Doutor Gilberto e suas Agendas

Todo final de ano o Dr. Gilberto repetia para seus funcionários “se você quiser resultados em seu planejamento, compre uma agenda e escreva tudo nela. Sem ela, os propósitos não passam de boas intenções, das quais o inferno está cheio, meu caro”.

Dito e feito. Logo comprava uma bela agenda onde pretendia anotar todos os seus planos para o ano seguinte. Horário para atividade física, programa de leitura, adoção de um saudável programa alimentar, estudo de uma nova linguagem para computador e reserva de um tempinho para se dedicar ao inglês. Como ele gostava de afirmar, não se faz nada hoje em dia sem o conhecimento do idioma americano. Para a leitura de literatura especializada em informática, nem se fala, é fundamental o domínio de um bom vocabulário de inglês. Alguns de seus funcionários argumentavam com ele se não seria mais proveitoso matricular-se em um curso de inglês, onde certamente o rendimento seria muito melhor, sem falar no aprendizado da correta pronúncia das palavras.

Não precisa tanto, dizia ele, a pronúncia correta é um luxo para os pretensos falantes da língua. Ora, não estava em seus planos viajar para o exterior. Seus parcos vencimentos não permitiam essas extravagâncias. A ampliação do vocabulário seria mais do que suficiente para mergulhar nos livros de informática.

Já pensando nas horas diárias a serem consumidas em suas leituras e preocupado em não faltar material para essa nobre atividade, ele se adiantava em fazer novas aquisições de livros, literatura em geral e especialmente os livros que ensinavam as novidades da linguagem binária. Para tanto, socorria-se de um vendedor de livros, velho conhecido na repartição, que nessa época do ano fazia a festa, apresentando e vendendo ao Dr. Gilberto todas as novidades lançadas pela Editora Aguilar.

O problema era levar os livros para casa. Era preciso estratégia e dissimulação para ludibriar a vigilância de sua esposa, Dona Dalva, que não concordava com a expansão desordenada do acervo doméstico de livros, um desperdício de dinheiro em papel inútil que poderia, segundo ela, ser empregado em coisas muito mais úteis para a casa, cortinas, tapetes,etc.

Entrava e saia ano, repetia-se a mesma compulsão do planejamento para o próximo ano, com aquisição de nova agenda, novos livros, e tudo mais.

Até que, finalmente, o Dr. Gilberto se aposentou. Com a desculpa de levar seus pertences para casa, conseguiu introduzir sorrateiramente no lar o restante dos livros adquiridos ao longo dos anos. Estava pronto para dar início ao fecundo ciclo de leituras há tanto planejado. Tempo agora é o que não lhe faltaria.

Com sua aposentadoria, outro funcionário foi ocupar sua mesa e seu armário. Aí uma surpresa, ao abrirem o armário um acontecimento inesperado. Uma enorme pilha de agendas novinhas veio abaixo. Todas completamente virgens de anotações, muitas ainda envoltas em suas embalagens plásticas originais.Daria até para fazer um estudo sobre a evolução das agendas ao longo das últimas décadas.

Seus antigos funcionários se perguntavam. E o planejamento? E aqueles propósitos tão meticulosamente detalhados?

Era final de ano e um de seus antigos funcionários resolveu visitá-lo. No fundo, tinha a intenção sacana de confrontá-lo com aquela pilha de agendas nunca utilizadas. Dona Dalva logo preparou um cafezinho com biscoitos, porque receber bem era com ela mesma. Assunto vai, assunto vem, o Dr. Gilberto saudoso, querendo saber dos antigos colegas, do novo chefe, etc. O assunto se prolongava e o visitante não encontrava um meio de mencionar as agendas. Pelas tantas, Dona Dalva desabafou, mama mia! Esse aí não emenda, continua comprando livros e livros. Se sentasse para lê-los morreria antes de terminar as pilhas. Pelo menos alguns estão tendo alguma serventia, emendou ela, servem para escorar a estante que está desabando pelo peso dessa livraiada toda.

Dr. Gilberto, diplomático concordou em parte com a esposa. Realmente precisava começar suas leituras, mas uma grande parte de seu acervo de informática já estava desatualizada, a tecnologia se renovava com uma rapidez impressionante. A maioria dos livros não tinha mais nenhum valor. E concluiu, o ano novo está chegando, é só uma questão de se organizar. Vou comprar uma agenda e, a partir do dia primeiro vou planejar tudo, a começar por umas belas caminhadas, preciso perder peso. Vou até convidar a Dalva que ela também precisava de uns exercícios. Depois, voltar às leituras, ao estudo de uma nova linguagem para computadores e ao estudo do inglês, sem nenhuma pretensão de expressar-se numa pronúncia escorreita, que isso era bobagem e blá-blá-blá, blá-bla-bla e bla-bla-bla.

Encerrando sua dissertação, disse ao visitante, vamos tomar uma saideira? Afinal, ninguém é de ferro e deu uma sonora gargalhada.

Domingos Sávio ferreira
Enviado por Domingos Sávio ferreira em 02/01/2017
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