A BOTA DO AFONSO

Morar numa pequena cidade, sem violência, com muita calma e tranquilidade. Quem nunca teve esse sonho? Livrar-se do caos do trânsito, do vai e vem de pessoas apressadas, do estresse das megalópoles. Curtir o sossego e a paisagem bucólica do interior, sentir no ar o perfume da natureza, apreciar o céu noturno bordado pelas estrelas, ouvir o sussurrar das águas límpidas e cristalinas do riacho, deitar numa rede e esperar o langor do final do entardecer, apreciar as acrobacias dos pirilampos riscando de verde as noites quentes de verão.

Afonso era um desses moradores felizardos de uma pequena cidade, mas não sabia que tinha as bênçãos de uma vida tranquila, pois nunca sentira as agruras da cidade grande. E não sabendo do infortúnio que é viver respirando o ar fétido e poluído da metrópole, desconhecia o valor da pureza da brisa que soprava pelas verdes campinas de seu rincão.

Tinha um sonho; queria pisar as calçadas da capital. Esperava ansioso por uma oportunidade que, por certo, um dia deveria surgir. Já tinha uma fatiota razoável. Camisa de flanela e uma calça brim coringa. Gravata não carecia, visto que era coisa de autoridade, que nunca pretendera ser. Faltava-lhe um par de botas, pois ouvira dizer que os chinelos não eram muito do costume nas paragens maiores. Este, entretanto, era um problema de fácil solução; assim que chegasse à grande cidade não haveria de faltar um empório para a aquisição.

Demorou, mas o dia chegou. Dona Marta precisava de companhia para resolver umas pendengas na cidade grande e convidou-o para acompanhá-la. Afonso não pestanejou. Já tinha juntado uns caraminguás para comprar a bota, de modo que nada havia para que ele recusasse tão precioso convite.

Puseram-se na estrada a bordo do bólido de dona Marta: um possante fusca 1972, reluzindo de tão conservado que era.

Como era longe a capital. Levaram quase três horas para chegar ao destino.

Afonso ficou boquiaberto com o que viu. Nunca imaginou que os edifícios fossem tão altos, nem que houvesse tantos automóveis circulando pelas largas avenidas. E o mundaréu de gente indo e vindo? Benza Deus! Aonde ia tanta gente?

Dona Marta peregrinou pela cidade. Visitou loja de armarinhos, de cosméticos, de embalagens, de pijamas. De bota? Nenhuma. Afonso estava incomodado com seus chinelos. Não queria destoar dos demais. Tinha impressão que todos ficavam olhando para seus pés avermelhados e suas unhas escuras da terra da roça.

Passava do meio-dia e o estômago de Afonso começou a roncar. Estava acostumado a almoçar lá pelas onze da manhã. Passaram na frente de uma churrascaria e o cheiro da costela assando atiçou ainda mais a fome do moço.

- Dona Marta, nós não vamos boiar?

Ela, que também já estava sentindo a barriga implorando por um bom prato, assentiu e ambos entraram e sentaram-se à mesa para forrar o bucho, com o perdão de expressão tão vulgar.

Entre picanhas, costelas e maminhas Afonso nem quis saber de feijão, coisa que nunca faltava em seu prato. Fartou-se até não poder mais e aí descobriu que ainda tinha sobremesa: pudim de leite e sagu.

Ansioso para comprar a bota, Afonso sugeriu que pagassem a despesa para irem direto numa loja de calçados. Chamaram o garçom e em minutos a conta estava na mesa.

Ao ver quanto tinha que pagar pelo almoço, o pobre moço estalou os olhos e com ar de desolação, exclamou:

- Dona Marta, Não carece mais de pressa... Comi minha bota!

CLEOMAR GASPAR
Enviado por CLEOMAR GASPAR em 08/08/2016
Reeditado em 09/08/2016
Código do texto: T5722712
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