atos.

Terminado o terço, e usando da mais moderna justiça, pediu, à esposa, filhas e algumas moças que escolheu no momento (as amantes), que conduzissem o caixão. Precisaria de muitas mulheres contentes, ou melhor, potentes, para levantar os quilos (da consciência pesada) daquele caixão.

Afinal de contas, ele foi ou não foi o mais competente dos homens daquela cidade?

E que Deus o tenha, em privacidade, das almas femininas lá no céu.

Porque se deixar solto, vai dar merda.

Cristina Verducci